Uma visão atualizada da anafilaxia idiopática: a ausência de evidência não é a evidência de ausência
An updated view of idiopathic anaphylaxis: absence of evidence is not evidence of absence
Mario Geller
Clínica Geller de Alergia e Imunologia - Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Professor Visitante no Departamento de Alergia e Imunologia da Northwestern University, Chicago, EUA
Endereço para correspondência:
Mario Geller
E-mail: drmariogeller@gmail.com
Submetido em: 04/12/2019
Aceito em: 19/12/2019.
Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste artigo.
RESUMO
A anafilaxia idiopática não apresenta etiologia conhecida. A sua prevalência é estimada entre 10-35% de todas as modalidades de anafilaxia. A sintomatologia apresentada é a mesma de qualquer outra anafilaxia: urticária, angioedema, ruborização, prurido, hipotensão arterial, taquicardia, manifestações gastrointestinais (disfagia, náusea, vômitos, cólicas abdominais, diarreia), asma, edema laríngeo, tontura e síncope. A mortalidade é rara. Não há transmissão genética, mas 40% dos pacientes são atópicos. É mais frequente nos adultos do que nas crianças, e principalmente em mulheres. É um diagnóstico de exclusão. Ocorre ativação mastocitária com desgranulação citoplasmática dos mediadores de anafilaxia (triptase, histamina, entre outros). É uma anafilaxia com boa resposta aos corticoides, e, portanto, caso não haja resposta adequada a doses eficazes de prednisona/prednisolona, o seu diagnóstico deve ser revisto. O diagnóstico diferencial da anafilaxia idiopática inclui: a mastocitose sistêmica indolente, síndromes de ativação mastocitária monoclonais, alergia à galactose-alfa-1,3 galactose, anafilaxia induzida por exercícios (com e sem dependência alimentar e medicamentosa), angioedema hereditário (congênito e adquirido), feocromocitoma, síndrome carcinoide, anafilaxia oral acarina, alergia ao Anisakis simplex, disfunção das cordas vocais, síndrome escombroide, alergia ao sêmen, alergia ao látex, manifestações psicossomáticas (síndrome do pânico, globus hystericus e a síndrome de Münchausen), bem como as tradicionais e mais frequentes modalidades de anafilaxia (alergia a alimentos, medicamentos e insetos). O tratamento na crise aguda da anafilaxia idiopática é o mesmo do que nas demais anafilaxias, incluindo a administração intramuscular imediata de epinefrina. Deve haver uma generosa e prolongada prescrição de corticoterapia oral, e também a instituição de medicação preventiva (anti-histamínicos anti-H1 e anti-H2, cetotifeno, albuterol oral, montelucaste, cromoglicato de sódio, e por último o omalizumabe). Os pacientes devem portar epinefrina autoinjetora e ser instruídos sobre como agir em caso de um episódio anafilático. Eles respondem bem à administração de epinefrina. A corticoterapia oral, por 4-6 semanas, pode induzir uma remissão completa.
Descritores: Anafilaxia, anafilaxia idiopática, mastocitose sistêmica, doenças de ativação mastocitária, galactose-alfa-1,3-galactose, angioedema hereditário, omalizumabe.
INTRODUÇÃO
Não é conhecida a patogênese da anafilaxia idiopática, sendo ela, portanto, diagnosticada por exclusão daquelas com etiologia estabelecida. Ocorre, como nas demais anafilaxias, a ativação mastocitária, com desgranulação e liberação de seus vários mediadores imuno-inflamatórios1-6.
As biópsias cutâneas destes pacientes mostram um aumento no número de mastócitos, porém, inferior ao observado na mastocitose sistêmica indolente7. Na anafilaxia idiopática foi documentado que após um episódio agudo havia aumento de células T ativadas CD3+HLA DR+, e que também havia mais células B ativadas CD19+CD23+ nos pacientes em remissão8.
A corticoterapia prolongada por 4-6 semanas pode reduzir o número e a gravidade dos episódios anafiláticos e induzir uma remissão definitiva. Felizmente, a mortalidade na anafilaxia idiopática é rara9.
A epinefrina autoinjetora deverá ser sempre prescrita. Com o tratamento preventivo medicamentoso, o prognóstico em longo prazo é favorável.
ATUALIZAÇÃO OBJETIVA DA ANAFILAXIA IDIOPÁTICA
A anafilaxia idiopática foi primeiramente descrita em 1978, por Roy Patterson, no Departamento de Alergia e Imunologia da Universidade Northwestern, em Chicago, EUA10. O diagnóstico é por exclusão das demais modalidades anafiláticas. Nos episódios agudos, todos os pacientes apresentam urticária, angioedema, ou ambos11. Apesar da etiologia da anafilaxia idiopática ser desconhecida, o seu prognóstico costuma ser bom. A classificação dos diferentes tipos de anafilaxia idiopática está listada na Tabela 112.
A triptase sérica está elevada na fase aguda da anafilaxia idiopática, retornando ao normal após a resolução do quadro anafilático. Na mastocitose sistêmica, a triptase sérica permanece sempre elevada. Não foi documentada autoimunidade e nem gatilhos alergênicos nos pacientes com anafilaxia idiopática. Na fase aguda da anafilaxia foi evidenciada a elevação das células T CD3+HLA DR+ em comparação com pacientes em remissão. No período remissivo documentou-se a elevação basal de células B ativadas (CD19+CD23+). O significado destas alterações imunológicas permanece obscuro8,13.
