Biomarcadores nas doenças respiratórias obstrutivas crônicas: a próxima página
Biomarkers for chronic obstructive respiratory diseases: the next page
Hisbello S. Campos
Instituto Fernandes Figueira, Fiocruz, Serviço de Alergia e Imunologia Clínica - Rio de Janeiro, RJ
Endereço para correspondência:
Hisbello S. Campos
E-mail: hisbello@globo.com
Submetido em: 13/06/2018
Aceito em: 14/09/2018
Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste artigo.
RESUMO
Nas últimas décadas, consensos e diretrizes vêm orientando padronizações terapêuticas que, mesmo baseadas em evidências, partem do princípio de que o mesmo medicamento é bom para todos que têm a mesma doença. Essa conduta vai de encontro aos conhecimentos atuais sobre os mecanismos envolvidos na patogenia da maior parte das disfunções clínicas. Doenças são produto da conjunção de fatores genéticos, ambientais e comportamentais. Polimorfismos genéticos, microbioma, exposições ambientais e agentes etiológicos se conjugam, determinando processos etiopatogênicos complexos que fundamentam a expressão clínica. Propor padronizações terapêuticas que não levem em consideração as diferenças potenciais que tornam única cada pessoa doente, atenta contra o bom senso. Hoje se reconhece a necessidade de uma abordagem personalizada, que considere a premissa de que, em cada indivíduo, a doença pode ter diferentes alvos terapêuticos, e que cada pessoa pode responder diferentemente à mesma abordagem terapêutica. Nessa nova perspectiva, biomarcadores capazes de identificar o mecanismo patogênico responsável pela disfunção em cada indivíduo e o alvo terapêutico são instrumentos fundamentais. A identificação desses biomarcadores é uma etapa importante na transição do modelo atual da prática médica para a medicina de precisão, na qual a abordagem preventiva e terapêutica levará em consideração a variabilidade genética, o ambiente e o estilo de vida de cada pessoa. Possivelmente, essa nova prática médica permitirá aumentar as taxas de sucesso terapêutico na asma e na doença pulmonar obstrutiva crônica, problemas respiratórios crônicos de prevalência elevada com uma gama ampla e variada de apresentações clínicas e respostas às terapias atuais.
Descritores: Medicina de precisão, asma, doença pulmonar obstrutiva crônica, biomarcadores.
INTRODUÇÃO
A fala médica vem incluindo novos termos/frases, como “Medicina personalizada”, “Medicina de precisão”, “o medicamento certo para o paciente certo na hora certa”, que representam evolução na abordagem médica. Sinteticamente, podem ser vistos como uma mudança de modelo; uma transição do modelo clássico no qual as condutas médicas eram baseadas nas orientações de profissionais renomados, passando por propostas diagnósticas e terapêuticas baseadas em evidências, e chegando ao modelo da Medicina personalizada (MP). De forma simplista, MP pode ser definida como o uso de biomarcadores para a identificação de características específicas do problema em questão, e orientação das abordagens preventivas, diagnósticas e terapêuticas. Para que a MP faça parte do cotidiano médico, é fundamental identificar marcadores capazes de identificar os alvos terapêuticos básicos da disfunção. A busca por esses instrumentos vem sendo objeto de inúmeras pesquisas, e sua identificação permitirá subirmos de patamar nas ações diagnósticas e terapêuticas.
Novas tecnologias farão parte do cotidiano médico, mudando a abordagem atual de “um serve para todos” para aquela que trata o paciente como um indivíduo único. Na próxima etapa da prática médica, termos como “farmacogenética”, “epigenética”, “modificações pós-translacionais”, “metaboloma”, “transcriptoma”, “proteoma”, entre outros, farão parte de uma nova ciência dedicada ao estudo da biologia celular no nível genético e molecular, a Ciência ômica. Aliada à bioinformática, essa nova perspectiva de estudo dos eventos celulares em seu nível mais profundo provavelmente gerará instrumentos capazes de identificar os mecanismos básicos das disfunções celulares que resultam em doença. Os biomarcadores resultantes servirão como instrumentos diagnósticos e preditivos dos alvos terapêuticos e dos desfechos esperados. Quando disponíveis, possibilitarão passarmos para a próxima página da prática médica, a Medicina de precisão, na qual a abordagem preventiva e terapêutica leva em consideração a variabilidade genética individual, o ambiente e o estilo de vida de cada pessoa.
