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Revista oficial da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia ASBAI
Revista oficial da Sociedad Latinoamericana de Alergia, Asma e Inmunología SLaai

Número Atual:  Janeiro-Março 2020 - Volume 4  - Número 1


Artigo de Revisão

Alérgenos do gato nas alergias respiratórias: situação atual e novas perspectivas

Cat allergens in respiratory allergy: current status and new perspectives

Gustavo Falbo Wandalsen1; Flavio Sano2; Dirceu Solé1


1. Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo, Disciplina de Alergia, Imunologia Clínica e Reumatologia - São Paulo, SP, Brasil
2. Hospital Nipo-Brasileiro, Pediatria - São Paulo, SP, Brasil


Endereço para correspondência:

Gustavo Falbo Wandalsen
E-mail: gfwandalsen@uol.com.br


Submetido em: 29/02/2020
Aceito em: 10/03/2020

Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste artigo.

RESUMO

O gato é uma das principais fontes de alérgenos intradomiciliares. Evidências mostram que o contato com o gato em residências no Brasil é frequente, e está aumentando. No nosso meio, dados sobre a prevalência de sensibilização ao gato são escassos. Entre os oito alérgenos já identificados do gato, Fel d 1 é o principal, e responde por 60 a 90% de toda a reatividade IgE mediada ao animal. Fel d 1 é uma uteroglobulina sintetizada pelas glândulas salivares e sebáceas dos gatos, espalhada e aderida ao pelo do animal pelo hábito de se lamber. O diagnóstico de alergia ao gato é feito pela história de sintomas após exposição e pela presença de IgE específica. Medidas para redução do contato com os alérgenos dos gatos são difíceis de se implementar, principalmente se envolverem a remoção do animal, e não garantem benefício clínico. O tratamento farmacológico é feito com corticosteroides tópicos e sintomáticos. Imunoterapia subcutânea e sublingual têm demonstrado melhora dos sintomas nasais, oculares e brônquicos. Recentemente, foi desenvolvida uma ração para gatos suplementada com anticorpos neutralizantes IgY anti-Fel d 1 extraídos da gema do ovo de galinhas. Estudo com a ração suplementada observou redução significante nos níveis de Fel d 1 ativo no pelo dos gatos a partir da terceira semana, e redução média de 47% ao final de 10 semanas. Estudos complementares ainda são necessários para documentar a ação dessa ração nos sintomas respiratórios de pacientes alérgicos, mas inquestionavelmente abre-se uma nova perspectiva para o manejo da alergia a gato.

Descritores: Alergia e imunologia, gatos, rinite alérgica.




INTRODUÇÃO

A alergia a animais de pelo (cão e gato) é universal e tem aumentado nos últimos tempos. Em países industrializados a alergia a gato é apontada como a alergia de origem animal mais comum, e afeta aproximadamente 1 em cada 5 adultos em todo o mundo1. Apesar disso, no Brasil ainda a sensibilização ao cão é a predominante2,3. O convívio cada vez mais frequente e intenso com esses animais em residências, associado à exposição a níveis significativos de alérgenos dos mesmos em áreas onde nenhum animal está presente (casas, escolas, creches, locais de trabalho) tem contribuído para o aumento na frequência de alergias a esses animais1,4.

Dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística apontam que 44,3% dos domicílios brasileiros têm pelo menos um cachorro, e que 17,7% ou 11,5 milhões de unidades têm pelo menos um gato, sobretudo nas regiões Norte (22,7%) e Nordeste (23,6%)2,3. Segundo outro documento, a população de gatos em domicílios brasileiros foi estimada em 22,1 milhões, o que representa aproximadamente 1,9 gato por domicílio5.

Além dos donos dos animais e seus familiares, os profissionais envolvidos no cuidado e na pesquisa com esses animais são um grupo de risco, e podem representar até um terço dos pacientes sensibilizados, com perdas de dias de trabalho e mesmo asma profissional1,4,6.

