As novas diretrizes de angioedema hereditário: qual é o seu papel?
The new hereditary angioedema guidelines: what is its role?
Anete Sevciovic Grumach
Livre docente da Disciplina de Imunologia Clínica, Faculdade de Medicina, Centro Universitário FMABC. Membro do Conselho Consultivo de ACARE (Centros de Referência Internacionais em Angioedema) - São Paulo, SP, Brasil
O progresso no conhecimento e diagnóstico de doenças raras foi extraordinário nos últimos anos. Em paralelo, o interesse por estabelecer tratamentos para estas situações também apresentou uma melhora sensível. Guias, diretrizes ou consensos em angioedema hereditário (AEH) têm sido publicados há mais de 20 anos. Inicialmente, estes documentos foram desenvolvidos a partir da experiência de especialistas e sem uma sistemática metodológica1,2. Entretanto, havia a necessidade de estabelecer orientações específicas aos pacientes com angioedema hereditário cujo risco de morte por asfixia era de 25 a 40%. Não havia como ignorar uma entidade clínica cada vez mais diagnosticada e sem recursos terapêuticos apropriados. É importante lembrar que o inibidor de C1 derivado de plasma já estava disponível em países europeus há décadas, apesar da oferta limitada na maioria dos países, inclusive em alguns países desenvolvidos3.
O reconhecimento do sistema cinina-bradicinina como principal mecanismo envolvido no edema representou uma mudança de rumo no tratamento do AEH. A necessidade de tratar as crises e diminuir ou até mesmo eliminar a mortalidade pelo AEH impulsionou o desenvolvimento de medicamentos para tratamento da doença. As diretrizes começam a tomar forma, com estudos comparativos demonstrando eficácia dos tratamentos mais recentes em relação aos convencionais, como a infusão de plasma ou uso de inibidores de plasmina. Protocolos com metodologia mais adequada são inseridos nos consensos, embora as recomendações não sejam ainda necessariamente apoiadas por um nível adequado de certeza das evidências4. O principal objetivo das recomendações de painéis de especialistas é aconselhar os médicos sobre a melhor maneira possível e aceitável de abordar uma determinada tomada de decisão na área do diagnóstico, manejo ou tratamento5.
O tratamento das crises de angioedema foi ampliado com o acesso a novos recursos terapêuticos. A autoadministração e aplicação precoce dos medicamentos diminuíram as visitas à emergência, ou mesmo, hospitalização, reduzindo sensivelmente o tempo de duração das crises. Considerando-se que haveria medicamentos adequados para os ataques, a profilaxia das crises tornou-se a nova meta a ser alcançada. Neste sentido, vários estudos demonstraram a eficácia dos novos medicamentos e o reflexo na qualidade de vida. É importante ressaltar que pacientes com angioedema hereditário adequadamente tratados apresentam a mesma sobrevida que a população geral, e a doença não causa sequelas, permitindo uma vida produtiva. De acordo com publicação recente que avaliou a situação do manejo do AEH em 28 países, existem desigualdades na prestação de serviços e tratamentos em todo o mundo, e o acesso aos tratamentos apropriados ainda é restrito a países desenvolvidos3. A mortalidade por angioedema hereditário em nosso país, registrada pela Associação de Pacientes com AEH (ABRANGHE), ainda impacta no perfil dos nossos pacientes6,7.
Existem inúmeras maneiras de sintetizar as informações biomédicas disponíveis8 para que os profissionais de saúde tomem decisões a partir de fontes heterogêneas. As diretrizes de prática clínica são documentos que geralmente cobrem as informações específicas do contexto, necessárias para fazer recomendações explícitas e idealmente transparentes4,9. Os países de baixa e média renda têm se ajustado lenta e progressivamente aos padrões dos países desenvolvidos, mas sempre ansiando por uma abordagem global do paciente. Torna-se difícil ignorar os avanços na avaliação do paciente com o uso de questionários de qualidade de vida, planos de ação e exames de diagnóstico. As diretrizes de prática clínica são os documentos mais importantes para a incorporação de evidências científicas na tomada de decisão em saúde, porém, deve-se reconhecer algumas limitações deste processo, principalmente em países em desenvolvimento. Entretanto, desconhecer a evolução no tratamento do angioedema hereditário seria negar o papel relevante dos novos recursos terapêuticos.
