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Revista oficial da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia ASBAI
Revista oficial da Sociedad Latinoamericana de Alergia, Asma e Inmunología SLaai

Número Atual:  Outubro-Dezembro 2024 - Volume 8  - Número 3


CARTA AO EDITOR

O relatório Lancet Countdown América Latina de 2023 sobre saúde e alterações climáticas

The 2023 Latin America report of the Lancet Countdown on health and climate change

Marilyn Urrutia-Pereira1; Herberto Jose Chong-Neto2; Dirceu Solé3


1. Universidade Federal do Pampa, Pediatria - Uruguaiana, RS, Brasil
2. Complexo Hospital de Clínicas - Universidade Federal do Paraná, Pediatria - Curitiba, PR, Brasil
3. Disciplina de Alergia, Imunologia e Reumatologia Pediátrica - Escola Paulista de Medicina - Universidade Federal de São Paulo - São Paulo, SP, Brasil


Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação desta carta.




Caro Editor,

O relatório Lancet Countdown América Latina de 2023 sobre saúde e alterações climáticas: a necessidade de um desenvolvimento resiliente ao clima com foco na saúde1, acaba de ser divulgado e nele são apontados pontos muito importantes para que consigamos um continente mais saudável, como se segue.

O renomeado centro regional Lancet Countdown América Latina (LCAL) ampliou seu âmbito geográfico agregando o México e cinco países da América Central: Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras e Panamá, como resposta à necessidade de maior colaboração numa região com intensas disparidades sociais, incluindo capacidades de investigação e financiamento.

Este centro é uma colaboração independente e multidisciplinar que monitora as relações entre saúde e mudanças climáticas na América Latina (AL), seguindo os métodos e os cinco domínios do Lancet Countdown Global.

O relatório 2023 do LCAL apresenta 34 indicadores que acompanham a relação entre saúde e mudanças climáticas até 2022, com o objetivo de fornecer evidências para a tomada de decisões públicas com o objetivo de melhorar a saúde e o bem-estar das populações latino-americanas e reduzir as desigualdades sociais com ações climáticas centradas na saúde.

Este relatório mostra que os países continuam a registar uma exposição crescente às mudanças climáticas, com uma tendência de aquecimento em todos os países latino-americanos. Em 2022 a população foi exposta a temperaturas ambientes, em média, 0,38 ºC superior ao período 1986-2005, sendo o Paraguai o país que experimentou a maior anomalia (+1,9 ºC), seguido pela Argentina (+1,2 ºC) e Uruguai (+0,9 ºC) (indicador 1.1.1).

Em 2013-2022, crianças menores de 1 ano foram expostos a 248% mais de dias de ondas de calor, e as pessoas com mais de 65 anos de idade, a 271% mais dias de onda de calor do que em 1986-2005 (indicador 1.1.2). Além disso, entre os anos 2013-2022, o calor aumentou o risco moderado e alto de estresse térmico durante atividades físicas leves ao ar livre na América Latina (indicador 1.1.3), com um aumento da mortalidade relacionada ao calor de 140% (indicador 1.1.4).

As mudanças nos ecossistemas provocou um risco aumentado de incêndios florestais, expondo indivíduos a alto risco de incêndio durante períodos mais longos (indicador 1.2.1).

O potencial de transmissão para o mosquito da dengue aumentou em 54% de 1951-1960 a 2013-2022 (indicador 1.3), o que é consistente com os surtos recentes e casos crescentes de dengue observados em toda a América Latina nos últimos meses.

Com base neste relatório, há três mensagens-chave que a região deve seguir explorando e avançando para alcançar um desenvolvimento resiliente às alterações climáticas focado na saúde.

Os países latino-americanos exigem políticas públicas intersetoriais que aumentem simultaneamente a resiliência climática, reduzam as desigualdades sociais, melhorem a saúde da população e reduzam as emissões de GEE.

As conclusões mostram que as políticas de adaptação na América Latina, continuam escassas, existe uma necessidade urgente de avaliações robustas de vulnerabilidade e adaptação. Até 2021, o Brasil foi o único país que completou o comunicado oficial de vulnerabilidade e adaptação (V&A), realizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Da mesma forma, os esforços no desenvolvimento e a implementação dos Planos Nacionais de Adaptação à Saúde (NAP) são variados e de alcance limitado. Brasil, Chile e O Uruguai são os únicos países que têm NAP (indicador 2.1.2).