 

EPIDEMIOLOGIA DA SENSIBILIZAÇÃO A GATO

A prevalência de sensibilização a animais de estimação, sobretudo mamíferos com pelo, tem sido cada vez maior e variável segundo o local de estudo. Vários fatores podem justificar essa variabilidade de resultados: local do estudo, carga genética e tipo de população estudada (alérgica, não alérgica), idade, carga de exposição, tempo de exposição aos animais, método de aferição da sensibilização (testes cutâneos, IgE sérica específica), entre outros.

Estudo alemão com adultos saudáveis observou que 7,0% deles estavam sensibilizados a gato7. Por outro lado, estudo europeu em adultos com suspeita de alergia a inalantes documentou ser a prevalência de sensibilização a gatos em 26%8.

Nos Estados Unidos, em crianças maiores de 6 anos a frequência de sensibilização a gato revelou ser 12,1%9. Em crianças e adolescentes alemães a taxa de sensibilização foi 8,1%, e avaliando-se com relação à faixa etária, a sensibilização a gato variou de 5,7% entre as crianças, e 17,2% entre os adolescentes10.

No Brasil esses dados são escassos, e na sua maioria foram obtidos a partir de amostras populacionais pequenas e/ou de pacientes com suspeita de doença alérgica. Empregando-se os testes cutâneos de leitura imediata com extrato de epitélio de gato para o diagnóstico em crianças e adolescentes, obteve-se taxas entre 3,2% e 28,7%11-14. Em adultos com suspeita de doença alérgica, a prevalência de sensibilização ao gato observada variou entre 20% e 26,2%15,16.

Empregando-se a pesquisa de IgE específica ao Fel d 1, alérgeno principal do gato, em pacientes com doenças alérgicas e controles não alérgicos menores de 12 anos de vida, documentou-se ser a prevalência de sensibilização 12,3% entre os alérgicos, e 8,1% entre os controles17. Passados 12 anos, o mesmo protocolo foi realizado, e houve incremento para 29,9% e 15,3%, respectivamente18. A mudança de hábitos quanto à posse de gatos pode ser a explicação para esse aumento.

 

ALÉRGENOS DO GATO (FEL D 1 E OUTROS)

A Organização Mundial da Saúde e o Subcomitê de Nomenclatura de Alérgenos da União Internacional de Sociedades de Imunologia identificaram e registraram oito alérgenos derivados de gatos (Felis domesticus)19,20 (Tabela 1). Esses alérgenos são identificados pela denominação Fel d seguida pelo número 1 a 8, de acordo com a ordem da sua identificação. Os alérgenos principais do gato são Fel d 1 e Fel d 4, embora o significado clínico do Fel d 4 seja desconhecido4,21.

 

 

O Fel d 1 é uma uteroglobulina e responde por 60% a 90% de toda a reatividade IgE mediada ao pelo do gato22. Os demais alérgenos são apresentados na Tabela 1. Embora a monossensibilização por Fel d 1 seja comum, indivíduos sensibilizados a Fel d 2 (albumina sérica) e Fel d 4 (lipocalina) são usualmente sensibilizados ao Fel d 121,23. A presença de alérgenos tipo lipocalina (Fel d 4 e Fel d 7; Cannis familiares: Can f 1, Can f 2, Can f 4 e Can f 6; Equus caballus, Equ c 1 e Equ c 2) e albumina (Fel d 2, Can f 3 e Equ c 3) em outros animais mamíferos é a justificativa para a presença de reação cruzada entre eles21,23.

Independentemente da raça, idade, comprimento do pelo, peso corporal, viver dentro ou fora de casa, não há gato livre de alérgeno ou hipoalergênico, uma vez que todos produzem Fel d 14,19,25.Todos os gatos produzem quantidades significativas de Fel d 1, principalmente pelas glândulas salivares e sebáceas, urina de machos e, em menor quantidade, pelas glândulas lacrimais e anais19,26,27.

A produção de Fel d 1 é variável de animal para animal, assim como para o mesmo animal no decorrer do tempo28. Gatos machos produzem três a cinco vezes menos Fel d 1 após castração e, se tratados com testosterona, voltam a atingir níveis pré-castração, reforçando a possibilidade de influência da testosterona sobre a produção de Fel d 119,29.

