A epidemiologia da anafilaxia no Brasil: enquanto o CID 11 não chega
Gustavo Silveira Graudenz1; Helena Landim Cristóvao2
1. Universidade de Santo Amaro, Disciplina de Reumatologia e Imunologia - Sao Paulo, SP, Brasil
2. Universidade de Santo Amaro, Disciplina de Reumatologia e Imunologia - Sao Paulo, SP, Brasil
Endereço para correspondência:
Gustavo Silveira Graudenz
E-mail: ggraudenz@gmail.com
Nao foram declarados conflitos de interesse associados à publicaçao desta carta.
Prezado Editor,
A anafilaxia é uma reaçao alérgica aguda, sistêmica e potencialmente fatal. Estudos epidemiológicos apontam um aumento da prevalência de anafilaxia em populaçoes de países industrializados1. Estudos recentes mostram grande variaçao na prevalência da anafilaxia em grandes populaçoes, variando de 0,3% na Europa2 até 1,6% nos Estados Unidos3. Em artigo sobre a epidemiologia da anafilaxia publicada nos Arquivos de Asma, Alergia e Imunologia, Miranda da Silva e Morato-Castro abordaram de forma precisa os desafios para o avanço do tema no Brasil. Entre os desafios listados encontra-se a dificuldade de realizaçao de estudos de prevalência, incidência, morbidade e mortalidade, devido à heterogeneidade clínica dos casos e à dificuldade de enquadramento dentro dos sistemas de classificaçao das doenças4 Estudos brasileiros de prevalência ou incidência de base populacional ainda inexistem.
Para a realizaçao de estudos de base epidemiológica é quase sempre necessário a busca de diagnósticos baseados no Código Internacional das Doenças (CID) inseridos em sistemas de informaçao de saúde sobre mortalidade ou morbidade hospitalar. A anafilaxia encontra-se dividida no CID-10 no capítulo 19, sobre causas externas de morbidade e mortalidade. Dentro deste capítulo, a anafilaxia pode ser enquadrada nos grupos:
A - Outros efeitos de causas externas nao especificado (OECENE);
B - Complicaçoes com cuidados médicos cirúrgicos, nao classificados em outra parte (CCMCNCOP).
No grupo OECENE dentro da categoria T78 encontramos os CIDs:
T78.0 Choque anafilático de origem alimentar;
T78.1 Outras reaçoes de tolerância alimentar nao classificadas em outra parte;
T78.2 Choque anafilático nao especificado;
T78.4 Alergia nao especificada.
No grupo CCMCNCOP, dentro da categoria T80 e T81, encontramos os CIDs:
T80.5 Choque anafilático devido a soro;
T80.6 Outras complicaçoes subsequentes à infusao, transfusao e injeçao terapêutica;
T80.9 Complicaçao nao especificada subsequente a infusao, transfusao e injeçao terapêutica;
T81.1 Choque durante ou resultante de procedimento nao classificado em outra parte.
É interessante notar a lacuna existente no CID 10 para classificar a anafilaxia por ferroada de himenópteros; no capítulo 19 no grupo sobre lesoes e envenenamentos de causas externas, encontramos no grupo de efeitos tóxicos de substâncias de origem nao medicinal, subgrupos para efeito tóxico de abelhas, vespas, formigas e outros artrópodes. Entretanto, a anafilaxia decorrente de ferroada de himenópteros nao é considerada uma reaçao tóxica, e sim de hipersensibilidade.
Todas estas fragilidades do CID 10 na classificaçao da anafilaxia deverao ser resolvidas na nova versao do CID onde a alergista brasileira, Dra. Luciana Kase Tanno tem um papel de destaque nesta iniciativa. A nova proposta coloca a anafilaxia no capítulo 04 - Doenças do sistema imune, na seçao de condiçoes alérgicas e de hipersensibilidade, com uma seçao específica para anafilaxia. Ali estao propostos os códigos individualizados para anafilaxia induzida por alimentos, anafilaxia induzida por drogas, anafilaxia por veneno de inseto. Também estao propostos subgrupos para anafilaxia induzida por fatores físicos; como anafilaxia induzida pelo exercício, anafilaxia induzida pelo frio e outro subgrupos com anafilaxia devido alérgenos inalados e por alérgenos de contato5. Pela primeira vez a anafilaxia é classificada de maneira correta e ganha grande visibilidade no CID.
