Conexão da Alergia com a Odontologia: precisamos construir pontes
Connecting Allergy and Dentistry: we need to build bridges
Paulo Eduardo Silva Belluco; Eduardo Souza Lima
1. Escola Superior de Ciências da Saúde - ESCS - Brasília, DF, Brasil
2. Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde de Juiz de Fora - Juiz de Fora, MG, Brasil
Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação desta carta.
Prezado Editor,
O artigo publicado no último número (março/2024) do The Journal of The American Dental Association, intitulado "Gingival hypersensitivity reactions to toothpastes", chamou nossa atenção. Reforçamos que é uma revista indexada de alto impacto na base de dados Scopus (CiteScore 5.0), da conceituada Associação Americana de Odontólogos. O trabalho é uma série de casos, associado a uma revisão de literatura1. Ele se destacou para nós, por mostrar que não é apenas a nossa especialidade de alergistas, nem exclusivamente a profissão de médicos, que se interessa pelas doenças alérgicas. Estamos nos esquecendo dos dentistas!
A publicação científica contempla 11 pacientes provenientes de serviço espanhol, sendo a maioria de mulheres (72,7%) com sensibilidade ao "cinamon". A lesão mais comumente encontrada foi eritema gengival, acompanhado de prurido ou leve desconforto. A pasta dentária foi implicada na gênese dos quadros, uma vez que a descontinuação dela levou ao desaparecimento das lesões. Ressaltamos que diferentes pastas foram implicadas. Eles contextualizam que pode haver na odontologia reações de hipersensibilidade do tipo I, mediada por IgE e do tipo IV, mediada por linfócitos T. As reações de hipersensibilidade tardia são mais frequentes, sendo nesse caso conhecidas como estomatites de contato1. Destacamos que neste serviço de referência, mesmo com suspeita clínica forte e provável intenção de publicação, só foi realizado teste de contato em aproximadamente metade dos casos e em muitas vezes apenas com a pasta dentária! A pergunta pertinente seria, em casos assim, como estaríamos no Brasil?
Admite-se que reações de hipersensibilidade a dentifrícios são incomuns. Isto se deve ao fato de que as pastas estão sendo diluídas em água e saliva durante a escovação1. No entanto, é preciso frisar que as formulações dos cremes dentais são bastante complexas, com vários ingredientes. Estão inclusos abrasivos leves, fluoretos, umectantes, aromatizantes, adoçantes, espessantes, corantes e surfactantes, dentre outros2. Percebe-se ainda que há variações de acordo com o fabricante. Assim, na situação implicada é preciso se testar o dentifrício. Esta é uma máxima na conduta da dermatite de contato em geral: é necessário se testar o produto do paciente! Porém, nós alergistas sabemos que somente testar com pasta não diluída pode induzir a reações falso-positivas. Anton de Groot, renomado especialista, aconselha que seja realizado inicialmente um teste semiaberto ou fechado com a pasta não diluída. Porém, como já dito, este teste sendo positivo, não comprova alergia. Assim, a pasta deveria ser adicionalmente testada em diluições seriadas (pura, 50% e 20% diluídos em vaselina ou água) e/ou testar em controles. A interrupção do uso com reexposição posterior pode ser útil para comprovar relevância clínica de teste positivo2. O alergista é o profissional habilitado e acostumado a realizar tais diluições para a realização destes procedimentos.
Entretanto, o aconselhamento ao paciente só está completo quando se testa os ingredientes, visando se identificar o agente químico ofensor2. O trabalho científico do grupo espanhol citou o artigo que chancelou o lançamento da série latino-americana adaptada para testes de contato no Brasil3. Não há dúvida de que esta série representou um avanço no sentido de se atualizar a nossa antiga bateria padrão brasileira. Para se ter ideia desta importância, recente trabalho levantou as substâncias que mais mostraram sensibilização em pacientes com patologias na cavidade oral. O tetracloropaladato de sódio foi a substância mais implicada, com incrível positividade acima de 27% dos pacientes testados. Para comparação, o sulfato de níquel ficou em segundo lugar, com 23%4. Este mesmo sal, que representa o elemento paládio, está na série latino-americana. Em termos de queilites alérgicas, a série adaptada ainda contempla própolis. O grupo norte-americano de dermatite de contato (NACDG) o aponta entre as substâncias mais prevalentes, com 8,6% de positividade5. Há crescente preocupação com própolis na Europa, já tendo sido incorporado na série base deles6. Relato de lesão perioral por própolis surgiu no Brasil, com o advento da série latino-americana7. Acreditamos que anteriormente não havia relato deste diagnóstico pelo fato desta substância não ser regularmente testada em nosso país. Precisamos mostrar aos dentistas que estamos habituados a realizar testes de contato utilizando esta série, o que representa a possibilidade de se descobrir o agente etiológico específico responsável pela patologia bucal.
Além disso, temos atualmente séries complementares de testes de contato muito boas que devem ser utilizadas em situações assim. A série dental, manipulada por empresa de extratos para testes de contato, é muito similar à equivalente existente na Europa8, mostrando que não estamos mais presos exclusivamente a baterias padrões (Tabela 1). Observando esta série, vemos que nela predomina os acrilatos e certos metais comumente utilizados na dentística. E estas substâncias ampliam muito as possibilidades diagnósticas para os dentistas que lidam com pacientes com reações de hipersensibilidades variadas.