Desconhece-se a função biológica do Fel d 1, entretanto, cogita-se a de feromônio/sinalização química19,30. A descamação da pele do Felis domesticus elimina partículas de 2 a 5 µm de diâmetro que contém o alérgeno Fel d 1, que permanece longo período em suspensão, principalmente em ambientes mal ventilados, mantendo sua potência alergênica por mais de 20 semanas, mesmo após a remoção do animal6,31,32. O Fel d 1 é transferido passivamente às roupas, pela aderência das partículas que o contém, e assim pode ser transferido a locais em que o animal não esteja presente, por donos dos mesmos19,33. Por conta disso é um alérgeno ubíquo, documentado em residências sem gatos, veículos particulares, trans-porte público e edifícios públicos em níveis (≥ 8 µg Fel d 1 por grama de poeira) que excedem o valor limite associado à sensibilização6,19,32-36. Estudos que quantificaram os níveis de Fel d 1 em escolas mostraram que apesar de detectáveis, em geral, são baixos e podem não induzir sintomas37-39.

 

PAPEL DOS ALÉRGENOS DO GATO NA ASMA E RINITE

Estudos epidemiológicos têm mostrado que a presença de alérgenos de animais em ambientes internos tem sido associada a aumento de risco de desenvolvimento de sintomas alérgicos. A exposição a 8 µg por grama de poeira ou mais de Fel d 1 tem sido identificada como fator de risco para sensibilização ao gato40, bem como capaz de provocar a exacerbação de sintomas alérgicos em indivíduos sensibilizados41-42.

O momento em que ocorre essa exposição parece ser crítico para a indução de sensibilização e o desenvolvimento de doença alérgica. Admite-se que se a exposição ao gato/cão ocorrer durante o primeiro ano de vida, aliada a outros fatores de risco genéticos e ambientais, poderá haver diminuição do risco de desenvolver doença alérgica ou mesmo asma alérgica43-45. Se a exposição ocorrer após o primeiro ano de idade, o risco de sensibilização e desenvolvimento de uma doença alérgica parece estar aumentado44-48.

Estudos epidemiológicos têm documentado relação positiva entre exposição a gato e desenvolvimento de asma49-51, bem como asma grave52. Por outro lado, a presença de sensibilização ao gato tem sido associada de modo mais efetivo ao desenvolvimento de alergia o gato (asma, rinite, conjuntivite).

Coorte de nascimento avaliou a sensibilização ao Fel d 1 (testes cutâneos e determinação de níveis séricos de IgE específica) durante a infância e o aparecimento de alergia a gato aos 16 anos de idade. A sensibilização ao Fel d 1 e a polissensibilização a três ou mais alérgenos do gato, além do Fel d 1, foi o melhor preditor para o desenvolvimento de alergia ao gato na adolescência e à reatividade cruzada com os alérgenos do cão53. Estudo com adultos brasileiros e chilenos revelou associação significante entre sensibilização a gato e frequência de asma e rinoconjuntivite. O risco relativo de desenvolver asma e rinoconjuntivite foi, em média, seis vezes mais elevados quando comparados à sensibilização aos ácaros do pó doméstico54. A sensibilização ao alérgeno maior do gato, o Fel d 1, é marcador específico de alergia ao gato, pois é o componente mais prevalente em indivíduos mono e polissensibilizados1,4,23, e os pacientes quando a ele expostos podem apresentar sintomas de rinite, asma e/ou conjuntivite1,4.

É comum que pacientes sensibilizados a alérgenos de gato sejam sensibilizados a outros animais, como cão, cavalo, cobaia, entre outros1,4,23. Comentase que 75% dos indivíduos sensibilizados a um animal de estimação têm 14 vezes mais chances de serem sensibilizados a outros alérgenos, sobretudo de outros animais28. A possibilidade de reatividade cruzada entre alérgenos de cães e gatos torna o diagnóstico resolvido por componentes como essencial21. Com relação aos padrões de reatividade cruzada mais significativos entre cães, gatos e outros mamíferos, pode-se afirmar que:

