Vacinas passado e futuro - Reflexões para discussão
The past and future of vaccines - Reflections for discussion
Jorge Kalil
Professor de Imunologia Clínica e Alergia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e Membro da Academia Nacional de Medicina
Endereço para correspondência:
Jorge Kalil
E-mail: jkalil@usp.br
Submetido em: 20/12/2023
Aceito em: 27/12/2023.
Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste artigo.
RESUMO
Neste artigo de opinião, apresento uma breve história do desenvolvimento de vacinas, comentando sobre as formas clássicas de produção de vacinas utilizando o próprio agente infeccioso. Em seguida, abordo as vacinas virais, discutindo seus benefícios e dificuldades e a questão dos sorotipos virais, bem como as vacinas bacterianas e seu relativo sucesso. Apresento nossos estudos sobre doença cardíaca reumática e o desenvolvimento de uma vacina contra infecções estreptocócicas. Também discuto plataformas vacinais, especialmente os sucessos alcançados com vacinas de vetores virais não replicantes e, acima de tudo, o grande êxito das vacinas de RNA mensageiro (mRNA). As vacinas de mRNA tornaram-se possíveis somente após os avanços obtidos com a substituição de nucleotídeos que reduziam a ação da imunidade inata. Serão todas as vacinas desenvolvidas a partir de mRNA no futuro? Em seguida, abordo a questão das vias de administração de vacinas, seja por via subcutânea, intradérmica, intramuscular ou nasal. Exponho dados do meu laboratório sobre o desenvolvimento de uma vacina de instilação nasal que induziu uma resposta de proteção da mucosa, prevenindo a infecção e, consequentemente, a transmissão do SARS-CoV-2. Posteriormente, discuto quais vacinas futuras poderiam ser desenvolvidas para além das doenças infecciosas agudas. Por fim, discuto as vantagens do desenvolvimento de vacinas seguras, eficazes e de uso múltiplo, bem como a forma de torná-las acessíveis à população mundial, promovendo a equidade em saúde.
Descritores: Vacina, vacinas virais, agente infeccioso, vacinas bacterianas, vacinas mRNA.
A vacinação começou no Ocidente com a aplicação por Jenner de extratos de pústulas de varíola bovina (vaccinia) em humanos. Estamos no fim do século XVIII e apesar dos resultados de proteção contra a varíola, claramente observados, houve muita hesitação na utilização desta metodologia, e o mundo levou dois séculos para a erradicação total da doença com a vacinação maciça da população. No caso dessa imunização, temos proteção por reação cruzada entre dois vírus próximos, o da vaccinia, ou varíola bovina, e o da varíola humana. Se Jenner trouxe ao mundo as imunizações, foi Pasteur, quase um século depois, quem trouxe as bases das vacinas. Trabalhando com animais, Pasteur desenvolveu processos de atenuação do agente infeccioso ou sua inativação e várias vacinas veterinárias foram desenvolvidas e utilizadas. O grande desafio, então, era a passagem destes princípios para o homem. Trabalhando com o vírus da raiva em múltiplas passagens em coelhos, obteve o vírus da raiva atenuado que testou em modelos animais. A oportunidade de teste em humanos surgiu com o caso do jovem Joseph Meister que havia sido agredido/atacado por cão raivoso e corria sério perigo de morte. O sucesso foi absoluto e isto foi muito divulgado obtendo aprovação de políticos e população.
A partir de então, muito se pesquisou sobre novas descobertas e muitas vacinas se desenvolveram utilizando estes princípios de proteção cruzada entre agentes infecciosos semelhantes, ou a utilização do agente infeccioso inativado ou atenuado. Podemos afirmar que para as doenças infecciosas nas quais o indivíduo contrai a doença uma vez na vida e fica protegido, uma vacina pode ser desenvolvida. O problema científico se coloca quando a doença não induz diretamente uma imunidade protetora.
A razão mais comum desta evasão são os diferentes sorotipos dos agentes infecciosos. Os sorotipos são pequenas variações de sequência na proteína alvo da resposta imune protetora, que fazem que os anticorpos não reconheçam mais esta proteína e, consequentemente, não haja mais proteção. Anticorpos contra esta proteína modificada são necessários, dando origem a um novo sorotipo.
Uma vacina contra tal agente infeccioso deverá cobrir os vários sorotipos.
A busca de um imunizante universal nesse caso seria essencial, mas não se têm obtido bons resultados. Por isso, foram desenvolvidas várias vacinas cobrindo os sorotipos principais ou sorotipos circulantes com as restrições daí decorrentes.