Particularmente no campo das doenças respiratórias obstrutivas crônicas (DROC), a evolução do conhecimento vem permitindo compreender que múltiplos fatores genéticos, microbiológicos e ambientais interagem gerando numerosos mecanismos patogênicos na asma e na doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), que determinam a ampla gama de apresentações clínicas e desfechos terapêuticos observados na prática clínica. Num cenário como esse, a identificação de marcadores capazes de diferenciar os mecanismos patogenéticos responsáveis, e apontar os alvos terapêuticos efetivos, é um passo fundamental para inscrever nossa prática nesse futuro modelo de abordagem médica.
Nesse artigo, não serão abordados marcadores clínicos (idade de início dos sintomas, associação à alergia, ao uso de fármacos, ao exercício e a outros), funcionais (parâmetros espirométricos mais adequados para definição de gravidade, por exemplo), ou de imagem1. O texto fará referência apenas aos princípios que regem a busca de biomarcadores diagnósticos e terapêuticos para as DROC.
MEDICINA PERSONALIZADA
Mesmo com todo o progresso médico, a definição de Medicina proposta por Hipócrates – “Arte de consolar sempre, aliviar quase sempre e curar algumas vezes” – continua atual. As taxas de cura alcançadas em grande parte das doenças ainda são baixas. O desenvolvimento de instrumentos e técnicas que permitam desvendar os mecanismos moleculares envolvidos na gênese das disfunções vem permitindo compreender os aspectos patogênicos envolvidos nos processos doentios. Graças a esse progresso, passamos a compreender que o resultado final (doença) pode ser atingido de diferentes modos, e que os mecanismos patogênicos podem diferir entre os doentes graças às interações com perfis genéticos variados, próprios de cada indivíduo, com o ambiente no qual ele está inserido, e com seu estilo de vida. Nesse cenário, é óbvio que tanto a abordagem preventiva, como a diagnóstica e terapêutica devem ser centradas nos mecanismos responsáveis pelo adoecimento naquela pessoa, e não, como ainda fazemos, no resultado final. Ainda hoje, o objetivo do tratamento é remediar a lesão instalada, e não prevenir ou interferir no mecanismo determinante da disfunção.
A compreensão de que a conduta atual é insuficiente para prover saúde e prevenir desfechos indesejáveis vem mudando paradigmas na Medicina. Nesse cenário de mudanças, a MP pode ser vista como definição das condutas preventivas, diagnósticas e terapêuticas fundamentadas nos dados individualizados do paciente, englobando informações genéticas, genômicas, clínicas e ambientais. Nesse conceito, o processo de adoecimento é definido por características próprias de cada indivíduo, o que pode modular o mecanismo determinante e a resposta ao tratamento. Na abordagem personalizada, o estudo aprofundado da biologia molecular (BM) – Ciência ômica – tem papel de destaque, já que resulta da incorporação de aspectos genéticos, moleculares e bioquímicos nos processos biológicos e patobiológicos. Na perspectiva das ciências ômicas, que buscam desvendar os fenômenos biológicos em termos genéticos e moleculares, procura-se identificar personagens e mecanismos envolvidos no desenvolvimento celular, na comunicação entre as células, e no controle das ações celulares. A partir daí, poder-se-á identificar os pontos de desvio que geram as doenças.
A efetividade da MP é diretamente proporcional à disponibilidade de marcadores que apontem exatamente o mecanismo patogênico e o alvo terapêutico naquele doente em particular. Quando disponíveis na prática clínica, serão instrumentos fundamentais na seleção da abordagem terapêutica, e na predição do desfecho do tratamento. Certamente, o painel de marcadores a serem empregados em cada investigação clínica deverá propiciar informações genéticas e moleculares. Provavelmente, as tecnologias necessárias para a obtenção de biomarcadores com esse potencial representarão valores financeiros elevados. Assim, numa fase inicial, o custo poderá ser um obstáculo importante a ser superado para a democratização desses instrumentos fundamentais na rotina médica. Mesmo caros, deve ser considerado que o seu emprego representará abandono de testes diagnósticos e tratamentos desnecessários, ou seja, racionalização de custos.