- algumas lipocalinas têm até 60% de identidade na sequência de aminoácidos, o que explica a reatividade cruzada entre eles, por exemplo Can f 6 (cão), Equ 1 (cavalo), Fel d 4 (gato), Ory c 4 (coelho), Mus m 1 (camundongo) e Rat n 1 (rato)55,56;

- Imunoglobulina E sérica específica (sIgE) ao Fel d 1 está presente em 95% dos pacientes que são alérgicos a gatos, assim como em outras famílias de felinos, tais com tigres, jaguares, pumas e leões9;

- sIgE ao Can f 6 está presente em 38% dos pacientes sensibilizados a cães, entretanto, aparece em 60% dos pacientes sensibilizados a ambos cães e gatos e pode ser relacionado a sua identidade com o Fel d 422;

- embora tenham grande similaridade estrutural, o Can f 2 e Equ c 1 não mostram reatividade cruzada22;

- a sequência de amino-ácidos do Can f 6 e do Equ c 1 têm 57% de identidade22;

- Can f 1 tem reatividade cruzada com a lipocalina da lágrima humana22;

- Can f 5 tem homologia parcial com o antígeno prostático específico (PSA) por pertencer à família da calecreína55. Especula-se que a sensibilização prévia ao Can f 5 possa estar associada à maior propensão de manifestar reações alérgicas ao fluido seminal humano56.

Frequentemente alérgicos a gato mostram-se sensibilizados a cães e outros animais. A homologia e/ou similaridade estrutural dos diferentes alérgenos de cães e gatos (albuminas e lipocalnas) explicam a reatividade cruzada entre eles e com outros mamíferos. Eles também explicam parcialmente a presença de sensibilização simultânea a cães, gatos e outros mamíferos mesmo na ausência de exposição a esses animais. O Fel d 1 não esboça reatividade cruzada com alérgenos de outros animias, assim quando presente, a cossensibilização é mais provável. Pacientes polissensibilizados a gato têm níveis mais elevados de IgE e sintomas mais frequentemente que os monossenbilizados23,53. Asma atual e sintomas de asma após contato com gato estão associados a cossensibilização ao Fel d 1 e Fel d 457.

Os indivíduos sensibilizados a gato mostram grau elevado de heterogeneidade segundo o grupo de sensibilização. Cada um deles (monossensibilizado, sensibilizado ao Fel d 1, polissensibilizados) está associado a risco substancial de asma, rinite e associação asma e rinite sem haver, no entanto, aumento das exacerbações por asma, valores previstos de VEF1, idas à emergência, ou uso regular de esteroides58,59. Crianças com asma grave tinham níveis elevados de IgE ao cão, gato e cavalo. O emprego do diagnóstico molecular para pacientes com asma grave e sensibilizados a cão, gato e cavalo possibilitou revelar a polissensibilização a vários componentes alergênicos entre esses pacientes60.

 

DIAGNÓSTICO DA ALERGIA AO GATO

Pacientes alérgicos ao gato com manifestações clinicamente relevantes geralmente apresentam reações de hipersensibilidade, reprodutíveis, à exposição aos antígenos do gato, em concentrações toleráveis pela maioria dos indivíduos não alérgicos4,6.

Faz parte do diagnóstico a obtenção de uma boa história clínica relacionada à exposição e suspeita da sensibilização. A sensibilização alérgica é identificada pela presença de IgE específica, que pode ser investigada pelo teste cutâneo de leitura imediata (TCHI) com os alérgenos específicos, ou pela detecção de IgE sérica específica4,6. Mesmo sendo positivos qualquer um dos exames, o diagnóstico de alergia só será confirmado se houver manifestações clínicas alérgicas quando o paciente for exposto ao animal.

Os extratos utilizados na realização dos TCHI para o diagnóstico da alergia ao gato são extraídos de diversas fontes naturais, como pelos, saliva, urina e/ou epitélio e contêm quantidade variada de proteínas, alergênicas ou não61,62. A utilização de extratos padronizados é recomendada para aumentar a comparabilidade e consistência entre os alérgenos fornecidos por diversos fabricantes61,62. O teste é barato, simples e rápido de ser realizado, e deve ser utilizado como teste inicial.