Se tomarmos o caso do HPV, foi feita a primeira vacina contra os quatro sorotipos sabidamente mais cancerígenos, e depois uma segunda vacina com nove diferentes sorotipos. Vacina cara para preparar e com os inconvenientes de ajuste na busca de equilíbrio de indução de resposta imune protetora compatível aos diferentes sorotipos.
A vacina para a Influenza tem de ser atualizada a cada ano, sua composição é baseada em dados parciais da incidência da doença no respectivo hemisfério no ano anterior. Se a vacina já possui suas limitações imunogênicas por ser de vírus inativado, sobretudo na população mais necessitada, que são os idosos, sua efetividade é muitas vezes baixa, pelo aparecimento de nova cepa não prevista na vacina.
Mais grave é a situação da vacina da dengue. Sabemos que um segundo caso de dengue tende a ser mais grave que o primeiro, devido ao que se chama de ADE (Antibody Dependent Enhancement) em que anticorpos dirigidos contra o vírus mas que não são neutralizantes, facilitam a entrada viral nas células, aumentando a carga viral com consequências clínicas importantes.
Desta forma a vacina tem de induzir anticorpos neutralizantes em quantidades equivalentes, e a queda dos títulos com o tempo pode, ao invés de proteger, induzir doença grave.
Foi o que aconteceu com a vacina da dengue produzida pela Sanofi Pasteur. Depois dos testes clínicos verificou-se que era eficaz em indivíduos que já haviam tido a doença anteriormente. Ainda assim, após alguns anos observou-se que as crianças vacinadas que contraíram a doença apresentavam a forma mais grave da dengue do que as não vacinadas, levando ao grave impasse sobre o uso desta vacina na população.
Quando diretor do Instituto Butantan, coordenei o desenvolvimento da vacina tetravalente atenuada para a dengue. Os vírus haviam sido atenuados no NIH, mas o protótipo vacinal tinha de ser mantido congelado e ser descongelado imediatamente antes da utilização. Sua produção industrial tinha baixíssimo rendimento e estabilidade. A partir destes vírus desenvolvemos sistema de produção maciça dos quatro monovalentes, em condições industriais, aprimoramos o processo de purificação e, sobretudo, de estabilização, permitindo a liofilização.
De protótipo enviado pelo NIH passou-se a produto farmacêutico desenvolvido pelo Instituto Butantan com condições de uso pela população. O teste clínico de fase II foi realizado no meu serviço do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, em São Paulo. Foram incluídos mais de 300 indivíduos, alguns que já haviam tido a doença, e outros não. Obtivemos resultados muito interessantes, sendo observados altos níveis de anticorpos neutralizantes do vírus, além de resposta celular vigorosa, tanto nos grupos previamente infectados, como nos que não tinham sido expostos ao vírus. Aprovamos em seguida o estudo de fase III, em que capacitamos 17 centros de estudos clínicos espalhados pelo Brasil, sobretudo em regiões endêmicas da doença para recrutarmos 17 mil voluntários. O estudo foi lançado com toda pompa e circunstância em fevereiro de 2016 com a presença da Presidente da República, o Governador do Estado de São Paulo e cinco Ministros de Estado, mostrando bem a importância deste estudo para o país. No entanto, houve uma queda da incidência da dengue no Brasil nos anos subsequentes e, sobretudo, houve a diminuição da circulação de certos sorotipos. Como consequência, não foi possível a comprovação da eficácia da vacina para todos os sorotipos. Para os sorotipos até hoje estudados a proteção é de acima de 80%.
Apesar destes avanços, para os vários vírus em que o sistema imune é incapaz de eliminar, há muita dificuldade para o desenvolvimento de vacina. O exemplo mais importante diz respeito à vacina para a AIDS. Enormes avanços no conhecimento da patologia da doença e dos progressos sobre a resposta imune antiviral, o vírus por suas características escapa do sistema imune e, mesmo com as múltiplas tentativas de bilhões de dólares investidos, não há ainda um bom candidato à vacina. Houve a descoberta de muitas terapias antivirais até então praticamente inexistentes, o que por si só é um grande sucesso.
No entanto, pesquisadores observaram que alguns pacientes aidéticos com anos de evolução da doença desenvolveram anticorpos com alta ação neutralizante. A partir dos linfócitos B destes pacientes, foram obtidos vários anticorpos monoclonais com promissora ação terapêutica, sobretudo se combinados, mas estão ainda em estudos clínicos e não passaram à prática médica.
