Alergia IgE mediada ao leite de vaca no adulto - fenótipo raro
Adult IgE-mediated cow's milk allergy - a rare phenotype
Sónia Pereira Garcia1; Duarte Rodrigues Silva2; Isabel Rezende2
1. Unidade Local de Saude de Gaia e Espinho, Imunoalergologia - Vila Nova de Gaia, Porto, Portugal
2. Centro Hospitalar Universitario do Porto, Imunoalergologia - Porto, Porto, Portugal
Endereço para correspondência:
Sónia Pereira Garcia
E-mail: eugeniagarcia.med@gmail.com
Submetido em: 19/05/2024
Aceito em: 10/07/2024.
Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste artigo.
RESUMO
A alergia às proteínas do leite de vaca é a alergia alimentar mais frequente em crianças, mas, na idade adulta, é rara, com uma prevalência estimada de 0,49-0,6%. Estudos prévios demonstraram que a tolerância espontânea na idade adulta raramente ocorre e que, durante o seguimento, a prova de provocação oral duplamente cega controlada com placebo deve ser usada para avaliação de aquisição da tolerância. Os autores apresentam um caso clínico de uma doente adulta com alergia às proteínas do leite de vaca, sensibilizada à caseína.
Descritores: Hipersensibilidade ao leite, alergia ao leite de vaca, IgE, caseína, adulto.
Introdução
A alergia alimentar constitui um importante problema de saúde pública, atingindo indivíduos em qualquer faixa etária1. É caraterizada por uma resposta imune específica que ocorre de forma reprodutível após exposição a um determinado alimento2.
A alergia às proteínas do leite de vaca (APLV) constitui a alergia alimentar mais frequente em crianças com idade inferior a três anos, contudo, é rara na idade adulta, tendo uma prevalência estimada de 0.49-0.6%. Os mecanismos subjacentes à sensibilização após os primeiros anos de vida são desconhecidos e os casos reportados na literatura são escassos2,3. É provável que a APLV seja mais grave e persistente em adultos46.
O leite de vaca engloba 20 proteínas potencialmente sensibilizantes, verificando-se homologia estrutural e consequentemente reatividade cruzada > 90% com alergênios do leite de vários mamíferos (ex.: leite de ovelha, cabra e camelo)7. A caseína (Bos d 8) e a beta-lactoglobulina (Bos d5) são as mais frequentemente responsáveis pela ocorrência de APLV, sendo que a caseína apresenta elevada estabilidade ao calor8,9. Estudos sugerem ainda que a sensibilização à caseína é habitual nos casos de alergia persistente e em pacientes com comorbilidades atópicas10.
O diagnóstico de alergia alimentar deve ser efetuado com base na história clínica do doente, realização de testes cutâneos, doseamento de IgE específicas e realização de prova de provocação oral duplamente cega controlada por placebo (PPODCCP). Estudos prévios demonstraram que a tolerância espontânea na APLV em idade adulta raramente ocorre e, durante o seguimento, a PPODCCP deve ser usada para avaliação de aquisição da tolerância. A dessensibilização a estes doentes é uma solução, no entanto, reações anafiláticas ocorrem em 25% destes fenótipos, sendo ainda importante ressalvar a inexistência de imunoterapia alergênio específica para APLV11,12.
Relato do caso
Doente do sexo feminino com 59 anos de idade, enviada à consulta de Imunoalergologia por episódio de anafilaxia após ingestão de gelado de nata e caramelo, sem história prévia de APLV. Alguns minutos após a ingestão do gelado apresentou quadro de prurido orofaríngeo, edema labial, sensação de dispneia e de aperto da orofaringe, disartria e exantema macular disperso. Recorreu ao SU, tendo recebido medicação endovenosa que não sabe descrever, com resolução do quadro em menos de quatro horas. Não voltou a ingerir gelados. Ingeria, até à primeira consulta, manteiga e café pingado com leite, apresentando prurido orofaríngeo associado. Não ingeria leite in natura nem iogurtes porque não apreciava o sabor. Consome carne de vaca sem qualquer sintoma.
Efetuou estudo com testes cutâneos por picada (prick test) a alimentos com estrato comercial da LETI Pharma® para leite e proteínas, trigo, ovo, camarão, mistura de peixes, mistura de carnes, amendoim e avelã, cujos diâmetros médios das pápulas foram: histamina 5 mm, leite 7 mm e caseína 7 mm.
Realizou doseamento de IgE total: 1098 KU/L, e de IgE específicas usando o ImmunoCAP FEIA system® (Thermo Fisher Scientific, Uppsala, Sweden): leite 8,41 kUA/L, caseína 13,30 kUA/L, alfa-lactalbumina 0,01 kUA/L e beta-lactoglobulina 0,02 kUA/L.
A doente recusou realizar tanto a prova de provocação como a dessensibilização ao leite.
De momento cumpre evicção de proteínas de leite de vaca (PLV), ovelha e cabra em todas as formas, sem novos episódios de anafilaxia ou prurido orofaríngeo. Foi advertida para a importância da leitura dos rótulos. É portadora de caneta autoinjetora de adrenalina e tem um plano terapêutico com corticoide e anti-histamínico oral, para usar em caso de ingestão acidental, de acordo com os sintomas.
Discussão
Os autores apresentam o caso de uma doente adulta com APLV, e atentam à raridade do surgimento desta entidade após os primeiros anos de vida. Alertam para a persistência da alergia e a possibilidade de ocorrência de reações graves com a ingestão de leite de vaca in natura, fervido ou processado, uma vez que a doente se encontra sensibilizada à caseína. O fato de a doente recusar a realização da prova de provocação e a dessensibilização dificulta a avaliação da aquisição de tolerância. A APLV em adultos ainda está pouco caracterizada na literatura disponível, e provavelmente subdiagnosticada, sendo necessário estudos em coortes mais alargadas para entender os fatores de risco, os diferentes fenótipos e o seu prognóstico.
Referências
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