A determinação dos níveis séricos de IgE específica é recomendada particularmente quando os sintomas do paciente e o resultado do TCHI são contraditórios, especialmente antes de se iniciar imunoterapia alérgeno específica8,9. No caso dos gatos, a determinação da IgE específica é um teste altamente sensível, mas existe a probabilidade de resultados falso-positivos; desta forma, se torna um método com menor acurácia do que os TCHI8,9,19,20.

A aquisição do diagnóstico molecular na última década tem facilitado o manejo de pacientes alérgicos de maneira geral. Nele são utilizados alérgenos purificados ou recombinantes, além de componentes da proteína fonte63,64. A purificação e caracterização do componente proteico Fel d 1 do gato ocorreu em 1973, por Ohman et al.65. Esta descoberta propiciou a mensuração de anticorpos classe específica e a realização do diagnóstico laboratorial sérico da sensibilização ao gato1.

O diagnóstico molecular possui vantagens claras sobre a utilização de extratos totais, especialmente em indivíduos polissensibilizados, sendo capaz de distinguir sensibilização específica real de uma sensibilização devida à reatividade cruzada64. É de grande valia na recomendação de se evitar um alérgeno específico e na determinação de uma imunoterapia mais exata. Sua mensuração pode ser útil na predição de sintomas clínicos e sua gravidade60,66. É a proteína dominante e determinante na detecção da alergenicidade, e cerca de 96% dos pacientes com sintomas clínicos relacionados aos gatos reagem a ela67.

Existem partículas maiores (> 9 µm) e menores (< 4,7 µm) que podem ser carregadas pelo ar. Entretanto, as partículas menores podem ficar em suspensão por alguns dias38, sendo capazes de atingir brônquios de pequenos calibres e induzir asma21,27.

Cerca de 93% dos indivíduos que manifestam sintomas à exposição ao gato têm teste cutâneo positivo31. A correlação entre os sintomas clínicos e o teste alérgico positivo mostra sensibilidade, especificidade e acurácia de 0,9 para todos os índices68.

A concordância entre o TCHI e a dosagem de IgE sérica específica foi de 94% pelo Phadebas RAST34, e de 91% quando realizado pelo Pharmacia CAP System69.

Os testes de provocação brônquica, nasal e ocular não são utilizados na prática clínica, sendo realizados apenas em pesquisas. Esses testes avaliam clinicamente a reatividade aos alérgenos nos órgãos específicos, à semelhança de uma exposição natural66.

Mais recentes, testes de provocação nasal em indivíduos com teste cutâneo negativo e IgE específica indetectável, identificaram a produção de IgE específica no nariz, sugerindo que esses indivíduos poderiam estar apresentando a indução da rinite alérgica local70.

 

ABORDAGEM TERAPÊUTICA DA ALERGIA AO GATO

Medidas de como evitar o contato com os alérgenos dos gatos incluem: remover o animal da residência 25,27,71, banhá-lo regularmente25,72, mantê-lo fora do quarto27,73,74, uso de purificadores de ar com filtro HEPA75, uso regular de aspiradores de pó de alta eficiência27, uso de capas de colchões e travesseiros27,76, remoção de almofadas ou outros ítens que podem servir de reservatórios27, uso de alvejantes e ácido tânico77, uso de fluxo laminar de temperatura controlada durante o período noturno78, aplicações de loções tópicas nos pelos dos animais e a combinação de várias destas medidas27.

Apesar da remoção do animal da residência ser a medida mais comumente recomendada, ela geralmente é muito difícil de ser aceita pelos pacientes. Desta forma, as medidas e tentativas de diminuir a quantidade de alérgenos do ambiente, embora algumas vezes pouco eficazes, se tornam as mais praticadas. Estas medidas devem ser recomendadas conjuntamente e mantidas ao longo do tempo, apesar de não garantirem benefício clínico ou diminuição da evolução da doença. Convém lembrar que os alérgenos são bastante estáveis e podem persistir no ambiente por até 6 meses21,22,64.