BIOMARCADORES
Os biomarcadores podem ser definidos de acordo com a área em que são empregados. Por exemplo, dados os riscos à saúde humana gerados pelas intervenções do homem ao meio ambiente, biomarcadores podem ser instrumentos da Epidemiologia Ambiental para mensuração dos riscos associados à exposição a determinados agentes químicos2. Também podem ser usados na Monitorização Biológica, na qual parâmetros biológicos podem ser usados como marcadores de toxicidade por exposição a produtos químicos3 ou a medicamentos (efeitos adversos ou toxicidade)4. Nessa perspectiva, os biomarcadores poderiam ser classificados em três grupos:
– Biomarcadores de exposição – permitem confirmar e avaliar a exposição individual ou de um grupo a determinado fator, estabelecendo a correlação entre a exposição e sua intensidade e o efeito no organismo;
– Biomarcadores de efeito – documentam as alterações clínicas resultantes da exposição;
– Biomarcadores de susceptibilidade – definem o grau da resposta do organismo à exposição.
Na perspectiva do presente texto, usaremos a definição do National Institutes of Health Biomarkers Definitions Working Group, que define biomarcador como “uma característica mensurável objetivamente e avaliada como um indicador de processos biológicos normais, processos patogênicos ou respostas farmacológicas a intervenções terapêuticas.”5 Um marcador biológico que preencha essas qualidades e permita “identificar a susceptibilidade individual à agressão em foco” seria o instrumento perfeito para a personalização terapêutica. Idealmente, biomarcadores deveriam incorporar algumas outras qualidades importantes, tais como: (1) não ser afetado por fatores externos à doença em questão; (2) identificar a pessoa susceptível antes que a doença se desenvolva; (3) permitir o diagnóstico ainda na fase assintomática; (4) indicar a abordagem terapêutica potencialmente mais efetiva; e (5) predizer a velocidade de progressão da doença. Finalmente, um biomarcador deveria ter, também:
– relação clara com o processo patobiológico em questão;
– sensibilidade, especificidade e valores preditivos positivo e negativo elevados;
– flutuações em sua concentração proporcionais ao estágio da doença e à intervenção realizada;
– reprodutibilidade qualitativa e quantitativa.
Se uma disfunção ou uma doença forem vistas sob a perspectiva do funcionamento alterado de um tipo celular ou de um conjunto deles, sua patogênese tem por base disfunções genéticas. Nessa situação, provavelmente, a identificação de biomarcadores partirá da utilização de técnicas que desvendem as interações entre os componentes do sistema biológico, identificando a relação entre funções e comportamentos de genes, seus transcritos e metabólitos que geram os mecanismos patogenéticos básicos de cada disfunção/doença. A análise global dos sistemas biológicos está fundamentada em dados obtidos pelas abordagens “ômicas”: genômica, transcriptômica, proteômica e metabolômica6,7. Denomina-se “Genômica” a ciência que utiliza métodos de sequenciamento de DNA combinados com a bioinformática clássica para sequenciar e analisar a função e a estrutura dos genomas. Divide-se em Genômica estrutural (estuda a estrutura dos genomas) e Genômica funcional (estuda o funcionamento dos genomas). A Genômica funcional abrange os estudos do:
– Transcriptoma: conjunto de RNAs mensageiros que uma célula expressa em determinado momento, sob determinadas condições. Através dele, é possível saber quais genes são expressos diferencialmente em resposta a estímulos distintos (infecciosos ou abióticos)8. Como a transcrição pode ser influenciada por fatores ligados ao ambiente ou ao estilo de vida, sua análise pode, potencialmente, identificar biomarcadores.
– Proteoma: conjunto de proteínas produzidas por parte de um genoma. Enquanto o genoma de um organismo mantém-se relativamente estável ao longo da vida, o proteoma é dinâmico e variável. A análise proteômica pode indicar a expressão de um gene e apontar disfunções em processos metabólicos, regulatórios e de sinalização. Contrastando com estudos envolvendo uma única proteína, no estudo proteômico busca-se identificar um conjunto de proteínas sintetizadas por determinada célula ou tecido durante um evento fisiológico específico. As proteínas controlam a maior parte dos processos celulares, agindo como enzimas, anticorpos, hormônios, componentes estruturais ou receptores celulares. A identificação das modificações pós-transducionais, das concentrações ou das interações proteína-proteína em tecidos e fluidos corporais tem o potencial de indicar ou distinguir processos doentios9. Como o estudo do proteoma é baseado na análise do DNA, permite obter informações sobre processos modulatórios da função e atividade proteica que não podem ser alcançados na análise do RNA10.
