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Revista oficial da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia ASBAI
Revista oficial da Sociedad Latinoamericana de Alergia, Asma e Inmunología SLaai

Número Atual:  Maio-Junho 2014 - Volume 2  - Número 3


Editorial

Classificando reações de hipersensibilidade a anti-inflamatórios não-esteroidais (AINEs) na prática clínica: uma tarefa em sete passos

Classifying hypersensitivity reactions to non-steroidal anti-inflammatory drugs (NSAIDs) in clinical practice: a seven-step task

L. Karla Arruda


MD, PhD. Faculdade de Medicina de Ribeirao Preto, Universidade de Sao Paulo (FMRP-USP), Ribeirao Preto, SP. Editora-Chefe do BJAI


Endereço para correspondência:

Luisa Karla Arruda
E-mail: karla@fmrp.usp.br




Desde que os primeiros anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs) como antipirina e aspirina foram sintetizados no final do século XIX, vários outros compostos deste grupo com atividade anti-inflamatória semelhante têm sido desenvolvidos e incorporados à prática clínica para o tratamento de doenças inflamatórias, dor e febre1. O uso muito frequente de AINEs, sendo uma das mais usadas drogas no mundo, tem mostrado paralelo com a ocorrência crescente de reações adversas a essas drogas, que podem variar desde erupções cutâneas leves a sintomas graves e anafilaxia1. AINEs são a primeira ou segunda causa, secundários apenas a antibióticos, de reações adversas a fármacos, dependendo da população estudada1,2.

No Brasil, Aun e colaboradores estudaram anafilaxia a fármacos em pacientes atendidos em ambulatório especializado3. Após avaliação de 806 pacientes entre 2 a 70 anos com reação de hipersensibilidade a drogas, 117 foram diagnosticados com anafilaxia. Os autores mostraram que os AINEs foram a causa mais frequente de anafilaxia por fármacos, sendo responsáveis por 48,7% das reações (n = 57 pacientes), seguidos de látex, anestésicos locais e antibióticos. De forma interessante, após investigação sistemática, a causa de reação a fármacos foi encontrada em 76% dos casos. Dentre os AINES, aspirina (n = 15 pacientes), dipirona (n = 26 pacientes) e diclofenaco (n = 11 pacientes) foram os mais frequentemente envolvidos, induzindo com frequência reações mais graves, de graus III e IV. Um achado relevante foi que 78 pacientes (66,7%) relataram reações prévias à droga envolvida no episódio de anafilaxia, ou a drogas da mesma classe e/ou grupo, e isso foi particularmente observado para os AINEs, ressaltando a importância do diagnóstico correto e recomendações apropriadas. Ensina e colaboradores destacaram a importância dos AINEs como causa de anafilaxia também em crianças4. Avaliando um grupo de 104 crianças com história de reação de hipersensibilidade a drogas, e média de idade de 10,4 anos, os autores identificaram 26 com sintomas de anafilaxia, em sua maioria de moderada gravidade. AINEs foram a principal classe de drogas envolvidas nas reações anafiláticas (70,6%), sendo dipirona, ibuprofeno e paracetamol os mais frequentemente associados a anafilaxia4. Estes dois estudos recentes chamam a atenção para a predominância de AINEs como causa de anafilaxia a fármacos, tanto em adultos como em crianças, em nosso meio. Sabemos que no Brasil há um elevado uso de dipirona e aspirina, que são potentes inibidores da ciclooxigenase 1 (COX-1), e possivelmente este fato contribui para estas drogas serem responsáveis por muitas das reações de hipersensibilidade a drogas entre nós. O uso da dipirona, também conhecida como metamizole, é muito controverso no mundo, devido a associação com reações hematotógicas graves, como a agranulocitose5. Em muitos países desenvolvidos, a dipirona foi retirada do mercado por esta razão, entretanto em vários países como o Brasil, Alemanha e Espanha, está disponível e é frequentemente utilizada paratratamento de dor e febre.