Os epítopos reconhecidos por estes anticorpos monoclonais, assim identificados, talvez tragam luz para o desenvolvimento de uma vacina efetiva para a prevenção da AIDS ou pelo menos para terapia de diminuição de carga viral, reduzindo, assim, drasticamente a transmissão.
Se, com vírus as vacinas são um sucesso inconteste, vacinas antibacterianas são mais difíceis e com frequência, suas eficácias não são tão elevadas.
A vacina clássica BCG desenvolvida aqui na França é vastamente utilizada no Brasil, mas não é uma unanimidade mundial. Difícil para se produzir maciçamente, hoje é pouco disponível no mercado. Com a dificuldade de um ensaio clínico de fase 3 controlado, as observações de vida real de efetividade mostram que a BCG não evita a tuberculose mas a deixa abrandada e, os casos de tuberculose grave são raramente observados em indivíduos vacinados.
Apesar do uso da vacina no Brasil, observou-se o ressurgimento da doença há alguns anos, mesmo com a vigilância constante. Este reaparecimento deve-se provavelmente à maior suscetibilidade dos pacientes aidéticos que também são produtores de bacilos e disseminadores da doença.
Outra vacina clássica, a DTP é um grande sucesso mundial. Utilizada por décadas, praticamente eliminou a difteria nos países que a utilizam e diminuiu enormemente o tétano, causa significativa da mortalidade infantil no Brasil antes da sua utilização.
A componente coqueluche, causada pela bactéria Pertussis, também tem grande sucesso em evitar a doença no Brasil. Nos últimos anos, em vários países, inclusive na França, passou-se a utilizar a vacina Pertussis acelular. Com novas tecnologias utilizando proteínas isoladas, esta vacina acelular evita os efeitos adversos da aplicação da bactéria inteira inativada, mas sua efetividade com os anos mostrou-se bem menor, com queda de proteção com o passar do tempo. Nos vários países que a adotaram observou-se o ressurgimento da doença sobretudo em idosos, onde pode-se apresentar de forma muito grave. Além disso, adultos podem apresentar uma forma frusta da doença e serem portadores da bactéria Pertussis com o risco enorme de transmissão para recém-nascidos, quando a doença é frequentemente fatal.
A vacina contra pneumococo é de extrema relevância, sobretudo para os idosos, mas é de efetividade relativa e de grande dificuldade de produção. Como uma resposta protetora é fundamentalmente contra os açúcares das glicoproteínas bacterianas, existe a necessidade de síntese de grande número de componentes para a obtenção de uma proteção apenas parcial.
Há muitos anos meu grupo de pesquisa trabalha na compreensão dos mecanismos imunopatológicos de doença autoimune desencadeada por infecção bacteriana, trata-se da doença reumática cardíaca, desencadeada pela faringite causada por Streptococcus pyogenes. Há mais de cem sorotipos de Streptococcus pyogenes devidos a variações na sequência de aminoácidos da região N terminal da proteína M, principal antígeno desta bactéria. Descrevemos como as Células T reconhecem cruzadamente a Proteína M do estreptococo e a vimentina do citoesqueleto das células cardíacas. Como estes linfócitos migram para as valvas, perdem o controle pelas células regulatórias e causam as lesões vegetativas, alterando a função valvar.
Descrevemos quais os principais genes de suscetibilidade à doença onde se destacam as moléculas HLA-DR53. A partir daí, fizemos a cartografia da resposta humoral e celular contra peptídeos sintéticos da Proteína M e identificamos uma região com epítopo T, seguida de outra com epitopo B, que estão associados a respostas protetivas.
Descrevemos, assim, uma vacina de peptídeos, sintética, testada em vários modelos animais e foi possível caracterizar boa resposta celular e humoral. O soro dos animais imunizados induz a opsonização das bactérias por células macrófagos, e ficam protegidos contra o desafio de um inóculo fatal com estreptococo. Além disso, a vacina não induz qualquer manifestação autoimune em camundongos ou miniporcos, nem em camundongos geneticamente modificados com os genes HLA DR, que dão a suscetibilidade à doença.
Esta vacina deverá entrar em estudo clínico de Fase I em breve. Se obtivermos os resultados esperados, poderemos evitar as anginas infantis, e sobretudo a grave doença reumática cardíaca, que mata milhares de pessoas, principalmente na África e no Sudeste Asiático.
