Vasculite urticariforme: um pequeno ensaio sobre a importância do olhar
Urticarial vasculitis: a brief essay on the importance of observation
Bruno Emanuel Carvalho Oliveira
Instituto de Alergia de Natal - Natal, RN, Brasil
Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação desta carta.
Prezado Editor,
A paciente entrou no meu consultório com um olhar triste e cansado, mas ao mesmo tempo, demonstrava força e disposição por ter acordado de madrugada para sair da sua pequena cidade chamada Carnaúba dos Dantas, na região do Seridó, Rio Grande do Norte, em direção à capital Natal para encontrar respostas e um diagnóstico que até então ninguém conseguia lhe dar. Em que posso ajudá-la? Perguntei e ela respondeu: "Doutor, o senhor é a minha última esperança! Estou com um problema grave na pele, passei por quatro médicos e nenhum deles quis me olhar!" Isso mesmo, segundo ela, nenhum dos colegas por quem procurou quis se levantar, solicitar que ela se despisse para avaliar suas lesões dermatológicas e fazer algo que é basilar em nossa profissão médica, o exame físico.
Ao realizar a anamnese, a paciente relata ter tido diagnóstico de "alergia" há cerca de seis meses e que desde então estava fazendo uso diário de corticoide e anti-histamínicos sedantes em doses altas, o que a impedia de realizar a sua função de artesã pela intensa sonolência que passou a ter. Nesse período ganhou oito quilos e começou a ter fraqueza muscular e picos hipertensivos.
Durante o exame físico, percebi que as lesões dermatológicas eram provavelmente compatíveis com um quadro clínico de vasculite urticariforme. Peguei algo muito simples e que todos nós podemos ter no consultório - uma lâmina de vidro de microscopia, e confirmei que as lesões não desapareciam à vitropressão - manobra simples de semiologia e que nos ajuda a fazer o diagnóstico diferencial entre urticária e vasculite urticariforme.
Solicitei exames, uma biópsia e, pela presença de efeitos adversos ao uso prolongado, iniciei o desmame do corticoide. No retorno os exames demonstraram níveis normais das proteínas do complemento (C3, C4 e C1q) e a biópsia confirmou o diagnóstico de vasculite. Estava diante, portanto, de um diagnóstico de vasculite urticariforme normocomplementêmica.
A vasculite urticariforme (VU) é uma vasculite cutânea rara de pequenos vasos caracterizada por episódios recorrentes de lesões semelhantes a pápulas que tendem a durar mais de 24 horas e que cursa com uma hiperpigmentação pós-inflamatória equimótica residual. O padrão histopatológico é o da vasculite leucocitoclástica que consiste em necrose fibrinoide das paredes dos vasos dérmicos e infiltrados inflamatórios perivasculares ricos em neutrófilos. Embora a sua etiopatogênese permaneça ainda indefinida, a VU é agora considerada uma doença causada por complexos imunes com ativação da cascata do complemento, levando à produção exagerada de anafilatoxinas que são responsáveis pelo recrutamento e ativação de neutrófilos. Esta condição pode ser categorizada em duas entidades principais de acordo com os níveis séricos de complemento: VU normocomplementêmica e VU hipocomplementêmica (baixos níveis de C1q e C4 e níveis de C3 de diminuição variável), sendo esta última associada a autoanticorpos anti-C1q circulantes e possíveis manifestações extracutâneas. É necessário pensar e excluir importantes diagnósticos diferenciais como penfigoide bolhoso, púrpura de Henoch-Schönlein, lúpus eritematoso túmido, síndrome de Wells, eritema multiforme, mastocitose cutânea, síndromes periódicas associadas a criopirinas (CAPS), dentre outras1.
A VU é principalmente idiopática, mas pode estar associada a uso de medicamentos, malignidade, autoimunidade e infecções. Em algumas situações é uma condição de difícil tratamento, e o mesmo deve ser conduzido pela gravidade do envolvimento cutâneo e sistêmico. Os corticosteroides são eficazes no tratamento de sintomas cutâneos na maioria dos pacientes com VU, entretanto, a sua administração em longo prazo pode levar a efeitos adversos potencialmente graves. A adição de agentes imunomoduladores ou imunossupressores muitas vezes permite a redução gradual dos corticosteroides e melhora a eficácia da terapia. Até o momento, não há nenhum consenso sobre qual a melhor medicação a ser utilizada e as recomendações de manejo se baseiam principalmente em relatos de casos e estudos retrospectivos2.