Ao abrir a literatura específica atual vemos com frequência casos que demonstram a importância de séries complementares específicas. Exemplificando, há o caso de uma criança de 8 anos, com queilite há 1 ano. Fez tratamentos tópicos com melhora somente durante o uso, havendo a recorrência com a interrupção. Negava uso de batons e afins. O problema gerava ansiedade familiar. Ao exame, se observava a presença de 4 coroas metálicas. Investigação laboratorial foi normal. Então, decidiu-se por teste de contato que mostrou sensibilidade ao níquel. Negava qualquer contato com instrumentos metálicos. Assim, optou-se pela troca das coroas por resinas, com a remissão total do quadro em 2 semanas9.
Casos com sensibilidade aos acrilatos é ainda mais comum. Como o de uma japonesa, de 41 anos, que utilizou produto de proteção gengival, ao se submeter a clareamento dentário. Um segundo tratamento ocorreu uma semana após. No dia seguinte, a gengiva desenvolveu ulcerações acompanhada de púrpura e edema labial. Feito o diagnóstico clínico de dermatite de contato, foi submetida a teste, que se mostrou positivo a dois acrilatos e três metacrilatos. O produto usado continha 2-hidroxietil metacrilato. A ausência de sintomas no tratamento inicial, mas com reação grave após a segunda aplicação, sugere que foi sensibilizada no primeiro contato com o produto. Reações cruzadas entre metacrilatos são esperadas10.
A cavidade oral deverá ser bem estudada por médicos e odontólogos sempre que houver algum tipo de lesão, seja na mucosa oral ou na língua. Não esquecer de observar os lábios e a região perioral. Esta investigação deverá ser feita através de uma rica anamnese, incluindo avaliação imunoalérgica. Quando bem indicado, sugere-se a realização do teste de contato com série padrão acompanhada de série dental e produtos de uso do próprio paciente.
Acreditamos que precisamos nos aproximar dos odontólogos! Necessitamos que eles conheçam bem a nossa especialidade e que saibam que estamos capacitados a ajudá-los a resolver quando aparecem estes sintomas. Sabemos que eles são, muitas vezes, os primeiros a perceber tais doenças em seus pacientes. E os alergistas necessitam que a nossa Sociedade atue fazendo essa conexão, por exemplo, fomentando palestras para os odontólogos nos principais estados da federação, mostrando a nossa expertise e o trabalho de excelência que já fazemos e que não paramos de aperfeiçoar.
É hora de construir pontes...
Referências
1. López-Pintor RM, González-Serrano J, Ivaylova Serkedzhieva K, Serrano Valle J, de Arriba L, Hernández G, et al. Gingival hypersensitivity reactions to toothpastes. J Am Dent Assoc. 2024;155(3):213-226.e3. doi:10.1016/j.adaj.2023.11.003.
2. de Groot A. Contact Allergy to (Ingredients of) Toothpastes. Dermatitis. 2017;28(2):95-114. doi:10.1097/DER.0000000000000255.
3. Belluco PES, Giavina-Bianchi P, Belluco RZF, Novaes MRCG, Reis CMS. Prospective study of consecutive patch testing in patients with contact dermatitis using an adapted Latin American baseline series. Eur Ann Allergy Clin Immunol. 2023;55(05):235. doi:10.23822/EurAnnACI.1764-1489.250.
4. Al-Gawahiri M, Rustemeyer T, Franken SM, van Zuuren EJ, Ipenburg NA. Frequency and clinical relevance of contact allergy in dental patients. Contact Dermatitis. 2024;90(1):66-73. doi:10.1111/cod.14440.
5. Dekoven JG, Warshaw EM, Reeder MJ, Atwater AR, Silverberg JI, Belsito D V, et al. North American Contact Dermatitis Group Patch Test Results: 2019-2020. Dermatitis. 2023;34(2):90-104. doi:10.1089/derm.2022.29017.jdk
6. Wilkinson M, Gonçalo M, Aerts O, Badulici S, Bennike NH, Bruynzeel D, et al. The European baseline series and recommended additions: 2019. Contact Dermatitis. 2019;80(1):1-4. doi:10.1111/cod.13155.
7. Belluco PES, Belluco RZF, Reis CMS. Allergic contact cheilitis caused by propolis: case report. Einstein (Sao Paulo). 2022;20:eRC6151. https://doi.org/10.31744/einstein_journal/2022RC6151.
8. Chemotechnique Diagnostics. Patch Test Products & Reference Manual. 2024 [Internet]. Disponível em: https://www.chemotechnique.se/ckfinder/userfiles/files/Katalog%202024%20w%20cover2.pdf.
9. Zeng Q, Wang S, Cheng L, Mu J, Yang J, Zhou H. Allergic contact cheilitis caused by nickel from stainless steel crowns in primary molars: An easily overlooked intraoral allergen in children? Contact Dermatitis. 2023;89(6):505-7. doi:10.1111/cod.14413.
10. Hayakawa M, Baba Y, Kouno M. Allergic Contact Stomatitis Caused by (Meth)acrylates in a Gingival Protection Product Used During Teeth Whitening. Dermatitis®. 2024;35(1):96-8. doi:10.1089/derm.2023.0180.