– Metaboloma: conjunto de metabólitos (aminoácidos, nucleotídeos, espécies iônicas, álcoois e cetonas voláteis, carboidratos hidrofílicos, proteínas e outros) produzidos ou modificados por um organismo e detectáveis numa célula, num fluido biológico ou num tecido11. Num sistema biológico, o metaboloma representa a integração entre genótipo e fenótipo, já que integra fatores genéticos e ambientais. Metabólitos (moléculas menores que 1kDa, na maior parte das vezes) são intermediários e produtos do metabolismo. Concentrações ínfimas e existência fugaz são os principais obstáculos para sua detecção, que poderão vir a ser superados com o aprimoramento de instrumentos e técnicas. A partir daí, a próxima etapa consistirá em identificar como a presença e concentração das centenas, talvez milhares, de metabólitos poderão vir a ser usados como biomarcadores na prática clínica.
O número astronômico de informações, variações e interações entre os componentes de um sistema biológico torna obrigatório usar programas computacionais (Bioinformática) capazes de analisar e interpretar todas as combinações possíveis. Na medida em que as abordagens “ômicas” forem sendo inseridas na prática médica, estaremos realmente fazendo uma Medicina de precisão, oferecendo uma opção terapêutica que leve em consideração as particularidades de cada doente.
Antes de chegarmos a esse ponto, teremos que cumprir uma etapa dedicada a identificar biomarcadores usando as tecnologias atualmente disponíveis na maior parte dos centros. Dadas as diferentes classes de informações necessárias para o atendimento adequado de um doente, que envolvem desde o diagnóstico até a seleção do tratamento e predição da resposta terapêutica, certamente usaremos painéis de biomarcadores. O impacto financeiro do seu emprego na rotina médica terá que ser avaliado, já que, ao mesmo tempo em que potencialmente evitaria exames e tratamentos desnecessários/inefetivos, diminuindo, por conseguinte, o custo médico da doença, o custo da sua aplicação deve ser relevante. Tradicionalmente, a área da Saúde é um exemplo da grande distância entre os recursos necessários e os disponíveis. Mesmo nos países mais evoluídos e com maior renda, nos quais a maior parte dos agravos preveníveis não representa problema significativo, a alocação de recursos passa por critérios rígidos de custo-efetividade. O câncer é um exemplo de uma área na qual marcadores preditivos de resposta terapêutica poderão ser instrumentos importantes para a redução do custo elevado do tratamento. O debate desse tema, no qual cifras astronômicas por vezes refletem-se em poucas semanas ou meses a mais de vida em parcelas variáveis dos doentes submetidos a tratamentos sofisticados, é importante para a Saúde Pública. Certamente, será um debate espinhoso, por envolver aspectos morais, éticos e financeiros.
BIOMARCADORES NAS DROC
As doenças respiratórias obstrutivas crônicas (DROC) constituem um grupo formado pela asma e pela doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC). O progresso do conhecimento sobre os mecanismos patogenéticos envolvidos em ambas, nos quais fatores genéticos interagem com fatores ambientais (poluentes atmosféricos, alérgenos, microrganismos e outros) e com nosso microbioma, vem tornando cada vez mais tênue a linha que separa a asma da DPOC. Mesmo considerando as diferenças marcantes nas apresentações anatomopatológicas de ambas, é possível que, mais do que o conjunto de duas doenças ou síndromes, as DROC sejam compostas por uma ampla gama de disfunções respiratórias crônicas resultantes da interação descrita acima, cujos traços comuns sejam a inflamação da via aérea e a obstrução ao fluxo aéreo. Nesse grande painel de disfunções respiratórias, a “asma pura” estaria num extremo, e a “DPOC pura” no outro. O intervalo entre elas seria preenchido por inúmeras apresentações clínicas, com diferentes graus de disfunção ventilatória e alterações anatomopatológicas, que passariam pela “asma com aspectos da DPOC” até a “DPOC com características da asma”. Certamente, ambas, em suas formas “puras”, podem coexistir no mesmo indivíduo, dada a frequência significativa de cada uma. A partir do centro, arranjos genéticos e características da disbiose (desequilíbrios do microbioma) presente resultariam em diferentes formas clínicas que tenderiam mais para um extremo ou para o outro. Se essa teoria estiver correta, a ACO (Asthma–COPD overlaping) seria o ponto central. Entretanto, a ACO foi definida como uma entidade