Em nosso caso, iniciamos um imunossupressor, acompanhamento conjunto com um endocrinologista, e após seis meses de acompanhamento a paciente teve remissão clínica dos sintomas, perdeu peso, não teve mais picos hipertensivos e voltou a fazer suas peças de artesanato que são a fonte de renda da sua família. No entanto, sabemos que o curso da VU pode ser duradouro e de difícil controle clínico.
O que devemos perguntar de imediato é o porquê da perda do valor de uma etapa tão crucial em nossa prática médica diária - o "olhar" em todas as suas dimensões.
Quando eu vejo casos clínicos assim me vem em mente uma das pinturas que mais representam o nosso labor profissional, a pintura The doctor (1887, The Tate Britain, Londres) do pintor britânico Samuel Luke Fildes (1843-1927), que é frequentemente utilizada em quase todos os contextos da nossa cultura contemporânea quando se consideram as qualidades ou deficiências da profissão médica.
A célebre obra retrata um médico em visita domiciliar. Ele demonstra assistir a um filho de um trabalhador empobrecido, a cama é improvisada por duas cadeiras juntas que servem como leito para a criança, o interior da casa é humilde e condizente com o status de um operário. A figura central é o imponente médico, olhando atentamente para o seu paciente, enquanto ao fundo o pai apoia a mão sobre os ombros de sua esposa que está em posição de súplica ou oração. O uso hábil da luz e da perspectiva por Fildes se concentra no olhar do médico para o seu paciente. Outro detalhe são alguns dos apetrechos utilizados pelo médico na sua vigília. Há um pilão, um copo e uma colher sugerindo que ele pode ter feito uma poção ou cataplasma para aplicar na criança doente, mas nenhuma evidência de equipamentos comumente usados na época em que o quadro foi pintado, como um estetoscópio ou um termômetro. É provável que, nesta altura, um médico já tivesse adotado as práticas da biomedicina, que exigiam provas quantitativas e mensuráveis, em vez de se basearem na observação e no julgamento qualitativos3.
A pintura nos leva a refletir sobre o exercício atual da profissão médica. Na verdade, a essência é a representação da qualidade da "centralidade no paciente", uma característica essencial da relação médico-paciente contemporânea e uma consideração importante para todos os médicos.
Muito tempo já se passou desde que o artista deu vida ao quadro, mas as fortes expressões que a obra transmite a respeito da relação médico-paciente são capazes de resgatar esse sentimento profundo que persiste entre os seres humanos na busca da cura de uma doença. A obra foi criada dentro de um contexto médico-social totalmente diverso de hoje, mas a conjunção do ideal de curar e da ânsia de ser curado é algo perene que vence o tempo e as mudanças externas. Assim sendo, essa obra também é perene em significados.
Em seu livro "O Médico", o escritor e pensador Rubem Alves (1933-2014) se inspirou na tela The Doctor para escrever essa pequena-grande obra na qual afirma: "Amei esse quadro a primeira vez que o vi, sem entender. Talvez ele seja a razão por que, quando jovem, por muitos anos, sonhei ser médico. Amei a beleza da imagem de um homem solitário, em luta contra a morte. Diante da morte todos somos solitários. Amamos o médico não pelo seu saber, não pelo seu poder, mas pela solidariedade humana que se revela na sua espera meditativa. E todos os seus fracassos (pois não estão, todos eles, condenados a perder a última batalha?) serão perdoados se, no nosso desamparo, percebermos que ele, silenciosamente, permanece e medita, junto conosco"4.
Nos dias atuais, a classe médica, sempre sob pressão e com a necessidade de trabalhar à exaustão a fim de obter remuneração condigna, pode estar se esquecendo da importância da beleza do olhar representado por Filds e da necessidade de, como aduz Rubem Alves, permanecer, na melhor concepção da palavra, junto ao paciente em seu desamparo.
Referências
1. Moore J. What Sir Luke Fildes'1887 painting The Doctor can teach us about the practice of medicine today. British Journal of General Practice. 2008 Mar 1;58(548):210-3.
2. Marzano AV, Maronese CA, Genovese G, Ferrucci S, Moltrasio C, Asero R, et al. Urticarial vasculitis: Clinical and laboratory findings with a particular emphasis on differential diagnosis. Journal of Allergy and Clinical Immunology. 2022 Apr;149(4):1137-49.
3. Kolkhir P, Grakhova M, Bonnekoh H, Krause K, Maurer M. Treatment of urticarial vasculitis: A systematic review. The Journal of Allergy and Clinical Immunology [Internet]. 2019 Feb 1;143(2):458-66.
4. Alves R. O médico. Campinas: Papirus Editora; 2012.