Se as vacinas bacterianas são limitadas, em seu número e real efetividade, as antiparasitárias são ainda mais difíceis. Os parasitas são organismos complexos com múltiplas formas de evasão no sistema imune. Além da mudança de forma, eles também alteram a expressão de seus antígenos nas múltiplas formas que são adquiridas. Há algumas vacinas contra a Leishmaniose com efeitos limitados no homem, e recentemente há alguns resultados razoáveis em vacina contra a malária. Ainda falta muito conhecimento científico para se entender como seremos efetivos na produção de vacinas contra os parasitas.
As vacinas que utilizam o agente infeccioso ativo e o inativo que eram possíveis de serem desenvolvidas já o foram. Agora a ciência tem de ir além da natureza para a produção de vacinas com a engenhosidade, utilizando a parte importante do agente infeccioso, e isto se traduz na identificação dos alvos da resposta imune, seja através de anticorpos que neutralizam o agente infeccioso, seja a resposta linfocitária CD4 para efetivação auxiliadora e a resposta CD8 com citotoxicidade eliminando células infectadas. Mas aí temos os alvos, que compõem o chamado antígeno.
É necessário na vacina o componente que faça a ligação entre a resposta imune inata e a adaptativa, que servirá como centelha para ignição do fogo da imunidade adquirida protetora e sua respectiva memória. Para isto utiliza-se um adjuvante, que é um produto químico inflamatório ou o próprio veículo do vetor que pode ser um vírus não replicativo, uma partícula semelhante a um vírus, ou outro tipo de nanopartícula que inclua no seu interior ácidos nucleicos como RNA ou DNA, que por si só ativam a imunidade inata.
A comunidade médica científica internacional há alguns anos estava atenta à possibilidade do aparecimento de uma pandemia devido ao adensamento das cidades e pela facilidade de transporte das pessoas em todo o planeta.
Em fevereiro de 2017 participei do simpósio inaugural do CEPI (Coalition for Epidemic Preparedness Innovations) em que expus sobre a epidemia do ZICA e suas possíveis consequências no Brasil e no mundo. Participava do evento, o então Presidente francês, François Hollande, para mostrar a importância que era dada pela França e países ocidentais para a possibilidade de uma pandemia, e como nos preparar para ela. A reunião foi um sucesso, houve recursos aportados para o CEPI, o qual começou a investir num grande programa, para que os grupos, através de plataformas, tivessem maior agilidade no desenvolvimento de drogas e vacinas para as possíveis pandemias.
As plataformas mais relevantes que já estavam em desenvolvimento e que surgiram com muita força e eficácia durante a pandemia do COVID-19 são a de adenovírus não replicativo, e a de RNA mensageiro.
As plataformas que se servem de adenovírus têm o gene do antígeno incorporado no genoma viral. Estes vírus são não replicativos seja porque conseguem infectar mas não se multiplicam nas células humanas. Esse é o caso do adenovírus de chimpanzé utilizado pela Universidade de Oxford que deu origem à vacina comercializada pela Astra Zeneca. O outro sistema utilizado são vírus humanos como o Ad26 utilizado pela Janssen ou o Ad5 utilizado pela Cansino e ambos utilizados pela Sputnik. Nesses casos, um dos genes essenciais para a multiplicação viral em células humanas é suprimido do vírus para que não se multiplique. Para a produção industrial, este vírus é inserido na célula utilizada para replicação viral e depois da produção da massa viral e o isolamento do vírus, esse não mais se multiplica. Quando a vacina é injetada, o vírus se fixa à célula, injeta seu conteúdo de ácido nucleico que será traduzido nas proteínas virais e também no antígeno que será secretado e induzirá a resposta imune esperada. Nas vacinas COVID, esta plataforma foi muito utilizada, e o exemplo está nas empresas citadas. São vacinas que induzem boa resposta imune protetora, e foram, e ainda são, amplamente utilizadas em todo mundo. O maior problema encontrado com o uso em larga escala desta plataforma foi o efeito adverso de indução de púrpura tromboembólica trombocitopênica. Este efeito raro foi observado principalmente em mulheres jovens, mas trouxe muita desconfiança para o uso em larga escala deste tipo de vetor vacinal.
