Uso de paracetamol e incidência de asma
Paracetamol use and the incidence of asthma
Aldo José Fernandes Costa1; Geórgia Véras de Araújo2; Emanuel Sávio Cavalcante Sarinho3
1. Alergista e Imunologista do Hospital Helena Moura, Doutor em Nutriçao, UFPE
2. Professora Substituta da UFPE, Preceptora da Residência em Alergia e Imunologia da UFPE, Mestre em Saúde da Criança e do Adolescente, UFPE
3. Professor Associado da UFPE, Supervisor da Residência em Alergia e Imunologia Clínica da UFPE
Nao foram declarados conflitos de interesse associados à publicaçao desta carta.
Prezado Editor,
Paracetamol, dipirona e ibuprofeno sao comumente utilizados como analgésicos e antipiréticos no nosso país, sendo o paracetamol o medicamento mais utilizado no mundo. O seu uso, por vezes indiscriminado, pode acarretar efeitos adversos, ou mesmo intoxicaçao. No Brasil, os medicamentos sao responsáveis por quase 30% das intoxicaçoes humanas1.Em estudos recentes2-3, observase uma possível relaçao de associaçao entre o início e aumento do uso do paracetamol e o crescente número de casos de asma, recebendo uma atençao maior pela comunidade científica.
Véras de Araújo et al., em 2013, publicaram no Brasil uma revisao sobre a relaçao entre essa medicaçao e o aparecimento ou exacerbaçao da asma4, abordando desde os possíveis mecanismos fisiopatológicos até dados de conexao temporal que reforçam essa possível associaçao, sugerindo uma provável relaçao positiva entre paracetamol e asma.
Nessa revisao, o mecanismo fisiopatológico de maior relevância é o que envolve níveis de glutationa (GSH). Ela mantém o adequado potencial celular de oxidaçao-reduçao de peróxidos e de radicais livres, sendo importante antioxidante pulmonar. O paracetamol diminui a glutationa nos pulmoes.Esta diminuiçao é dose dependente: níveis altos e contínuos do paracetamol sao citotóxicos, embora doses terapêuticas também possam reduzir os níveis de glutationa nos pneumócitos tipo II e macrófagos alveolares.
Os autores relataram que existe risco para desenvolver asma com o uso de paracetamol, já intraútero, verificando que crianças filhas de maes que o utilizaram durante a gestaçao apresentaram mais episódios de sibilância. Corroborando essa afirmaçao, Liu et al. pesquisaram o consumo de paracetamol e café pelas maes durante a gestaçao através da coorte de nascimento dinarmaquesa, utilizando questionários aplicados por telefone. Os casos de asma foram identificados usando o registro nacional dinamarquês do paciente e o de receita. Concluíram que o uso da medicaçao durante a gravidez foi associado com um modesto aumento do risco de asma nos filhos, porém nao havia relaçao com o consumo de café2.
Outra argumentaçao que reforça a relaçao do paracetamol com asma é a associaçao ecológica, onde o crescente consumo per capita dele e o aumento da prevalência de asma em crianças e adultos tem sido bem documentada, através das análises baseadas nos dados de países participantes da fase I do International Study of Asthma and Allergy in Childhood (ISAAC) e do European Community Respiratory Health Survey (ECRHS), onde identificam uma associaçao positiva entre o consumo de paracetamol por pessoa e prevalência de asma.
Em suas conclusoes, Véras Araújo et al. chamam a atençao para o artigo publicado por Moral et al. que enfatiza a necessidade de realizar um estudo multicêntrico comparando a incidência e prevalência de asma de forma prospectiva, através de uma coorte de crianças, desde o nascimento. As crianças seriam randomizadas em dois grupos, um com o uso do paracetamol e outro com ibuprofeno para quadros febrís. Os autores nao consideraram necessário evitar o uso do paracetamol durante gravidez e em crianças com ou sem risco de asma, por falta de estudos de intervençao adequados, reforçando a dúvida que ainda existe sobre a relaçao causal entre paracetamol e asma.
