Omalizumabe no tratamento de urticária solar refratária aos anti-histamínicos: relato de caso e revisão da literatura
Omalizumab in the treatment of solar urticaria refractory to antihistamines: a case report and literature review
Bárbara Martins de Aquino; Alex Eustáquio de Lacerda; Inês Cristina Camelo Nunes; Luis Felipe Chiaverini Ensina
Universidade Federal de São Paulo, Disciplina de Alergia Imunologia Clínica e Reumatologia, Departamento de Pediatria - São Paulo, SP, Brasil
Endereço para correspondência:
Bárbara Martins de Aquino
E-mail: barbaraalergia@gmail.com
Submetido em: 05/04/2020
Aceito em: 04/06/2021
Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste artigo
RESUMO
A urticária solar é uma forma rara de urticária crônica induzida (UCInd). Os sintomas se iniciam minutos após a exposição ao sol e persistem por até 2 horas, interferindo nas atividades diárias do paciente, e consequentemente na sua qualidade de vida. O omalizumabe, anticorpo monoclonal anti-IgE já aprovado para o tratamento da urticária crônica espontânea, tem sido utilizado no tratamento das urticárias crônicas induzidas com boa resposta, inclusive na urticária solar. Neste artigo, relatamos um caso de urticária solar refratária aos anti-histaminicos, sua evolução após o uso do omalizumabe, e fazemos uma breve revisão da literatura sobre o tema.
Descritores: Urticária crônica, omalizumabe, dermatopatias.
INTRODUÇÃO
Urticária solar é uma fotodermatose rara, caracterizada pelo surgimento de urticas associadas a prurido ou sensação de queimação na pele, minutos após exposição à radiação UVA, UVB ou luz visível, desaparecendo cerca de 1 a 2 horas após fim da exposição1.
Considerada uma forma de urticária crônica induzida, aquelas desencadeadas por estímulos específicos, essa fotodermatose tem mecanismo fisiopatológico provavelmente IgE mediado, desencadeado por um fotoalérgeno ativado por particular espectro de luz2. Situações de exposição solar intensa e prolongada podem resultar em quadros graves, com desenvolvimento de sintomas sistêmicos e anafilaxia3.
Embora uma parcela de indivíduos com urticária solar responda às terapias de primeira linha (anti-histamínicos de segunda geração associados ou não a fotoprotetores), há pacientes com doença grave refratária aos anti-H1 que requerem outros tratamentos, incluindo fototerapia, imunossupressores e imunobiológicos4.
O omalizumabe, anticorpo anti-IgE recombinante humanizado, já aprovado para o tratamento da urticária crônica espontânea, é recomendado e tem sido utilizado também como terceira linha nas urticárias crônicas induzidas, com resposta favorável5. Entretanto, dados sobre sua eficácia para tratamento da urticária solar são escassos, e limitados a pequenas séries e relatos de caso4.
RELATO DO CASO
Paciente do sexo feminino, 20 anos de idade, estudante de enfermagem, apresentava urticas, prurido e sensação de queimação nas áreas da pele descobertas e expostas à luz solar desde os 12 anos. Os sintomas iniciavam cerca de 15-20 minutos após se expor ao sol, com regressão total em até 30 minutos ao final da exposição. Nas crises mais graves, que ocorriam durante intensa exposição solar, além das urticas, a paciente apresentava hipotensão, dispneia e incontinência urinária.
O diagnóstico foi confirmado pelo teste de provocação, com exposição direta à luz solar por 20 minutos, tempo máximo para surgimento dos sintomas referido pela própria paciente. Quinze minutos após o início do teste, ela apresentou urticas e prurido nas áreas da pele exposta (Figuras 1, 2 e 3), com remissão total dos sintomas em 30 minutos após a exposição.
Apesar do tratamento com dose quadruplicada de anti-histamínico de segunda geração, a paciente mantinha os sintomas. Com isso, sua qualidade de vida era extremamente prejudicada, já que não conseguia exercer suas atividades ao ar livre no período diurno devido ao incômodo e constrangimento causados pelas lesões de pele e prurido decorrentes da urticária.
Foi então proposto o tratamento adicional com omalizumabe 300 mg por via subcutânea a cada 4 semanas, em dezembro de 2018. Dentro das duas primeiras semanas após a primeira aplicação, a paciente evoluiu com melhora dos sintomas, permitindo-lhe retomar suas atividades habituais ao ar livre no período diurno.
Neste caso, os efeitos da terapia anti-IgE foram avaliados sob o ponto de vista clínico, pois na ocasião das consultas iniciais, o Urticaria Control Test (UCT) na versão para o português do Brasil ainda não havia sido validado. O Chronic Urticaria Quality of Life Questionnaire (CU-QoL), por sua vez, não é realizado rotineiramente em nosso serviço, apenas em pacientes participantes de alguns estudos específicos.