Com os avanços descritos, os consensos foram substituídos em grande parte por diretrizes, incorporando evidências científicas9,10. As diretrizes de prática clínica não são livros de receitas, pois podem ter limitações em sua disponibilidade e aplicabilidade no contexto local. Entretanto, podem atuar como uma atualização para que os protocolos clínicos de diagnóstico e terapêutica (PCDT), instrumentos essenciais para implementação de novos recursos, sejam revistos. O Ministério da Saúde tem utilizado o instrumento AGREE II (Appraisal of Guidelines for Research & Evaluation II) que avalia seis domínios: o escopo e finalidade, participação dos envolvidos, rigor em sua elaboração, clareza e especificidade das recomendações e aplicabilidade da proposta11-13. Dessa forma, a expectativa é que as diretrizes publicadas aqui nos "Arquivos de Asma, Alergia e Imunologia" contribuam para um melhor diagnóstico e tratamento do paciente com angioedema hereditário, alcançando a recomendação principal das últimas diretrizes da Organização Mundial de Alergia, que é a normalização da vida do paciente.
REFERÊNCIAS
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2. Cabrera PA, Pardo R. Review of evidence based clinical practice guidelines developed in Latin America and Caribbean during the last decade: an analysis of the methods for grading quality of evidence and topic prioritization. Global Health. 201919;15(1):14.
3. Jindal AK, Reshef A, Longhurst H; GEHM workgroup (Global Equity in HAE Management). Mitigating Disparity in Health-care Resources between Countries for Management of Hereditary Angioedema. Clin Rev Allergy Immunol. 2021;61(1):84-97.
4. Kredo T, Bernhardsson S, Machingaidze S, Young T, Louw Q, Ochodo E, Grimmer K. Guide to clinical practice guidelines: the current state of play. Int J Qual Health Care. 2016;28(1):122-8.
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7. ABRANGHE - Associação de Pacientes com AEH. Comunicação pessoal.
8. Franco JVA, Arancibia M, Meza N, Madrid E, Kopitowski K. Clinical practice guidelines: Concepts, limitations and challenges. Medwave. 2020 Apr 30;20(3):e7887. Spanish, English. doi: 10.5867/medwave.2020.03.7887.
9. Maurer M, Magerl M, Betschel S, Aberer W, Ansotegui IJ, Aygören-Pürsün E, et al. The international WAO/EAACI guideline for the management of hereditary angioedema-The 2021 revision and update. Allergy. 2022 Jan 10. doi: 10.1111/all.15214. Epub ahead of print. PMID: 35006617.
10. Betschel S, Badiou J, Binkley K, Borici-Mazi R, Hébert J, Kanani A, et al. The International/Canadian Hereditary Angioedema Guideline. Allergy Asthma Clin Immunol. 2019 Nov 25;15:72. doi: 10.1186/s13223-019-0376-8. Erratum in: Allergy Asthma Clin Immunol. 2020;16:33.
11. Brouwers MC, Kho ME, Browman GP, Burgers JS, Cluzeau F, Feder G, et al.; AGREE Next Steps Consortium. AGREE II: advancing guideline development, reporting and evaluation in health care. J Clin Epidemiol. 2010;63(12):1308-11.
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13. Santana RS, de Oliveira Lupatini E, Zanghelini F, de March Ronsoni R, Rech N, Leite SN. The different clinical guideline standards in Brazil: High cost treatment diseases versus poverty-related diseases. PLoS One. 2018 Oct 17;13(10):e0204723.