Em publicaçao de agosto de 2016, no New England Journal of Medicine, um ensaio multicêntrico, prospectivo, randomizado, duplo-cego, com grupos paralelos, onde 300 crianças (faixa etária, 12 a 59 meses), com asma persistente leve, receberam paracetamol ou ibuprofeno quando necessários para o alívio de febre ou dor ao longo de 48 semanas, foi realizado exatamente como sugerido. O desfecho principal foi o número de exacerbaçoes de asma que levaram ao tratamento com glicocorticoides sistêmicos. Crianças em ambos os grupos de tratamento receberam terapias de controle de asma padronizadas5. Os autores concluíram que entre as crianças com asma persistente leve nao foi demonstrada associaçao com uma maior incidência de exacerbaçoes de asma com o uso do paracetamol, ou um pior controle do quadro em relaçao ao grupo que usou ibuprofeno.
Esse estudo permite-nos algumas reflexoes, dentre elas: o paracetamol nao foi utilizado em crianças sadias para observar o aparecimento de quadro de asma, apenas nao ocorreram exacerbaçoes em crianças com a doença pré-existente, em sua apresentaçao leve;nao houve averiguaçao do uso do medicamento durante a gestaçao e seus possíveis efeitos nas crianças; os resultados apenas indicaram que, em doses habituais, conforme necessário (mediana de 5,5 doses de medicaçao durante o estudo ao longo de 48 semanas), o uso de paracetamol, em comparaçao com o ibuprofeno, nao agravou a asma ou sibilos em crianças. É possível que o fato de o estudo englobar apenas os maiores de um ano e já apresentarem asma persistente leve, pode ter comprometido a robustez dos resultados. Sabemos que em nosso país existe culturalmente um medo excessivo da febre, fazendo com que os cuidadores usem frequentemente doses de medicamentos nas crianças que, por vezes, ultrapassam a posologia recomendada, podendo implicar em overdose e propiciar açoes tóxicas do fármaco. Em contrapartida, este estudo pode sugerir que os pais de crianças que recebam tratamento para asma fiquem tranquilos com esses resultados, no que se refere ao uso de paracetamol em doses habituais; entretanto, infelizmente, como o estudo nao pôde ser realizado de forma controlada por placebo, nao é possível fazer consideraçoes definitivas sobre a questao.
Em estudo publicado no Journal of Asthma, Lourido-Cebreiro et al. avaliaram várias coortes onde a exposiçao da mae durante a gestaçao ao paracetamol implicou no aumento do número de crianças asmáticas, porém, nas pesquisas avaliadas, essa associaçao poderia ser explicada, em parte, por fatores de confusao envolvidos3.
Em conclusao, observamos que vários sao os motivos sugerindo que existe uma associaçao entre o uso de paracetamol durante a gestaçao ou durante a infância e o aumento do número de casos de asma, porém ainda nao existem evidências suficientes para uma afirmaçao categórica, devendo a classe médica estar atenta a essa possibilidade e avaliar cada caso em particular, além de reforçar a orientaçao para o uso parcimonioso de medicaçoes analgésicas e antipiréticas.
REFERENCIAS
1. MS / FIOCRUZ / SINITOX - Evoluçao dos Casos Registrados de Intoxicaçao Humana por Agente Tóxico. Brasil, 2013. http://sinitox. icict.fiocruz.br/sites/sinitox.icict.fiocruz.br/files//Tabela10_2013.pdf.
2. Liu X, Liew Z, Olsen J, Pedersen LH, Bech BH, Agerbo E, et al. Association of prenatal exposure to acetaminophen and coffee with childhood asthma. Pharmacoepidemiol Drug Saf. 2016;25:188-95.
3. Lourido-Cebreiro T, Salgado FJ, Valdes L, Gonzalez-Barcala FJ. The association between paracetamol and asthma is still under debate. J Asthma. 2017:54:32-8.
4. Araújo GV, Barreto BAP, Sarinho ESC, Stefani GP, Chong Neto HJ, Chiabai J, et al. Paracetamol e asma: evidências atuais. Braz J Allergy Immunol. 2013;1:297-304.
5. Sheehan WJ, Mauger DT, Paul IM, Moy JN, Boehmer SJ, Szefler SJ, et al; NIH/NHLBI AsthmaNet. Acetaminophen versus ibuprofen in young children with mild persistent asthma. N Engl J Med. 2016;375:619-30.