Reativação da BCG após vacina contra COVID-19: relato de caso
BCG reactivation after COVID-19 vaccine: case report
Luis Felipe Ramos Berbel Angulski; Ana Laura Mendes Almeida; Camila Alves Tonami; Jaime Olbrich Neto
HCFMB - Unesp - Departamento de Pediatria - Botucatu, SP, Brasil
Endereço para correspondência:
Luis Felipe Ramos Berbel Angulski
E-mail: lf.angulski@unesp.br
Submetido em: 08/07/2021
Aceito em: 20/09/2021
Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste artigo
RESUMO
A reativação da BCG pode ocorrer em diversos contextos: associada a quadros infecciosos, imunossupressão, autoimunidade e pós-vacinações. Além disso, especialmente em crianças abaixo de 5 anos de idade, deve ser valorizada como um achando presente em cerca de 50% dos casos de Doença de Kawasaki. Neste artigo, relatamos o primeiro caso publicado na literatura de uma paciente adulta jovem, a qual manifestou uma reativação de BCG após receber a primeira dose de vacina contra COVID-19 (AztraZeneca/Oxford/Biomanguinhos). Dentro das primeiras 24h após a administração da vacina, a paciente desenvolveu febre alta, sudorese, dor local, mialgia difusa e cefaleia. Após dois dias, iniciou eritema e enduração no local da cicatriz da vacina BCG. Ela tem como comorbidade a urticária crônica espontânea, porém estava assintomática sem crises há mais de 1 ano. Tem como antecedente familiar relevante o óbito materno por síndrome complexa de sobreposição de autoimunidade (lúpus eritematoso sistêmico, síndrome de Sjögren e síndrome do anticorpo antifosfolípide). Após ser medicada com anti-inflamatórios não esteroides (AINE) e corticoterapia tópica de moderada potência por 3 dias, houve resolução completa da reativação da BCG. A paciente, após 3 meses, recebeu a segunda dose da vacina e não manifestou nenhum sintoma. Acredita-se que a reativação da BCG ocorra devido a um mecanismo de reação cruzada entre HSP do indivíduo, elicitadas como mediadores da imunidade inata frente à inflamação vacinal, com alguns epítopos do M. bovis. Recomenda-se que seja investigada alguma condição imunossupressora ou autoimune nos pacientes que manifestem reativação da BCG, principalmente em adultos, na qual a doença de Kawasaki é bastante rara. As vacinas, incluindo as contra COVID-19, também podem desencadear o surgimento deste fenômeno imunológico ainda pouco compreendido.
Descritores: Vacina BCG, vacinas contra COVID-19, autoimunidade.
INTRODUÇÃO
A reativação da BCG consiste em um processo inflamatório localizado na região de administração da vacina (na região deltoidea direita), podendo se manifestar desde leve hiperemia local até reações mais exuberantes, com formação de eczema, ulceração com exsudação e crostas na pele. Este processo pode ocorrer temporalmente anos após a administração da BCG (no Brasil, ela é aplicada aos recém-nascidos logo ao nascimento). Algumas referências na literatura também a denominam de BCGite, apesar deste termo englobar mais comumente reações do tipo adenomegalia satélite.
Ela é descrita podendo ocorrer em vários contextos, como após quadros infecciosos, geralmente de etiologia viral (vias aéreas superiores ou gastro-enterites, além de relatos publicados com sarampo e HHV-6), além de condições imunossupressoras (uso de fármacos imunossupressores, quimioterapia, infecção pelo HIV ou pós-transplantes). Também está descrita como um processo que ocorre após vacinações diversas e como um sinal clínico indicativo da doença de Kawasaki em cerca de 50% dos casos, apesar de não ser incluída nos critérios diagnósticos para esta doença.
Nesse artigo relatamos o primeiro caso publicado na literatura de uma paciente adulta jovem, a qual foi vacinada contra COVID-19 (AztraZeneca/Oxford) e desenvolveu uma reativação da BCG.
RELATO DE CASO
Paciente de 23 anos, aluna de Medicina, recebeu a vacina contra COVID-19 e cerca de 12h após apresentou calafrios e ardência nos olhos, porém sem hiperemia ou secreção ocular. Após 2h do início do quadro, apresentou febre de 39,4 °C e sudorese, associada com dor no local da administração da vacina e mialgia difusa, principalmente no dorso, e cefaleia frontal. No dia seguinte, observou hiperemia discreta no local da vacina e iniciou inapetência. Após 2 dias, observou vermelhidão e enduração no local da cicatriz da vacina BCG (a qual havia recebido na infância, Figura 1). Ela foi atendida pela equipe do Ambulatório de Eventos Adversos Pós-Vacinais de um Hospital Terciário de referência, sendo examinada e observada uma placa eritematosa com cerca de 2 cm de diâmetro no local da administração da vacina. Foram excluídas outras alterações, como adenomegalias ou sinais de comprometimento sistêmico.