clínica “autônoma”, como um fenótipo clínico no qual o diagnóstico é estabelecido quando dois dos três critérios maiores ([1] prova broncodilatadora fortemente positiva – aumento do VEF1 ≥ 15% e ≥ 400 mL; [2] eosinofilia no escarro; e [3] história pessoal de asma) e dois dos critérios menores ([1] IgE total elevada; [2] história pessoal de atopia; e [3] prova broncodilatadora positiva – aumento do VEF1 ≥ 12% e ≥ 200 mL) estão presentes em dois ou mais momentos13. Se observadas as características clínicas e funcionais incluídas na caracterização da ACO, pode ficar a impressão de que seja uma forma mais grave de asma, ou mais leve de DPOC14. Entretanto, segundo a teoria apresentada acima, parte das apresentações clínicas rotuladas como ACO poderiam ser, na verdade, resultados da multiplicidade de mecanismos patogênicos envolvidos nas DROC, e não da associação de asma e DPOC. Seriam, na verdade, produtos de variações potenciais dentre aquelas determinantes das DROC. A variabilidade intra e interindividual, seja nos agentes etiopatogênicos, na disfunção ventilatória e sua evolução, nos mecanismos celulares e moleculares envolvidos nos processos inflamatórios das vias aéreas, na diversidade de apresentações clínicas, ou nos desfechos terapêuticos, provavelmente tem como causa básica a interação entre a diversidade genética, particularidades do microbioma e da exposição ambiental. Esse conjunto seria o principal determinante do endotipo (mecanismo determinante da disfunção). O grande e crescente conjunto de endotipos identificados nas DROC é o responsável pela dificuldade eventual de diferenciar a asma da DPOC, e pela diversidade de desfechos, deixando claro que a melhora das taxas de sucesso terapêutico está diretamente associada à identificação de marcadores diagnósticos e terapêuticos precisos.
Num ambiente permeado por processos inflamatórios complexos e imbricados, como o das vias aéreas nas DROC, o emprego potencial de biomarcadores deixa claras as razões do interesse elevado em identificar aqueles que possam ser úteis nas ações preventivas, diagnósticas e terapêuticas. Até o momento, a maior parte dos biomarcadores desenvolvidos e avaliados tem como alvo caracterizar a inflamação brônquica. Linhas de pesquisa buscam identificar citocinas envolvidas em pontos chave dos processos patológicos. O grande obstáculo para o sucesso dessa classe de biomarcadores está situado tanto na sua variabilidade durante as diversas etapas dos mecanismos patogênicos envolvidos, como na sua modulação por fatores externos independentes. Por exemplo, as disfunções celulares que geram as alterações básicas inflamatórias do trato respiratório nas DROC podem ser capitaneadas por diferentes classes de linfócitos no mesmo indivíduo, em momentos distintos. A “liderança linfocitária” dos processos inflamatórios das vias aéreas tanto pode alternar como associar diferentes células T e de outras classes, gerando alterações inflamatórias distintas que se expressam de modo parecido. Apenas esse fator, provocaria variações temporais nas concentrações de muitas das citocinas envolvidas, reduzindo seu potencial como biomarcador. Mais ainda, as concentrações de muitas das citocinas envolvidas também são afetadas por fatores externos, como comorbidades, tabagismo e hábitos dietéticos, por exemplo.
A identificação de biomarcadores úteis e confiáveis na prática clínica é um processo complexo. Se usarmos a DPOC como exemplo, temos que ter claro que um fator importante a ser considerado na identificação de biomarcadores é o tabagismo. O fumo, associado à maior parte dos casos, por si só é uma causa de inflamação e de estresse oxidativo no trato respiratório. Por essa razão, os biomarcadores devem ser capazes de diferenciar as alterações inflamatórias associadas diretamente ao fumo daquelas particulares da DPOC, mesmo em fumantes. O mesmo racional deve ser aplicado ao emprego habitual de queima de biomassa para aquecimento ou cozimento de alimentos ou de exposição frequente a outros fatores causais das DROCs. Esse desafio e sua superação estão relacionados à identificação precisa dos mecanismos patogenéticos da DPOC. Talvez o aprimoramento de tecnologias integrando alterações genéticas, seus transcritos e produtos proteicos envolvidos em processos celulares importantes nos mecanismos patogenéticos das enfermidades (Ciências ômicas) seja um caminho para a identificação de biomarcadores efetivos no diagnóstico, na seleção terapêutica e na predição do desfecho.