Reações de hipersensibilidade induzidas por AINEs são caracterizadas por um amplo espectro de sintomas, que podem envolver mecanismos imunológicos e nãoimunológicos, desta forma criando um dos maiores desafios diagnósticos em alergia.

Ao longo da última década, ficou aparente que o diagnóstico clínico e o manejo efetivo das reações de hipersensibilidade a AINEs não podem ser atingidos sem a identificação e entendimento dos mecanismos subjacentes, e que a história clínica isolada pode não ser suficiente para realizar um diagnóstico preciso. A identificação do provável mecanismo pode facilitar a escolha da ferramenta diagnóstica apropriada, e guiar recomendações de estratégias para evitar certos AINEs e de modalidades de tratamento. Provavelmente um dos pontos chave no diagnóstico, com implicações terapêuticas importantes, é definir se trata-se de reação a único AINEs, podendo ocorrer reação a outro AINE com estrutura química semelhante, ou a diferentes AINEs, de grupos químicos distintos. No primeiro caso, pode tratar-se de reação imunológica mediada por IgE ou células T, e no segundo caso, o mais provável é que a reação ocorra por inibição da COX-1, levando à inibição da síntese de prostaglandinas, que é a via de ação farmacológica comum a este grupo de fármacos. AINEs diferem de forma marcante em sua potência em inibir COX-1 e COX-2, o que afeta sua eficácia clínica e ajuda a explicar sua diferente capacidade de gerar efeitos adversos e induzir reações de hipersensibilidade. Aspirina e a maior parte dos AINEs "clássicos" como indometacina, naproxeno e diclofenaco, inibem predominantemente a COX-1 e em menos intensidade a COX-2, enquanto que compostos mais novos foram desenvolvidos que inibem predominantemente a COX-2, como nimesulida e meloxicam, ou que são inibidores seletivos da COX-2, como celecoxib e rofecoxib1.

A classificação atual das reações de hipersensibilidade aos AINEs foi originalmente proposta por Stevenson e colaboradores, em 20016, e modificada pela força-tarefa do ENDA/EAACI7,8. Mais recentemente, Kowalski e Makowska propuseram os sete passos para o diagnóstico de reações de hipersensibilidade aos AINEs9. Esta classificação pode ser implementada na prática clínica de alergia, pois tem por objetivo facilitar a determinação dos padrões clínicos das reações. De uma forma geral, as reações podem ser divididas em reatividade cruzada, que envolvem reações a vários AINEs, não relacionados quimicamente, e em seletivas, quando o paciente tem reação a apenas uma única droga, embora reações a outros AINEs possam ocorrer se eles tiverem estruturas químicas muito semelhantes. Dentre os cinco tipos distintos de reações a AINEs identificados na classificação atual, três são por reatividade cruzada (um respiratório e dois cutâneos): doença respiratória exacerbada por AINEs (NSAIDs exacerbated respiratory disease - NERD), doença cutânea exacerbada por AINEs (NSAIDs exacerbated cutaneous disease - NECD) e urticária/angioedema induzidos por AINEs (NSAID-induced urticaria/angioedema - NIUA); e dois são seletivos e mediados imunologicamente (um cutâneo/anafilático e um tardio): angioedema/anafilaxia induzidos por único AINEs (Single NSAIDs induce urticaria/angioedema/anaphylaxis - SNIUAA) e reações de hipersensibilidade tardia induzida por AINEs (NSAIDs induced delayed hypersensitivity reactions - NIDHR)9. A Tabela 1 ilustra os principais grupos de AINEs de acordo com sua estrutura química.