É fundamental um diagnóstico preciso, e um projeto operacional de ação emergencial para os pacientes com anafilaxia idiopática14-15. As manifestações clínicas são as mesmas que as das outras anafilaxias, sendo que a urticária e o angioedema (Figuras 1 e 2) são os mais comuns. Como em qualquer anafilaxia, o risco maior é o da obstrução respiratória alta (edema laríngeo) e o colapso cardio-circulatório. A administração de epinefrina intramuscular na face anterolateral da coxa é imprescindível, e, caso necessário, pode ser repetida cerca de 5 minutos após. Todo paciente com anafilaxia idiopática deve sempre portar epinefrina autoinjetável, pois o quadro agudo é rápido, grave e potencialmente fatal, podendo aparecer subitamente em qualquer momento ou local16.
O diagnóstico diferencial da anafilaxia idiopática inclui: a mastocitose sistêmica indolente, as síndromes de ativação mastocitária monoclonal, alergia à galactose-alfa-1,3 galactose (oligossacarídeo presente na carne vermelha de vaca, porco e carneiro), anafilaxia-induzida por exercícios (com e sem dependência alimentar e medicamentosa), angioedema hereditário (congênito e adquirido), feocromocitoma, síndrome carcinoide, anafilaxia oral acarina, alergia ao Anisakis simplex, disfunção das cordas vocais, escombroide, alergia ao sêmen, alergia ao látex, diferentes manifestações psicossomáticas (síndrome do pânico, globus hystericus, e a síndrome autoinduzida de Münchausen), bem como as tradicionais e mais frequentes modalidades de anafilaxia (alergia a alimentos, medicamentos e insetos Himenoptera). O tratamento da crise na anafilaxia idiopática é semelhante ao das outras anafilaxias, e responde bem à epinefrina intramuscular. Em longo prazo, o tratamento oral preventivo é eficaz: prednisona/prednisolona 40-60 mg/dia por cerca de 2 semanas, com progressiva redução por pelo menos mais 2 semanas até a sua suspensão, anti-histamínicos anti-H1 e anti-H2, cetotifeno, albuterol, anti-leucotrienos, cromoglicato de sódio, e omalizumabe17-18.
O principal diagnóstico diferencial da anafilaxia idiopática é a mastocitose sistêmica e as síndromes de ativação mastocitária monoclonais. A dosagem da triptase sérica basal ajuda, pois é normal na anafilaxia idiopática, podendo ser elevada nas síndromes de ativação mastocitária monoclonais, e aumentada na mastocitose sistêmica indolente (valores acima de 20 ng/mL). Podem também auxiliar neste diagnóstico diferencial: a determinação da mutação de KIT D816V (sangue e medula óssea), e a própria biópsia/aspiração da medula óssea. Documentou-se que 14% dos pacientes que inicialmente tinham o diagnóstico de anafilaxia idiopática, após estes exames, foram rediagnosticados como realmente apresentando a doença de ativação mastocitária monoclonal19.
Com a identificação da alergia IgE-mediada à galactose-alfa-1,3-galactose (alfa-gal), responsável pela anafilaxia tardia após a ingestão de carne vermellha de mamíferos não-primatas, diminuiu nos EUA o número de casos inicialmente rotulados como anafilaxia idiopática. Isto ocorreu apenas no sudeste americano, onde habita o carrapato estrela. Documentou-se que 9% de pacientes americanos diagnosticados como anafilaxia idiopática tinham, na verdade, IgE anti-alfa-gal20. Em um centro terciário americano de Alergia-Imunologia, o percentual de anafilaxia idiopática caiu de 59% para 35% após a rotineira pesquisa de IgE anti-alfa-gal21. No Brasil faltam dados sobre esta nova alergia.
Nós relatamos os primeiros casos brasileiros de anafilaxia idiopática, adulto22 e criança23. Mais casos devem ser documentados adequadamente em nosso meio.
CONCLUSÕES
A anafilaxia idiopática ocorre em mais de 10% de todos os casos documentados de anafilaxia, podendo chegar a 35% em algumas estatísticas. É mais comum em mulheres adultas. Ocorre ativação mastocitária liberando os seus mediadores imuno-inflamatórios citoplasmáticos. Há aumento basal da ativação de linfócitos B no sangue periférico. Na crise anafilática foi documentado o aumento da ativação de linfócitos T, quando comparada a pacientes em remissão. Não se verificou a existência de autoanticorpos anti-IgE. O diagnóstico é por exclusão das outras anafilaxias de etiologia conhecida. Responde bem à corticoterapia. É fundamental a prescrição de epinefrina autoinjetora. Quando não ocorre resposta aos corticoides orais, administrados por algumas semanas, torna-se necessário rever o diagnóstico de anafilaxia idiopática. O prognóstico é bom e pode ocorrer remissão definitiva. A triptase sérica eleva-se na fase aguda da anafilaxia e retorna a valores normais uma vez a crise resolvida. Na mastocitose sistêmica, ao contrário, há persistente elevação da triptase sérica. Os pacientes necessitam instruções claras pertinentes à sua conduta emergencial nos episódios anafiláticos.
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