Anafilaxia perioperatória: muito grave, não tão rara, mas ainda negligenciada e pouco conhecida
Perioperative anaphylaxis: very serious, not so rare, but still neglected and poorly understood
Marcelo Vivolo Aun
Hospital Israelita Albert Einstein, Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein School of Medicine. FMUSP, Disciplina de Imunologia Clínica e Alergia
As anafilaxias perioperatórias estão entre as mais graves reações de hipersensibilidade imediata, com letalidade que pode chegar a aproximadamente 5% dos casos1. Este valor supera as estimativas de mortes por anafilaxias por outras causas, que chegam ao máximo de 1%2. Por outro lado, reações imediatas perioperatórias são eventos incomuns, com incidência variando de 1:500 a 1:18.600 procedimentos1. As maiores casuísticas mundiais foram geradas no Reino Unido e na França, nas quais a incidência encontrada girou em torno de 1:10.000 procedimentos3,4. Há um único estudo realizado no Brasil, unicêntrico e prospectivo, que mostrou que essa incidência é maior no nosso meio. Foram encontradas 27,9 reações imediatas grau 1 (cutâneas exclusivas) para cada 10.000 cirurgias, e 7 reações anafiláticas para cada 10.000 procedimentos, ou seja, sete vezes maior que a incidência reportada na Europa Ocidental5. Isso sugere que, apesar de ser um evento incomum, a anafilaxia intraoperatória não deve ser considerada um evento raro. Apesar disso, os médicos anestesiologistas, que são aqueles que deveriam reconhecer a ocorrência dessas reações e prontamente agir para evitar desfecho letal, não estão bem atualizados no tema.
Num estudo de Moura e cols.6, publicado neste número dos Arquivos de Asma Alergia e Imunologia, foi demonstrado que há sérias lacunas no conhecimento dos colegas, o que pode comprometer a assistência aos pacientes que apresentam uma reação imediata durante uma cirurgia. Embora tenham conseguido pouco mais de 10% de respostas aos questionários digitais enviados aos anestesiologistas do estado do Sergipe, os autores demonstraram que mais de 10% desses especialistas não citaram os bloqueadores neuromusculares como possíveis causadores das reações. É necessário destacar que essa é a classe de fármacos mais frequentemente encontrada como causadora das reações em muitas das casuísticas já publicadas7. Além disso, em relação ao manejo da anafilaxia, 10,3% dos entrevistados citaram a reposição de cristaloides como primeira medida terapêutica a ser adotada numa anafilaxia intraoperatória.
Aparentemente, há um insuficiente conhecimento dos anestesiologistas, não apenas sobre as reações intraoperatórias, mas sobre reações de hipersensibilidade a medicamentos. Um outro estudo nacional, publicado nos anais de um evento local e apresentado no Meeting de Hipersensibilidade a Drogas da Academia Europeia de Alergia e Imunologia (DHM-EACCI 2022)8, 104 anestesiologistas responderam a um questionário digital. Houve claras evidências de que conceitos atuais bem sedimentados sobre hipersensibilidade a antibióticos betalactâmicos e anti-inflamatórios não esteroidais (AINE) são desconhecidos por aqueles colegas. Foi demonstrado que 40% acreditava numa alta chance de reatividade cruzada entre penicilina e cefazolina, sendo que hoje é sabido que essa chance é inferior a 2%. Além disso, mais de 90% dos anestesiologistas negava a existência de possível intolerância cruzada entre dipirona e outros AINE8, sendo que os chamados "reatores não seletivos" aos AINE são claramente a maioria desses pacientes.
Podemos postular que esse mau preparo dos anestesiologistas na temática de alergia a drogas possa estar relacionado, ao menos em parte, à pequena participação de docentes especializados em Alergia e Imunologia nos cursos de graduação médica no Brasil. A maioria das faculdades brasileiras não possui a disciplina de Alergia e Imunologia na sua grade curricular. As doenças alérgicas e imunológicas são, frequentemente, ensinadas por outras especialidades com atuação prática nessas mesmas enfermidades, como pediatria, dermatologia, pneumologia, otorrinolaringologia, infectologia, reumatologia, etc. Entretanto, alguns temas como "Hipersensibilidade a Medicamentos", "Alergia Alimentar", "Anafilaxia" e "Erros Inatos da Imunidade" abrangem mais do que um órgão ou sistema, mostrando que, claramente, a participação do especialista em Alergia e Imunologia auxiliando na formação dos médicos seria de grande valia.
Esse conhecimento deficitário claramente não se restringe aos especialistas em Anestesiologia, mas à maioria dos médicos não especialistas em Alergia e Imunologia. Em outros dois estudos nacionais, realizados nos estados do Rio de Janeiro e de Alagoas foi demonstrado que médicos emergencistas, apesar de, em sua maioria, já terem atendido casos de anafilaxia em seus plantões, estavam mal formados e pouco atualizados acerca do manejo dessa síndrome potencialmente fatal.9,10
Com relação à anafilaxia que ocorre durante procedimentos cirúrgicos, é necessário destacar que, mesmo após a conclusão da graduação, os médicos que se especializam em anestesiologia e atenderão essas intercorrências parecem seguir tendo pouca interação com nossa especialidade. Tem havido um grande esforço das duas sociedades médicas, a Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (ASBAI) e a Sociedade Brasileira de Anestesiologia (SBA), em aprimorar a educação médica continuada de seus especialistas. Essas sociedades vêm fazendo colaborações, interagindo durante os seus congressos anuais e gerando produção científica em conjunto na temática da hipersensibilidade perioperatória.11,12 Entretanto, essas atitudes ainda se mostram insuficientes. Precisamos fazer mais para atingir os colegas que atuam frente a frente com os pacientes que apresentam essas reações graves durante as cirurgias. Isso permitirá reduzir a morbimortalidade desses eventos e o correto encaminhamento desses casos para a investigação com os alergistas e imunologistas.
Referências
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6. Moura IVS, Cunha-de-Castro MEP, Macedo ACL, Falheiros BBO. Manejo da anafilaxia perioperatória sob a visão dos anestesiologistas. Arq Asma Alerg Imunol. 2024;8(3):213-24.
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