 

 

A doença respiratória exacerbada por AINEs (NSAIDs exacerbate respiratory disease - NERD), conhecida previamente como Aspirin exacerbated respiratory disease - AERD ou síndrome/tríade de Samter, manifesta-se por sintomas respiratórios como obstrução brônquica, dispneia, congestão nasal e rinorreia, e ocorre em pacientes com asma e/ou rinossinusite com polipose nasossinusal subjacentes. Os sintomas usualmente ocorrem em 30 a 60 minutos da ingestão de aspirina/AINEs, e podem ser acompanhados de sintomas oculares, cutâneos (flushing da parte superior do tórax, urticaria e/ou angioedema), ou gástricos. Os sintomas da doença respiratória subjacente em geral precedem o desenvolvimento da hipersensibilidade a aspirina/AINEs, embora em alguns pacientes o uso de aspirina/AINEs possa precipitar o primeiro ataque de asma. É importante ressaltar que a hipersensibilidade a aspirina/AINEs em paciente com asma é fator de risco para um curso mais grave da asma, e para asma fatal ou quase-fatal. A rinossinusite crônica em geral é grave, associada a polipose nasossinusal recorrente, necessitando de múltiplos tratamentos cirúrgicos. A doença respiratória exacerbada por AINEs (NERD) é uma condição não-imunológica, e um tipo de hipersensibilidade com reatividade cruzada, em que pacientes com hipersensibilidade a um AINEs reagem a aspirina e a outros AINES inibidores da COX-1, enquanto que inibidores fracos de COX-1 e inibidores preferenciais de COX-2 são usualmente bem tolerados. Tem sido postulado que, em indivíduos susceptíveis, a inibição da COX-1 e consequente diminuição da geração de prostaglandinas desencadeia a ativação de mastócitos e eosinófilos, levando à liberação de mediadores químicos, particularmente de cisteinil-leucotrienos. Além disso, polimorfismos nas vias metabólicas de produção de leucotrienos foram identificados em pacientes com esta doença1,2,9.

A doença cutânea exacerbada por AINEs (NSAIDs exacerbated cutaneous disease - NECD) é um tipo de hipersensibilidade que se manifesta por sintomas cutâneos de urticária e/ou angioedema em pacientes com urticária crônica espontânea subjacente. Os sintomas em geral aparecerem entre meia hora a 6 horas após a ingestão de AINE, embora reações imediatas (nos primeiros 15 minutos após a ingestão) e tardias (após várias horas) tenham sido descritas. As lesões cutâneas podem permanecer por várias horas e até por vários dias. Como na doença respiratória exacerbada por AINEs, as reações cutâneas induzidas por aspirina e outros AINEs em pacientes com urticária crônica espontânea são não-imunológicas, do tipo com reatividade cruzada, e têm por base a inibição da COX-1 com aumento da geração de cisteinil-leucotrienos. Portanto, pacientes com NECD apresentam reatividade cruzada entre inibidores da COX-1, sendo os inibidores seletivos da COX-2 usualmente tolerados1,2,9.

A urticária/angioedema induzidos por AINEs (NSAID-induced urticaria/angioedema - NIUA) caracteriza-se pela indução de manifestações cutâneas de urticária e angioedema por aspirina e outros AINEs em indivíduos previamente saudáveis, sem urticária crônica espontânea. A patogênese parece estar associada à inibição da COX-1, mas este mecanismo não é bem documentado9.

A urticária/angioedema/anafilaxia induzidos por único AINEs (Single NSAIDs induce urticaria/angioedema/anaphylaxis - SNIUAA) ocorre em pacientes que relatam reações de hipersensibilidade a um único AINEs, ou a vários AINEs que pertencem ao mesmo grupo químico. Os sintomas variam de urticária leve e angioedema localizado a quadros graves de edema de laringe e anafilaxia, e se desenvolvem em geral em menos de uma hora após a ingestão de um único AINE. Casos de aparecimento de reações em minutos ou mesmo segundos têm sido descritos, por exemplo, com a administração endovenosa de dipirona. Os indivíduos com este tipo de reações são em geral saudáveis, sem doença crônica de base. As características dos sintomas sugerem uma reação alérgica de hipersensibilidade do tipo I, IgE-mediada. Entretanto, a presença de IgE específica no soro ou testes cutâneos de hipersensibilidade imediata positivos podem ser detectados para um número limitado de AINEs, como por exemplo, para pirazolonas2,9.