Mas, o grande sucesso que surgiu nesta pandemia foi sem dúvida alguma o surgimento em grande estilo da Plataforma de RNA mensageiro. Trata-se do desenvolvimento de muitos anos e muitos pesquisadores, e a humanidade teve a felicidade que a tecnologia estava em um grau de desenvolvimento que permitiu que se desenvolvessem vacinas eficazes e seguras em um tempo recorde. Há muitos anos se buscavam tratamentos tanto de reposição de gene defeituoso, de câncer e vacinas utilizando o RNA mensageiro, mas havia algumas dificuldades quase intransponíveis, sendo que a mais importante é que o RNA por si só é extremamente inflamatório. O sistema de sinalização da imunidade inata através dos receptores Toll percebem o RNA como se fosse um vírus e desencadeiam uma resposta explosiva. Tudo se modificou graças ao trabalho da bioquímica húngara Katalin Karikó, em colaboração com o imunologista Drew Weissmann, trabalhando na Universidade da Pensilvânia. Eles mostraram que muito da toxicidade se deve ao nucleotídeo de RNA uridine e que a utilização de pseudouridine que mantinha a mesma codificação, eliminava este reconhecimento pela imunidade inata. A outra descoberta fundamental foi o modo de encapsulamento da molécula de mRNA que o protegia das RNAses, permitia a fixação e incorporação do ácido nucleico às células, permitindo sua expressão e exportação extracelular, desencadeando uma resposta imune poderosa. Estas nanopartículas lipídicas têm vários componentes, entre eles o colesterol, fosfolipídio e o polietilenoglicol. Tendo em vista a facilidade da síntese do mRNA in vitro e o aprimoramento das técnicas de encapsulamento, após a sequência da proteína spike ter sido publicada, em apenas 66 dias já haviam sido feitos a síntese da vacina em boas práticas de fabricação, todos testes de imunogenicidade e de toxicidade e o início dos testes clínicos. Realmente um marco na ciência mundial. Essa tecnologia será sem dúvida aperfeiçoada para um melhor controle do tempo de permanência do RNA, a quantidade de antígeno produzido e controle de alguns efeitos adversos. Alguns destes efeitos são devidos à proteína spike propriamente dita e que merece investigação mais aprofundada. Em 2018, nosso grupo havia alertado em artigo publicado antes da pandemia que existe um perigo de desencadeamento de reações anafiláticas na utilização do PEG em medicamentos, fato que foi observado com essas vacinas. Ainda com as vacinas de RNA há o inconveniente da conservação em temperaturas ultrabaixas, que criam muitos problemas de logística. sobretudo em países mais pobres. No Brasil, estes problemas foram resolvidos em parte, pois as populações mais longínquas como as que vivem nas margens do rio Amazonas, por exemplo, não têm acesso a essas vacinas.
Existem outras plataformas que estão sendo desenvolvidas, muitas delas baseadas em partículas semelhantes aos vírus, do inglês VLP (virus like particles), em que o antígeno principal é incluído numa composição só de proteínas, não infeccioso, mas que tem conformação semelhante a um vírus e por si só bastante imunogênico. Há, ainda, vacinas compostas de proteínas antigênicas que são formuladas com adjuvantes potentes e que induzem forte resposta imune.
Estas plataformas estavam todas desenvolvidas, e quando o SARS-CoV surgiu no fim de 2019, e a sequência da proteína spike em fevereiro de 2019, estes diferentes grupos utilizaram a proteína spike para o desenvolvimento das vacinas. A proteína spike era sabidamente essencial para a penetração do vírus na célula, e estes achados haviam sido descritos em estudos feitos com o SARS-CoV que apareceu na China em 2002/2003.
Além das plataformas da produção de vacinas existem também as vias de administração, algo que está evoluindo bastante. Estas vacinas desenvolvidas com rapidez são todas intramusculares, mas, sabemos que a via subcutânea é muito importante por induzir respostas elevadas e eficientes. Há também a questão da intradérmica através de microagulhas, ativando as células de Langerhans. São vacinas que com pequena quantidade de antígeno dão respostas extremamente elevadas e, ainda, na proteção das mucosas, temos de pensar em outras formas de imunização.