Devido ao bom controle dos sintomas depois da introdução do omalizumabe, a paciente suspendeu por conta própria o anti-histamínico logo após a segunda dose da terapia anti-IgE, mantendo-se controlada da urticária apenas com o omalizumabe. Porém, seis meses depois, voltou a apresentar eritema e prurido nas áreas expostas à luz solar. Por esta razão, foi orientada a reintrodução do anti-histamínico em dose quadruplicada. Após essa medida, a paciente evoluiu novamente com controle dos sintomas.
DISCUSSÃO
A urticária é uma condição em que há o surgimento de urticas (lesões com edema central de tamanho variável cercado ou não por eritema reflexo, coceira ou sensação de queimação e natureza fugaz, com a pele retornando ao normal em até 24 horas) associadas ou não ao angioedema (edema repentino, pronunciado e deformante, da derme e subcutâneo ou membranas mucosas, acompanhado de dor, queimação ou prurido, e com resolução em até 72 horas). Sua classificação é baseada na duração dos sintomas (crônica quando é superior a 6 semanas) e na presença ou ausência de fatores desencadeantes específicos (induzidas ou espontâneas, respectivamente)5.
As urticárias crônicas induzidas (UCInd) são aquelas em que urticas e ou angioedema surgem após um estímulo específico, que pode ser físico (urticária ao calor ou frio, urticária de pressão tardia, urticária vibratória, dermografismo e urticária solar) ou não físico (urticária colinérgica, urticária de contato e aquagênica)5,6. A prevalência estimada das UCInd é de 0,5% na população geral6. A urticária solar é um tipo raro de UCInd, que representa 7% das fotodermatoses7, e até cerca de 0,5% de todas as urticárias1. Afeta predominantemente o sexo feminino, principalmente nas terceira e quarta décadas de vida, podendo estar associada a outras urticárias crônicas em até 16% dos casos, e à atopia em cerca de 30%1,8,9.
O quadro característico da urticária solar é o surgimento de urticas em áreas não cobertas do corpo, geralmente em até 15 minutos após a exposição à luz solar, e que têm remissão espontânea em no máximo 24 horas. Entretanto, existem casos descritos de lesões que aparecem horas após a exposição à luz, levando tempo superior a 24 horas para remissão, em regiões não expostas do corpo (tecidos finos), e até mesmo se manifestando somente com angioedema10-12. No presente caso, a paciente apresentava um rápido surgimento das lesões, com rápida resolução do quadro, mesmo sem a utilização de medicações.
A fisiopatologia da urticária solar não é totalmente conhecida, porém a hipótese atual é de que se trate de um mecanismo que envolve uma reação de hipersensibilidade IgE-mediada ou do tipo 1 de Gell e Coombs. Após a exposição solar, uma molécula precursora conhecida como cromóforo seria ativada por um espectro de luz específico, tornando-se um fotoalérgeno imunologicamente ativo. Estes auto-alérgenos se ligariam à IgE específicas nos mastócitos, provocando a desgranulação e liberação de mediadores inflamatórios, principalmente a histamina, responsáveis pelos sintomas.
Atualmente, a urticária solar é classificada em dois tipos, segundo o mecanismo envolvido: no tipo I, há a presença de anticorpos IgE específicos contra cromóforos anormais presentes somente em pessoas acometidas; no tipo II, há a presença de IgE específica contra cromóforos normais. Esta diferença é evidenciada no teste de transferência sérica passiva de pacientes com urticaria solar para controles saudáveis, em que somente controles que receberam a transferência de pacientes com o tipo II têm o teste positivo, com o surgimento de urticária1,8,10,13.
Os indivíduos com urticária solar reagem a diferentes espectros de luz (UVA, UVB, Luz Visível) e a gravidade do quadro depende do tempo, intensidade e área exposta ao espectro de luz específico. Regiões da pele que são frequentemente expostas à luz tendem a ser menos sensíveis para o desenvolvimento das lesões, num fenômeno de tolerância mais conhecido como "hardening", e alguns comprimentos de onda de radiação (geralmente os mais longos) podem inibir a reação causada por outros (geralmente os mais curtos), num mecanismo conhecido como duplo espectro de ação1,6,10. A maioria dos pacientes tem como gatilho os espectros de luz visível, UVA e a associação de luz visível e UVA10. Quadros com sintomas sistêmicos e anafilaxia podem ocorrem com a realização de "banhos de sol" ou exposição de grandes superfícies corporais à luz1,7,8,10. Além da urticária, a paciente apresentou, quando intensamente exposta ao sol (ex. praia), sintomas circulatórios (hipotensão), respiratórios (dispneia) e neurológicos (liberação de esfíncter urinário), caracterizando anafilaxia e necessidade de tratamento urgente15.