Ela apresentava de comorbidade um quadro de urticária crônica espontânea, a qual havia sido diagnosticada desde os 10 anos de idade, e estava controlada, sem medicações, há mais de 1 ano. Nas crises relatadas, apresentou alguns episódios de urticária acompanhados de angioedema (na face e nas extremidades das mãos e pés), associados com artralgia nos joelhos. Apesar de extensa investigação de etiologias autoimunes, a paciente não fechou critérios para nenhuma outra doença específica.
A paciente havia sido investigada quando recebeu o diagnóstico de urticária crônica, com realização de exames bioquímicos, pesquisa de alguns marcadores tumorais e testes sorológicos para pesquisa de autoanticorpos - ela tinha como antecedente familiar a mãe falecida por síndrome autoimune complexa de sobreposição (lúpus eritematoso sistêmico, síndrome de Sjögren e síndrome anti-fosfolípide). No momento em que foi avaliada pela reativação da BCG, alguns destes exames foram repetidos (Tabela 1). Foi prescrito uso de AINE via oral (nimesulida) e corticoterapia tópica (mometasona creme 0,1%) por 3 dias, com completa resolução do quadro cutâneo.
Ela não apresentou recidiva da urticária, nem qualquer outra manifestação sistêmica, sendo realizado seguimento e contato posterior até 1 mês após a vacinação. A paciente recebeu a segunda dose, programada após 3 meses, e não desenvolveu nenhuma reação, permanecendo assintomática.
DISCUSSÃO DO CASO
O mecanismo fisiopatológico envolvido na reativação da BCG ainda é motivo de controvérsia na literatura. É sugerido um mecanismo imunomediado, através de reações cruzadas entre epítopos micobacterianos com certas chaperonas denominadas HSP (heat shock protein). As chaperonas são uma família de proteínas que estão envolvidas no processamento pós-traducional das proteínas sintetizadas nas células, garantindo o dobramento correto da cadeia polipeptídica, impedindo a agregação e assegurando que pontes dissulfeto sejam estabelecidas entre os aminoácidos sulfatados. Dentre as chaperonas, existem as chamadas HSP (heat shock protein) - proteínas do choque térmico, envolvidas no enovelamento, montagem e transporte de proteínas essenciais para a sobrevivência celular. Sua síntese aumenta na vigência de estresse celular, incluindo infecções, isquemia e outros estresses físicos. Seu papel vem sendo incluído dentro da resposta imunológica inata.
Na doença de Kasawaki, é citada a reação cruzada entre HSP 63 e HSP 65 com antígenos mico-bacterianos explicando a reativação da BCG descrita nesta doença. Outro mecanismo possível descrito na literatura é a reativação de M. bovis quiescentes mantidos adjacentes ao sítio de administração da vacina sob determinadas condições de imunossupressão, havendo inclusive o risco teórico de disseminação sistêmica da infecção, denominada BCGose.
No caso relatado neste trabalho, a única comorbidade apresentada pela paciente é a urticária crônica espontânea, uma doença hoje considerada autoimune em mais de 50% dos casos. São descritos dois mecanismos atuais possíveis para explicar o surgimento da doença: primeiro existe a síntese anormal de IgG contra moléculas de IgE específicas ou seus receptores, presentes na superfície de mastócitos e basófilos (urticária autoimune); segundo, existe a possibilidade do indivíduo desenvolver moléculas de IgE específica que reconhecem um determinado autoantígeno (urticária autoalérgica). Independente do mecanismo associado, os mastócitos e os basófilos acabam sendo ativados, culminando com a liberação de mediadores inflamatórios pré e neoformados, responsáveis pela sintomatologia do quadro e surgimento das urticas.
Sugere-se que a vacina contra COVID-19 possa ter causado uma estimulação inespecífica da imunidade inata, a qual interferiu no equilíbrio mantido entre a presença de M. bovis quiescente e sistema imunológico do indivíduo. Na literatura, especula-se que infecções associadas com imunossupressão transitória, como no sarampo, podem romper este equilíbrio, explicando os casos relatados de reativação de BCG após esta infecção pelo vírus selvagem. Interessantemente, a paciente não apresentou exacerbação da urticária e/ou angioedema, mantendo-se controlada da sua doença de base, sugerindo que a reativação da BCG em si pode não ter relação direta com a urticária crônica espontânea. A mesma também não preencheu critérios para doença de Kawasaki, sendo esta rara acima dos 5 anos de idade.
Portanto, é imperativo investigar alguma condição imunossupressora/autoimune em indivíduos que apresentem reativação da BCG após contextos diversos, como infecções ou reações vacinais, apesar de não haver na literatura nenhum protocolo de investigação sugerido. Nas crianças, principalmente abaixo de 5 anos, especialmente nos lactentes, é fundamental lembrar a possibilidade da doença de Kawasaki na presença deste fenômeno imunológico ainda pouco compreendido.
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