Biomarcadores no ar expirado
As DROC estão associadas ao estresse oxidativo (EO) e à inflamação das vias aéreas. Por essa razão, há linhas de pesquisa que buscam biomarcadores em condensados do ar expirado (CAE), obtido com o resfriamento do ar exalado. Caso se identifiquem substâncias que preencham as características necessárias aos biomarcadores, passaremos a dispor de elementos simples, coletados por métodos minimamente invasivos e facilmente reprodutíveis sem gerar inflamação ou disfunção nas vias aéreas. Na prática, ao fornecerem informações sobre a composição extracelular do fluido brônquico e dos gases solúveis exalados15, poderão indicar o diagnóstico, o tratamento mais adequado e seu desfecho potencial. O equipamento necessário seria portátil, não induziria desconforto e poderia ser empregado em crianças ou pacientes sob ventilação mecânica. Entretanto, os modelos disponíveis ainda requerem aprimoramento que eleve sua sensibilidade. Além disso, os principais inconvenientes do procedimento incluem a diluição por vapor d’água, inespecificidade da área alvo nas vias aéreas, contaminação pela saliva, e baixa reprodutibilidade. A mensuração da fração exalada de óxido nítrico (FeNO) foi uma das primeiras tentativas de identificar um biomarcador capaz de distinguir asmáticos de não asmáticos16. Desde então, numerosos estudos vêm buscando decifrar o real valor do FeNO como biomarcador. No trato respiratório, o óxido nítrico (NO) regula o tono vascular e brônquico (promovendo a dilatação)17, modula a coordenação do batimento ciliar18 e age como neurotransmissor na rede neural não-adrenérgica e não-colinérgica19. A fonte anatômica precisa do NO exalado ainda não está definida, mas acredita-se que a maior parte tenha origem nas vias aéreas inferiores. Há indícios de que a maior parte do NO seja excretada pelas células epiteliais das grandes vias aéreas centrais20. Dada a grande interferência de fatores pessoais (idade, sexo, atopia e morbidades [fibrose cística, hipertensão pulmonar, discinesia ciliar primária, displasia broncopulmonar, hipotermia], por exemplo) e hábitos de vida (tabagismo, uso de medicamentos e outros) nos valores medidos da FeNO, seu valor real como biomarcador, e até mesmo as faixas de normalidade, ainda são motivos de debate. Resumidamente, os níveis de FeNO são elevados em asmáticos, e diminuem com o tratamento com corticosteroides. Acredita-se que a inflamação eosinofílica das vias aéreas estimule as células epiteliais a produzir NO, o que faria da FeNO um marcador desse tipo de inflamação brônquica. Atualmente, preconiza-se usar pontos de corte em vez de valores normativos na interpretação das concentrações de NO em asmáticos.
– Valores da FeNO abaixo de 25 ppb em adultos e menores que 20 ppb em crianças sugerem inflamação não-eosinofílica das vias aéreas, ou ausência de inflamação.
– Valores maiores que 50 ppb em adultos e 35 ppb em crianças sugerem inflamação eosinofílica nas vias aéreas.
– Concentrações entre 25 e 50 ppb em adultos, e 20 a 35 ppb em crianças, devem ser interpretadas cuidadosamente e com base na história clínica (sintomas, tabagismo, medicação em uso).
– Variações maiores que 20% para cima (25 ppb em adultos e 20 ppb em crianças) sugerem progresso da inflamação eosinofílica.
– Reduções maiores que 20%, quando os valores anteriores superavam 50 ppb, podem ter relevância clínica21.
Com todas essas indefinições, é pouco provável que a medida da FeNO possa ser um biomarcador confiável numa condição como a asma, na qual os diversos endotipos associados deixam clara a grande variação na (1) associação com atopia; (2) etiopatogenia; (3) celularidade inflamatória das vias aéreas (eosinofílica, neutrofílica, por exemplo); (4) resposta aos medicamentos, e (5) história natural, e os numerosos fatores intervenientes. Ainda não há estudos em número suficiente de doentes para avaliar seu valor na DPOC. Aparentemente, está aumentada naqueles doentes com eosinofilia marcante no escarro e sem hiper-responsividade brônquica (HRB)22.
A maior parte dos biomarcadores potenciais no CAE que vêm sendo avaliados para emprego na asma tem relação com a inflamação e o EO das vias aéreas, e não com aspectos específicos das DROC. EO é o resultado do desequilíbrio na formação de espécies reativas de oxigênio (ROS) e mecanismos pulmonares antioxidantes de defesa. Pode ser induzido pelo fumo ou por exposições tóxicas ambientais, mas não é um atributo exclusivo das DROC. As incertezas e divergências nos estudos realizados, e o fato de serem afetados por fatores externos, reduz seu valor potencial como biomarcadores. Dentre os avaliados, pode-se citar o pH e o peróxido de hidrogênio (H2O2), marcadores do estresse oxidativo. Mediadores inflamatórios (leucotrienos, isoprostanos e prostaglandina E2), citocinas (IL-4, IL-5, IL-6, IL-8 e IL-17, RANTES, TNF-α, MIP1β, MIP1β, eotaxina-1, PCR) e proteínas (citoqueratina 1, malondialdeído, dimetilarginina) vêm sendo pesquisados. Resumidamente, o caminho ainda é longo na busca de biomarcadores úteis no CAE. Apesar de o método representar um grande atrativo na coleta do material para exame (é só soprar no equipamento), os estudos realizados pecam pela baixa reprodutilidade de resultados. Certamente, isso deriva da incapacidade técnica ainda existente de analisar especificamente diferentes processos inflamatórios que coexistem nas vias aéreas de asmáticos23.