Além disso, as avaliações de risco das alterações climáticas realizados pelas próprias cidades são muito limitadas na região (indicador 2.1.3). A colaboração entre setores meteorológicos e de saúde são insuficientes, e apenas Argentina, Brasil, Colômbia e Guatemala relatam ter algum nível de colaboração.

Colômbia e Guatemala relatam algum nível de integração (indicador 2.2.1), que ofereça respostas abrangentes a riscos para a saúde relacionados com o clima na região. Além disso, apesar da necessidade urgente de agir, existem mínimos progressos para o aumento de espaços verdes urbanos em toda a região, e apenas Colômbia, Nicarágua e Venezuela mostram ligeiras melhorias (indicador 2.2.2).

Para agravar esses desafios, há diminuição do financiamento para projetos de adaptação às alterações climáticas na América Latina, como demonstrado pela queda de 16% nos recursos alocados pelo Fundo Verde para o Clima em 2022, em comparação com 2021.

Os países latino-americanos precisam acelerar a transição energética que priorize a saúde e o bem-estar das pessoas, reduzir a pobreza energética, a poluição do ar e maximizar os benefícios econômicos e de saúde.

A utilização de fontes de energia renováveis vem crescendo, aumentando em média 5,7%, o acesso a combustíveis de cozinha limpa continua preocupante, com 46,3% da população rural na América Central e 23,3% na América do Sul sem acesso a combustíveis limpos em 2022 (indicador 3.1.2).

É preocupante a dependência de uso excessivo de combustíveis fósseis, especialmente gás liquefeito de petróleo (GLP), como o principal combustível para cozinhar: 74,6% dos países latino-americanos dependem do GLP para cozinhar.

Os combustíveis fósseis continuam dominando a energia de transporte rodoviário na América Latina, com 96%, embora alguns países da América do Sul estejam aumentando o uso de biocombustíveis (indicador 3.1.3). A mortalidade prematura atribuível ao PM2.5 derivado de combustíveis fósseis mostrou tendências variadas em diferentes países, aumentando 3,9% entre 2005 e 2020 em toda a América Latina, o que corresponde a 123,5 mortes prematuras por milhão de pessoas (indicador 3.2.1).

Os países latino-americanos com a maior taxa de mortalidade prematura atribuível a PM2.5 em 2020 foram Chile, Peru, Brasil, Colômbia, México e Paraguai. Do total de mortes prematuras atribuíveis às PM2.5, 19,1% vieram de transportes, 12,3% de domicílios, 11,6% da indústria e 11% da agricultura.

Considerando a emissão e captura de GEE, o desmatamento e a expansão de terras agrícolas continuam a ser os principais responsáveis pela perda de cobertura arbórea na região, já que representam cerca de 80% da perda total (indicador 3.3).

Além disso, a produção de alimentos de origem animal na América Latina contribui com 85% das emissões agrícolas de equivalente de CO2, sendo Argentina, Brasil, Panamá, Paraguai e Uruguai os países com maiores emissões per capita (indicador 3.4.1). Do ponto de vista da saúde, em 2020, aproximadamente 870.000 mortes foram associadas a dietas desequilibradas, das quais 155.000 (18%) estavam ligadas a alto consumo de carne vermelha e produtos processados e lácteos (indicador 3.4.2).

Como demostrado neste relatório, os níveis de poluição atmosférica, tanto ao ar livre quanto dentro de casa, são um grande problema em toda a região, com disparidades acentuadas entre áreas urbanas e rurais. Em 2022, Peru, Chile, México, Guatemala, Colômbia, El Salvador, Brasil, Uruguai, Honduras, Panamá e Nicarágua estavam entre os 100 países mais poluídos do mundo.

A transição para fontes de energia mais limpas, a eliminação progressiva de combustíveis fósseis e a promoção de maior eficiência energética nos setores industrial e de habitação não são apenas medidas de mitigação das alterações climáticas, mas também enormes para a saúde e oportunidades econômicas para alcançar sociedades mais prósperas e saudáveis.

Os países latino-americanos precisam aumentar o financiamento climático com compromissos financeiros permanentes e bancos multilaterais de desenvolvimento para pavimentar caminhos de desenvolvimentos resilientes ao clima.

As alterações climáticas acarretam custos econômicos significativos e investimentos em medidas de mitigação e adaptação. Em 2022, as perdas econômicas devido a eventos extremos relacionados ao clima na América Latina estavam entre 15.000 e 6.000 milhões de dólares, uma quantia aumentada principalmente devido às inundações e deslizamentos de terra no Brasil, que representa entre 0,28% do Produto Bruto PIB Interno (PIB) da América Latina (indicador 4.1.1).