O DATASUS é o departamento de informática do Sistema Unico de Saúde do Brasil (SUS), com a responsabilidade de coletar, processar e disseminar informaçoes sobre saúde. Seu uso em estudos epidemiológicos é muito frequente. Dentro do DATASUS, existe o Sistema de Informaçoes Hospitalares (SIH), que registra todos os atendimentos provenientes de internaçoes hospitalares que foram financiadas pelo SUS. Neste sistema, é possível identificar o número de internaçoes por doenças listadas, bem como a média de dias de internaçao, valor gasto referente à internaçao, taxa de mortalidade, entre outras informaçoes.
Neste sistema, a busca sob o nome anafilaxia na lista de morbidades nao gera nenhum resultado. As alternativas atuais estao restritas a enquadrar a anafilaxia na lista de morbidades disponíveis sob a definiçao incorreta de "Envenenamento ou intoxicaçao por substâncias nocivas ou tóxicas" ou ainda sob a inespecífica definiçao de "Outras causas externas que nao as listadas no site".
Já no Sistema de Informaçao de Mortalidade (SIM), é possível encontrarmos as causas de mortalidade listadas sob capítulos, categorias, grupos e morbidades, porém nas morbidades nao constam as listadas acima, somente a mesma categoria encontrada no SIH, sob o título "Todas outras causas externas". A busca pelo termo anafilaxia também nao gera nenhum resultado.
Apesar da deficiência do CID 10 em determinar de forma específica a anafilaxia decorrente de medicamentos ou por insetos, atualmente é possível classificar a anafilaxia em relaçao aos alimentos pelo código referente T78.0, e o código T78.2 para choque anafilático nao especificado.
Entretanto, é necessário introduzir estes códigos no SIH e SIM do DATASUS, para que tenhamos opçoes para o registro dos casos de anafilaxia em bases populacionais de atualizaçao constante, ainda com suas limitaçoes. A simples inclusao do termo anafilaxia na lista de morbidades já pode fazer toda a diferença.
A criaçao de um subgrupo para anafilaxia no CID 11 e sua disponibilizaçao no DATASUS poderá sanar todas estas deficiências de classificaçao. Seu uso na lista de morbidades e como causa de mortalidade em nossos sistemas de informaçao de saúde poderá fornecer as condiçoes para que tenhamos uma base de dados para realizar estudos de incidência, prevalência, morbidade, custos associados e mortalidade decorrentes da anafilaxia.
Posteriormente, será necessário realizar uma campanha de divulgaçao entre os médicos alergistas, socorristas e intensivistas buscando melhorar o diagnóstico, tratamento e registro dos eventos anafiláticos. Uma iniciativa bem-sucedida que podemos citar é a realizada pela Sociedade Portuguesa de Alergologia, que criou um sistema de registro de anafilaxia induzida por fármacos, alimentado pelos médicos especialistas em alergia e validado pela comissao de alergia a drogas daquela entidade. A recente comunicaçao entre autoridades da Associaçao Brasileira de Alergia e Imunologia (ASBAI) e o Ministério da Saúde para o diagnóstico e tratamento das doenças alérgicas6, associada à iniciativa mundial de evidenciar a anafilaxia, favorece a implantaçao de soluçoes criativas e proativas para que possamos enfrentar esta grave doença que parece avançar entre as lacunas do conhecimento e registro em nosso país.
REFERENCIAS
1. Tang ML, Osborne N, Allen K. Epidemiology of anaphylaxis. Curr Opin Allergy Clin Immunol. 2009 Aug;9(4):351-6.
2. Panesar SS, Javad S, de Silva D, Nwaru BI, Hickstein L, Muraro A, et al. The epidemiology of anaphylaxis in Europe: a systematic review. Allergy. 2013 Nov 1;68(11):1353-61.
3. Wood RA, Camargo CA, Lieberman P, Sampson HA, Schwartz LB, Zitt M, et al. Anaphylaxis in America: the prevalence and characteristics of anaphylaxis in the United States. J Allergy Clin Immunol. 2014 Feb 1;133(2):461-7.
4. da Silva EGM, Morato-Castro FF. Epidemiology of anaphylaxis. Brazilian J Allergy Immunol. 2014;2(1):21-7.
5. Tanno LK, Chalmers RJG, Calderon MA, Aymé S, Demoly P. Reaching multidisciplinary consensus on classification of anaphylaxis for the eleventh revision of the World Health Organization's (WHO) International Classification of Diseases (ICD-11). Orphanet J Rare Dis. 2017 Dec 16;12(1):53.
6. Serpa FS, Cruz AA, Condino-Neto A, Silva EC, Franco JM, Mello JM, et al. O atendimento médico de pacientes com doenças imunoalérgicas no Brasil: reflexoes e propostas para a melhoria - Carta de Belo Horizonte. Arq Asma Alerg Imunol. 2017;1(4):327-34.