Outras fotodermatoses (erupção polimorfa à luz, erupção fotoalérgica, fototoxicidade por droga, Lupus eritematoso cutâneo) e urticárias induzidas (por calor e colinérgica) podem ter sinais e sintomas que se confundem com a urticária solar, e por isso é fundamental a confirmação diagnóstica com o teste de provocação6,7. O fototeste ou fotoprovocação é realizado com a exposição da superfície cutânea (20 a 25 cm2) a uma fonte emissora de diferentes espectros de luz (UVB, UVA, luz visível) com diferentes doses (UVA: 2,4-3,3-4,2-5,1-6 J/cm2 e UVB 24-33-42-51-60 mJ/cm2). O teste é considerado positivo caso haja surgimento de urticas após 10 minutos da exposição6,10. Entretanto há pacientes que não apresentam positividade no fototeste ou mesmo só reagem a espectros de luz combinados (ex. UVA + luz visível)9. A determinação do espectro de luz e da dose necessária para desencadear as lesões é importante para o tratamento (fototerapia), profilaxia (protetor solar com filtro específico, janelas com bloqueio UV específico) e acompanhamento do tratamento (doses mais altas de exposição sem lesões)8,14. A dose eritematosa mínima (DEM) de urticária, que é a menor quantidade de energia efetiva para produzir o surgimento da reação, pode ser determinada expondo, a uma distância de 10 cm da fonte de luz, uma área de 1 cm2 de pele16. Na indisponibilidade de uma fonte de emissão de diferentes espectros de luz, outras opções para fotoprovocação são com lâmpada de projetor de slides (luz visível), luz negra fluorescente (UVB e UVA), luz solar fluorescente (UVB e UVA) e lâmpada infravermelha17. Optamos pela confirmação do diagnóstico expondo a paciente à luz natural, uma forma simples e econômica de reproduzir os sintomas, mas que não fornece informações específicas sobre espectro e dose necessária de exposição.
Além do uso de protetores solares, o tratamento inicial da urticária solar segue o mesmo algoritmo recomendado para as demais urticárias, com anti-histamínicos de segunda geração em doses padronizadas ou até quadriplicadas5. No entanto, muitos pacientes não têm o controle adequado dos sintomas, e outros tratamentos foram experimentados, como fototerapia, PUVA, ciclosporina A, bloqueador de receptor de leucotrieno, imunoglobulina, antimaláricos e plasmaferese, com resultados variáveis1,5,8,18. Seguindo as recomendações das diretrizes atuais, e considerando possível eficácia e conhecida segurança, optamos por introduzir o omalizumabe5.
O omalizumabe é um anticorpo monoclonal humanizado, com a capacidade de se ligar ao IgE circulante e inibir a interação entre o IgE e o receptor de alta afinidade do mastócito (FcεRI), consequentemente diminuindo o IgE livre e reduzindo a expressão do FcεRI19. Como o mecanismo proposto para o surgimento das lesões na urticária solar é pela ligação do IgE no FcεRI do mastócito, a ação do omalizumabe nesta via pode interferir e suprimir o processo de surgimento dos sintomas20.
Em um total de 24 publicações que somam 66 pacientes 2,3,21-42 tratados com omalizumabe, 77,3% (51) dos indivíduos evoluíram com controle completo, 13,7% (9) tiveram resposta parcial e 9% (6) não apresentaram resposta com a medicação. Três pacientes apresentaram controle apenas com a utilização de doses mais altas (> 450 mg/mês)32,33,40, e três pacientes foram refratários mesmo com doses de 600 mg/mês, sugerindo que a resposta é individual para cada paciente, e pode ser dose-dependente em casos específicos.
Na maior série de casos, com 20 pacientes, Morgado-Carrasco e cols. definiram a resposta no controle clínico (RCC) da urticária solar com a pontuação do Escore de Atividade da Urticária (Urticária Activity Score) de sete dias (UAS7) igual a zero. Também avaliaram o Teste de controle da urticária (Urticária Control Test) (UCT controlado > 12) e a presença de efeitos adversos. O RCC foi atingido com doses de 300 mg/mês em 16 pacientes e com o aumento para 450 mg/mês em dois, porém mesmo com a progressão da dose para 600 mg/mês, dois pacientes não tiveram resposta. Um terço atingiu o RCC somente após 4 meses de tratamento, demonstrando que além do aumento de dose, pode ser necessário a terapia mais prolongada para atingir o controle da urticária solar.
No presente artigo relatamos o caso de uma paciente com urticária solar refratária ao uso de anti-histamínicos em dose quadriplicada, com reação grave após a intensa exposição solar e que apresentou controle rápido e duradouro com o uso de omalizumabe. No nosso conhecimento, este é o primeiro caso relatado no Brasil de tratamento eficaz de urticária solar com omalizumabe.
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