Ao contrário dos países de rendimento elevado, a maioria dessas perdas não possui cobertura de seguro, o que impõe um considerável encargo financeiro para as famílias afetadas e governos.

A mortalidade relacionada ao calor entre pessoas maiores de 65 anos na América Latina atingiu níveis alarmantes, com perdas que excedem o equivalente ao rendimento médio de 451.000 pessoas por ano (indicador 4.1.2). A perda potencial total de rendimento devido à redução da capacidade de trabalho relacionada ao calor representa 1,34% do PIB regional, afetando desproporcionalmente aos setores de agricultura e construção (indicador 4.1.3).

O custo econômico da mortalidade prematura devido à poluição foi considerável, equivalente a uma parte importante do PIB regional (0,61%) (indicador 4.1.4). Os investimentos em energias limpas na região aumentaram em 2022, superando os investimentos em combustíveis fósseis. No entanto, em 2020, todos os países analisados seguiram oferecendo preços líquidos de carbono negativo, revelando subsídios para combustíveis fósseis totalizando 23.000 milhões de dólares.

A Venezuela teve os subsídios líquidos mais elevados em relação aos gastos atuais com saúde (123%), seguidos por Argentina (10,5%), Bolívia (10,3%), Equador (8,3%) e Chile (5,6%) (indicador 4.2.1).

A energia baseada em combustíveis fósseis é hoje mais cara que a energia renovável; a queima de combustíveis fósseis impulsiona as alterações climáticas e danifica o ambiente do qual as pessoas dependem; e a poluição do ar derivada da queima de combustíveis fósseis causa 7 milhões de mortes prematuras por ano, além de causar uma carga considerável de doenças.

A transição para uma energia saudável e livre de emissões, a transição para sistemas alimentares saudáveis e a aceleração dos esforços de adaptação seria economicamente rentável. No entanto, para aplicar políticas de mitigação e adaptação que também melhorem o bem-estar social e prosperidade, são necessários sistemas financeiros mais fortes e sólidos.

O financiamento climático nos países latino-americanos é escasso e depende em grande parte a mudanças políticas, o que ameaça respostas adequadas para desafios atuais e futuros.

É evidente que o progresso na agenda climática está atrasado em relação ao ritmo urgentemente necessário, a participação dos governos continua insuficiente, mas a cobertura jornalística de saúde e mudanças no clima tem aumentado, atingindo o seu ponto mais alto em 2022, embora a proporção de artigos jornalísticos sobre mudanças climáticas em que a saúde é discutida tenha diminuído ao longo do tempo (indicador 5.1).

Embora tenha havido um crescimento significativo de artigos científicos focados na América Latina, isso ainda representa menos de 4% das publicações mundiais sobre o assunto (indicador 5.3). E, embora a saúde fosse mencionada pela maioria dos países latino-americanos no Debate Geral da ONU 2022, apenas alguns abordaram a intersecção da saúde e as alterações climáticas, indicando uma falta de consciência em nível governamental (indicador 5.4).

O relatório do Lancet Countdown Latino América 2023 destaca impactos na saúde em cascata agravados pelas mudanças climáticas antropogênicas, marcadas por uma maior exposição a ondas de calor, incêndios florestais e doenças transmitidas por vetores.

Assim, o relatório enfatiza três mensagens críticas:

- ação urgente para implementar políticas públicas interdisciplinares que melhorem a resiliência ao clima em toda a região;

- a necessidade urgente de priorizar uma transição energética que se concentre em cobenefícios para a saúde e o bem-estar;

- aumentar o financiamento para o clima comprometendo-se com esforços financeiros e compromisso sustentado com bancos multilaterais de desenvolvimento.

Compreendendo os problemas, resolvendo as lacunas e tomando as medidas decisivas e necessárias, a América Latina poderá navegar efetivamente, promovendo um futuro mais sustentável e resiliente para a sua população.

 

Referências

1. Hartinger SM, Palmeiro-Silva YK, Llerena-Cayo C, Blanco-Villafuerte L, Escobar LE, Diaz A, et al. The 2023 Latin America report of the Lancet Countdown on health and climate change: the imperative for health-centred climate-resilient development. The Lancet Regional Health - Americas 2024; 100746. doi.org/10.1016/j.lana.2024.100746.

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