Na DPOC, a situação é equivalente. A maior parte dos biomarcadores potenciais estudados não são promissores, já que têm mais ligação com o tabagismo, com o estresse oxidativo e com a inflamação das vias aéreas, e não parecem ser capazes de distinguir os diferentes fenótipos (enfisema, bronquite crônica, ACOS). Dentre eles, o pH, a concentração de nitratos (S-nitrosotiols, nitrosamina, amônia) e isoprostanos, citocinas (IL-1α, IL-1β, IL-2,IL-4, IL-5, IL-8, IL-10,IL12α e β, IL-17, TNF-α e IFN-γ), proteínas sinalizadoras e regulatórias (citoqueratinas I e II), assim como gases (CO) têm sido alvo de estudos11.
Biomarcadores no escarro
Dada a facilidade e o baixo risco na sua obtenção, o escarro é um material que vem sendo usado para estudar os processos inflamatórios nas vias aéreas. Embora em alguns pacientes, especialmente aqueles com bronquite crônica ou fibrose cística, possa ser obtido espontaneamente, em parte das vezes é induzido por nebulização com solução salina hipertônica. Diversos marcadores de EO, inespecíficos para as DROC, podem ser detectados, mas os métodos atuais ainda permitem grande variação nos resultados24. Independentemente da baixa especificidade, deve-se ter em mente que o EO também altera ácidos nucleicos. Particularmente na DPOC, a lesão oxidativa do DNA/RNA é fator importante na patogenia, o que pode fazer dos marcadores genéticos fontes de biomarcadores úteis25,26.
A busca de biomarcadores na asma e na DPOC na secreção brônquica iniciou-se pela pesquisa da celularidade no escarro. Tradicionalmente, a asma era vista como uma disfunção respiratória com predominância de eosinófilos nas vias aéreas, enquanto na DPOC, predominavam os neutrófilos. Entretanto, o progresso no conhecimento sobre os mecanismos patogênicos de ambas vem reduzindo a especificidade do método27,28. A eosinofilia no escarro pode ser uma característica de uma parcela da população asmática, particularmente a atópica, que responde bem ao corticosteroide, mas também pode ser observada na DPOC, particularmente durante exacerbações. Já a neutrofilia, frequente na DPOC, pode ser observada no asmático com sintomatologia persistente e menor grau de resposta ao corticosteroide.
Uma grande quantidade de moléculas liberadas pelas células ativadas do trato respiratório (citocinas, quimiocinas, linfocinas, fatores de crescimento, proteases e antiproteases) tem sido encontrada em concentrações alteradas tanto na asma, como na DPOC. Dezenas de citocinas, com sobreposição em suas funções, têm sido associadas aos processos inflamatórios nas vias aéreas, tais como TNF-α, IL-1β e IL-6. Quimiocinas chaves no recrutamento de células inflamatórias (CCL2, CXCL8, CXCL1 e CXCL5, por exemplo) estão marcadamente elevadas no escarro de portadores de DPOC. Ainda resta por definir sensibilidade, especificidade e valores preditivos dessas moléculas para que possam ser avaliadas quanto à incorporação no painel de biomarcadores das DROC.
Biomarcadores no sangue
Um fato relevante que deve ser lembrado na busca de biomarcadores sanguíneos das DROC é a presença frequente de comorbidades extrapulmonares, particularmente na DPOC. Nessa última, os biomarcadores de inflamação sistêmica mais estudados incluem fibrinogênio, proteína C-reativa (PCR), IL-2, IL-6, IL-8, IL-13; todos com especificidade insuficiente29. Outros que vêm sendo avaliados na DPOC incluem metaloproteinases de matriz 8 e 9 (MMP-8 e MMP-9), eotaxinas, IFN-g, EGFR, proteína surfactante-D (SP-D), e proteínas 16 e 18 de célula clara (CC-16 e CC-18)30. Um problema na identificação de biomarcadores séricos na asma reside no fato de, aparentemente, não haver comprometimento sistêmicos, ao contrário da DPOC. De qualquer modo, FeNO e periostina sérica31, entre outros, estão sendo avaliados.