Fel d 1 tem sido encontrado em escolas e lares onde não existem gatos9. Os alérgenos dos gatos podem ser transportados das casas onde esses animais habitam a espaços públicos onde eles não existam, sobretudo por populações em que estes pets sejam mais comuns74. A abrangência do contato indireto é significante, uma vez que a prevalência da alergia a gatos em pacientes que nunca tiveram gato em suas residências seja em torno de 34%79. Casas com gatos podem apresentar altas concentrações de antígenos do gato, mesmo se o animal não estiver presente o tempo todo e os pacientes podem desenvolver sintomas mesmo na ausência dos animais79. Exposições por um tempo prolongado aos alérgenos em uma dose relativamente pequena podem levar a alterações na saúde respiratória dos indivíduos atópicos, mesmo sem provocar sintomas perceptivos80.

O tratamento sintomático com anti-histamínicos e a utilização tópica de corticosteroides são utilizados quando os sintomas ainda persistem, apesar das tentativas de se evitar o contato com os alérgenos do animal6.

A imunoterapia subcutânea (SCIT) e a sublingual (SLIT) com os antígenos do gato consistem na introdução lenta e gradual de doses crescentes de alérgenos por um tempo de 3 a 5 anos. Estão associadas a mudanças na função das células T sugerindo uma transição do perfil fenotípico T helper 2 (Th2) para perfil T helper 1 (Th1) e indução de células T regulatórias81.

A SCIT com extratos de gato tem demonstrado melhora estatisticamente significante nos sintomas oculares, nasais e brônquicos em indivíduos com rinoconjuntivite e asma ao gato após 12 meses de tratamento82-84, bem como aumento significante, dose dependente, da IgG total e IgG4; e redução da resposta no TCHI88,85,86. Estudos em crianças demonstraram resultados semelhantes82,87.

SLIT com extratos de gato tem demonstrado melhora dos sintomas nasais, oculares e brônquicos em adultos, após 12 meses de tratamento88.

Os chamados animais "hipoalergênicos" com me-nos pelos ou menor produção de Fel d 1 têm sido citados25. Entretanto, estas alterações nos fenótipos dos gatos não garantem a eliminação de antígenos menores presentes na saliva, e que participam do desencadeamento de sintomas clínicos27.

Não existem evidências científicas que suportem a indicação da opção de gatos hipoalergênicos, uma vez que não foram encontradas evidências significantes no nível de alérgenos encontrados nos ambientes frequentados por gatos hipoalergênicos

ou não25,27,72.

 

NOVAS PERSPECTIVAS NA ABORDAGEM DA ALERGIA AO GATO

A presença de um aninal doméstico no domícilio pode se associar a vários benefícios psicológicos e de saúde, incluindo a redução da pressão arterial, da sensação de solidão, melhoria no controle da depressão e maior facilidade na manutenção/ perda de peso89. Famílias que possuem um animal doméstico, como o gato, usualmente desenvolvem um forte vínculo emocional com o animal, e a sua remoção do domicílio em função da alergia muitas vezes é difícil e traumática para a família90.

Diversas tentativas de diminuir a alergenicidade dos gatos ou de neutralizar seus alérgenos já foram feitas visando a melhor coexistência de pessoas alérgicas com seus gatos, e incluem mudanças na composição da dieta e a própria imunização dos gatos ao Fel d 190. Entre essas tentativas, se destaca a iniciativa de desenvolver anticorpos neutralizantes capazes de bloquear os epítopos do Fel d 1 e impossibilitar sua ligação com a IgE e o subsequente desencadeamento de sintomas alérgicos91.

Fel d 1 é uma proteína tetramérica com características conformacionais específicas, sendo composta por dois heterodímeros, cada um com duas cadeias distintas (Figura 1A)90. Essa conformação do Fel d 1 é importante para a alergenicidade da proteína que possui pelo menos três epítopos conhecidos e explica, pelo menos em parte, o motivo do maior sucesso dos anticorpos neutralizantes policlonais do que dos monoclonais90.