Finalmente, as reações de hipersensibilidade tardias induzidas por AINEs se caracterizam pelo desenvolvimento de sintomas em geral além de 24 horas da ingestão da droga. As manifestações clínicas tardias mais comuns incluem erupções maculopapulares, erupções fixas a droga, reações de fotossensibilidade, urticária tardia e dermatite de contato (por AINEs de uso tópico). Reações graves de hipersensibilidade, incluindo pustulose exantematosa generalizada aguda, reações cutâneas adversas graves (síndrome de Stevens-Johnson, necrólise epidérmica tóxica e reação a droga com eosinofilia e sintomas sistêmicos), além de lesões órgão-específicas (pneumonite e nefrite) podem ocorrer, mas são menos comuns. O mecanismo proposto é de ativação droga-específica de células CD4+ e CD8+ através do receptor de células T, constituindo uma hipersensibilidade de tipo tardio2,9.

No presente número do BJAI, Menezes e colaboradores discutem os aspectos gerais das reações a fármacos, incluindo sua patogênese e métodos disponíveis para diagnóstico, e focalizam seu artigo de revisão nos dois grupos de fármacos mais comumente envolvidos em reações de hipersensibilidade, os antibióticos betalactâmicos e os anti-inflamatórios não esteroidais10. Em particular, os autores apresentam em detalhes os métodos diagnósticos recomendados e provêm algoritmos para facilitar a abordagem e orientar o melhor manejo de pacientes com estas condições, que muitas vezes constituem um desafio na prática clínica.

Quais seriam então, os sete passos para o diagnóstico de hipersensibilidade a AINEs? De acordo com Kowalski e Makowska9, os passos seriam os seguintes:

Passo 1 - Acessar se trata-se de uma reação previsível (tipo A) ou uma reação adversa não previsível (tipo B).

Passo 2 - Perguntar sobre o tempo de aparecimento da reação.

Passo 3 - Analisar o padrão clínico dos sintomas induzidos pela droga e doenças crônicas subjacentes.

Passo 4 - Perguntar sobre tolerância/intolerância a outros AINEs.

Passo 5 - Confirmar/excluir reatividade cruzada a outros AINEs por testes de provocação oral.

Passo 6 - Considerar testes cutâneos ou testes in vitro no caso de reação a único AINE.

Passo 7 - Considerar testes de provocação oral com o AINEs incriminado, quando a história não é clara ou o diagnóstico definitivo é essencial.

Como pode ser observado, os passos 1 a 4 são baseados na análise da história clínica detalhada do paciente, podendo ser realizados inclusive por médicos não especialistas, e poderiam ser suficientes para o diagnóstico apropriado em alguns pacientes. Entretanto, em muitos casos, a informação adquirida da história não é suficiente, e passos adicionais incluindo testes in vitro e testes de provocação oral podem se tornar necessários, a serem conduzidos pelo médico especialista em alergia. O desafio agora é, então, colocar estes passos na prática clínica!

 

REFERÊNCIAS

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8. Kowalski ML, Asero R, Bavbek S, Blanca M, Blanca-Lopez N, Bochenek G, et al. Classification and practical approach to the diagnosis and management of hypersensitivity to nonsteroidal anti-inflammatory drugs. Allergy. 2013;68:1219-32.

9. Kowalski ML, Makowska JS. Seven steps to the diagnosis of NSAIDs hypersensitivity: how to apply a new classification in real practice? Allergy Asthma Immunol Res. 2015 Jul;7(4):312-20.

10. Menezes UP, Cordeiro DL, Melo JML. Aspectos práticos no diagnóstico e manejo das reaçoes de hipersensibilidade a fármacos. Braz J Allergy Immunol. 2014;2(3):91-106.

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