MicroRNAs COMO BIOMARCADORES NAS DROC
MicroRNAs (miRNA) são um grupo de pequenas moléculas de RNA não-codificante que modulam a expressão genética no nível da tradução, através da interferência na ação do RNA mensageiro (mRNA), modificando a proteína resultante (ação epigenética). Os miRNA são fundamentais na regulação de processos biológicos e de etapas da função celular (ciclo celular, diferenciação e apoptose).
Aparentemente, há mais de 1000 miRNA distintos presentes no genoma humano32, modulando a expressão de mais de 60% dos genes33. Problemas no funcionamento e/ou na expressão (redução ou aumento) de miRNAs estão associados a diversas doenças, como neoplasias34,35, doenças pulmonares (asma, DPOC, fibrose cística, fibrose pulmonar idiopática)36, diabetes, patologias cardiovasculares37 e infecciosas38.
Os estudos sobre miRNAs são recentes, e buscam avaliar se alterações na sua expressão representam papéis funcionais nos mecanismos patobiológicos de diversas doenças. Se ficar demonstrada sua participação na gênese de doenças pulmonares, os miRNAs poderão ser biomarcadores efetivos, assim como alvos terapêuticos. A principal vantagem da sua utilização como biomarcador está no fato de que não parece ser influenciado por fatores externos ao mecanismo determinante da disfunção, o que lhe confere acurácia. Perfis alterados de expressão de miRNAs em diversas doenças respiratórias podem ser identificados tanto em tecido pulmonar, como no escarro, lavado broncoalveolar e sangue/soro periférico14. Estudos sobre sua expressão e função na asma39 e na DPOC40 sugerem grande potencial como biomarcadores. Particularmente na asma, concentrações alteradas de dezenas de miRNA vêm sendo associadas à produção de citocinas TH2, a etapas da inflamação pulmonar alérgica, à hiper-responsividade brônquica, à função da célula T, ao remodelamento da via aérea, ao binômio infecção da via aérea/exacerbação, e a outras alterações próprias da asma32. O tabagismo está presente em grande parte dos portadores de DPOC, e ele, por si só, é fator causal de alterações moleculares e genéticas no trato respiratório41. Isso é um fator relevante e deve ser considerado na busca de alterações de miRNAs específicas da DPOC, e não apenas dos processos oxidativo e inflamatórios presentes no trato respiratório de fumantes.
Dada sua participação nos mecanismos patogenéticos de diversas doenças, os miRNA também podem ser alvos terapêuticos. Essa segunda perspectiva advém de estudos em outras doenças, como hepatite C42 e carcinoma hepatocelular, nos quais fármacos inibidores específicos mostram resultados promissores.
MEDICINA PERSONALIZADA E MEDICINA DE PRECISÃO NAS DROC
As DROC têm sintomas iniciais inespecíficos, apresentações heterogêneas e são causa relevante de morbidade e mortalidade. A caracterização dos diversos endotipos englobados pelas DROC é uma etapa básica para a identificação de biomarcadores efetivos no diagnóstico e na definição terapêutica. As citocinas, que hoje são alvos de estudos que buscam identificar biomarcadores efetivos, provavelmente não preenchem as qualidades necessárias, dadas as variações em suas concentrações moduladas por fatores externos aos processos inflamatórios envolvidos na patogenia das DROC. O mesmo pode ser imaginado com relação a diversos outros produtos biológicos, cujo potencial como biomarcadores vem sendo avaliado.
Certamente, a abordagem ômica representa a tecnologia mais segura na busca dos biomarcadores adequados, capazes de direcionar o desenvolvimento de novos fármacos e elevar as taxas de sucesso terapêutico. Mais ainda, os painéis de biomarcadores permitirão que a prática médica possa adotar os preceitos da Medicina personalizada, etapa prévia da Medicina de precisão. A progressão do conhecimento, a partir dessa fase, permitirá que as bases da Medicina de precisão sejam incorporadas na rotina clínica, e a terapêutica seja individualizada para as necessidades do paciente, com base em características genéticas, fenotípicas e psicossociais, que diferenciam um dado paciente de outros com apresentações clínicas semelhantes. Aí, finalmente, teremos virado uma página, e poderemos oferecer maiores taxas de sucesso terapêutico aos nossos pacientes.
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