Em nosso grupo desde março de 2020, nós trabalhamos numa vacina de instilação nasal para COVID. Logo no início da pandemia nós recrutamos 250 indivíduos que haviam sido infectados por COVID, estudamos detalhadamente a resposta anticorpo e vimos que na verdade uma resposta contra a RBD (Receptor Binding Domain) era suficiente. A spike não precisava ser utilizada completamente, sendo que esta proteína pode estar envolvida nos processos de reações adversas que temos observado. Nós também estudamos utilizando algoritmos os quais os melhores determinantes antigênicos para resposta celular CD4 e CD8, sintetizamos 67 peptídeos das 32 proteínas virais e selecionamos 14 7 CD4 e 7 CD8, que cobrem a interação com as moléculas HLA para serem apresentados e induzirem uma boa resposta celular T. Esse RBD mais o peptídeos foram colocados em dois tipos de nanopartículas após testarmos mais de 50 formulações. A vacina assim preparada foi utilizada por instilação nasal, tendo induzido uma resposta sistêmica com uma produção de IgG neutralizante circulante e também de linfócitos T, que também reconhecem o vírus. Mas, sobretudo, observamos uma resposta IgA na saliva e no lavado broncoalveolar, que era o que buscávamos. Uma resposta deste tipo de imunoglobulina que é a responsável pela proteção das mucosas. Com este tipo de vacina que está na fase de produção dos lotes piloto para testes em humanos, nós almejamos obter uma vacina de RBD muito facilmente cambiável, dependendo de qual variante está circulando e, também induzirmos uma resposta IgA que vai impedir a infecção da mucosa nasal e com isto não teremos a doença, não teremos replicação viral, não haverá transmissão por indivíduos assintomáticos e desta forma pensamos que poderemos controlar completamente a pandemia.
A ciência conseguiu algo recorde em 11 meses, depois do aparecimento de uma doença nova nós tínhamos uma vacina que foi aplicada amplamente e conseguimos controlar a pandemia, ou pelo menos diminuir a incidência e mortalidade desta doença. Se a pandemia irá perdurar, ainda não sabemos, como também fica a incógnita por quanto tempo teremos ainda uma proteção adquirida pela vacinação. O que é motivo de muita reflexão para a comunidade médica é a baixa adesão à vacinação em muitos lugares. Ao trabalho incessante dos grupos antivacinas, impedindo a população de se vacinar e colocando alguns efeitos adversos, que de fato apareceram, como se fossem generalizados a todos. Meios de comunicação diversos devem ser usados para educar a população, não só os meios clássicos como televisão, rádio e jornais, mas os meios digitais como as redes sociais a fim de atingir todas as camadas populacionais.
Vejam que nos EUA, onde conseguiram as vacinas de RNA com grande eficácia, somente dois terços da população foi vacinada. E, mais grave, geralmente a população não vacinada vem das camadas mais carentes e ignorantes. No entanto, os movimentos antivacinas são importantes na população mais educada- isto é um grande problema para o avanço da vacinação mundial e um esforço conjunto de todas as academias seria muito valioso.
Cabe ressaltar que no futuro com todas as diferentes plataformas, os estudos e avanços em imunologia; talvez seja possível fazer vacinas contra algo que não pensamos atualmente, como por exemplo, sobre as doenças infecciosas que invadem a resposta imune em geral, contra o câncer. Hoje temos a vacina Anti-HPV, a qual o vírus induz o câncer, então pode ser considerada uma vacina anticâncer.
Podemos no futuro fazer vacinas contra antígenos específicos de câncer, ou fazermos imunoterapias contra estes antígenos utilizando o princípio vacinal e os checkpoints inhibitors, juntos.
Para as alergias e asma também poderemos, no futuro, ter imunizações contra os alérgenos de forma à indução de IgG e não de IgE que causa a doença. Para as doenças autoimunes, poderemos ter cada vez que descobrirmos qual o agente que as desencadeiam, pois muitas delas são desencadeadas por agentes infecciosos, como a da febre reumática, e talvez para as doenças degenerativas, em muitas das quais existe um componente imunológico no mecanismo degenerativo.
O campo é muito amplo, e podemos fazer uma medicina preventiva de altíssima qualidade usando vacinas.
Eu gostaria de lembrar antes de terminar o que as vacinas nos trazem. A vacina é o ato médico perfeito, pois evita a doença e o sofrimento! Ela é facilmente aplicável na população e o custo é muito baixo. Diminui a mortalidade infantil, ao mesmo tempo que aumenta a expectativa de vida. Mas o que precisamos é divulgar esta informação para a população. As novas tecnologias e as novas vacinas virão e deverão provar seu benefício. Devemos buscar um mundo mais saudável e uma maior equidade e acesso à prevenção de doenças que afligem a humanidade.
* Este artigo foi previamente publicado em francês no periódico Bulletin de l'Académie Nationale de Médecine, Volume 207, Número 9, Dezembro de 2023, páginas 1212-17. https://doi.org/10.1016/j.banm.2023.09.007.