 


Figura 1 Configuração tridimensional da proteína de Fel d 1 (A) e estrutura formada por Fel d 1 após ligação com dois anticorpos IgY anti-Fel d 1 (B). Fonte: Purina Institute

 

Recentemente foram desenvolvidos anticorpos neutalizantes para Fel d 1 na galinha (Figura 1B)91. Esses anticorpos da classe IgY (equivalente da IgG dos mamíferos nas aves) são naturalmente encontrados no soro e na gema do ovo de galinhas expostas ao alérgeno, e podem ser estimulados com a exposição do animal ao alérgeno91. Assim, grandes quantidades de anticorpos IgY anti-Fel d 1 podem ser retirados da gema do ovo, purificados e adicionados à ração do gato91. Na medicina veterinária, anticorpos originados do ovo da galinha são considerados seguros e eficazes para administração oral a animais domésticos91.

No gato, as maiores concentrações de Fel d 1 são encontradas na saliva, produzidas pelas gândulas salivares. Pelo hábito do gato de se lamber, esse alérgeno é espalhado e aderido ao pelo do animal91.

Em um ensaio inicial, ração com adição de anticorpo IgY anti-Fel d 1 foi dada a seis gatos por seis semanas. Saliva dos gatos foram coletadas quatro vezes ao dia (pós-alimentação) e cinco vezes por semana, antes (2 semanas) e durante a administração da ração suplementada91. Foi observada redução significativa das concentrações de Fel d 1 imunologicamente ativo a partir da segunda semana de alimentação com a ração suplementada com anticorpos neutralizantes, com redução média de 30%91. Em seguida, os autores alimentaram 20 gatos por quatro semanas com ração suplementada (11 gatos) ou com ração controle (9 gatos). Observou-se redução significante nos níveis de Fel d 1 ativos na saliva a partir da terceira semana de alimentação suplementada, com redução média de 24%. Dos 11 gatos alimentados com a ração teste, 9 apresentaram diminuição de pelo menos 20% nos níveis de Fel d 1 ativos91.

Estudo posterior do mesmo grupo avaliou os níveis de Fel d 1 ativo no pelo de 105 gatos alimentados por 10 semanas com ração contendo IgY anti-Fel d 192. Redução significante nos níveis de Fel d 1 ativo foi encontrada a partir da terceira semana. Ao final das 10 semanas houve redução média de 47% (variação de 33% a 71%), conforme mostrado na Tabela 2. Gatos com maiores níveis de Fel d 1 apresentaram as maiores reduções nos níveis de Fel d 1 ativo92. Do total, 86% dos gatos apresentaram diminuição dos níveis de Fel d 1 ativo de pelo menos 30%, e metade dos gatos tiveram redução de pelo menos 50%. Não houve diferenças no peso dos gatos com a ração teste, e não foram observados problemas de saúde associados a ela92.

 

 

Em relação à saúde dos gatos, não foram observados efeitos adversos em parâmetros clínicos e em testes laboratoriais (incluindo possíveis efeitos mutagênicos) em gatos alimentados com ração suplementada com IgY anti-Fel d 1 por 26 semanas93.

Ainda não são disponíveis estudos robustos sobre os efeitos da redução dos níveis de Fel d 1 com a ração suplementada com IgY anti-Fel d 1 sobre a saúde de pacientes alérgicos ao gato. Estudo apresentado no último congresso da Academia Europeia de Alergia e Imunologia Clínica (EAACI, 2019) avaliou a resposta de 15 pacientes alérgicos ao gato após provocação com cobertores de gatos alimentados com ração controle ou ração suplementada com IgY anti-Fel d 1 em câmaras de desencadeamento94. Em comparação ao desencamento inicial (realizado para documentar a alergia ao gato), foi observada redução no escore total de sintomas nasais e no escore de alguns sintomas oculares após provocação com cobertores de gatos alimentados com ração suplementada94.

Especula-se que não seria necessário a eliminação total dos níveis de Fel d 1 no domicílio para melhora dos sintomas dos pacientes alérgicos ao gato, mas sim a redução dos seus níveis abaixo de um limiar capaz de induzir resposta clínica90. Estudos complementares ainda são necessários para documentar de forma consistente a ação dessa ração no controle dos sintomas respiratórios de pacientes alérgicos, mas inquestionavelmente abre-se uma nova perspectiva para o manejo da alergia a gato.

 

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