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Revista oficial da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia ASBAI
Revista oficial da Sociedad Latinoamericana de Alergia, Asma e Inmunología SLaai

Número Atual:  Outubro-Dezembro 2017 - Volume 1  - Número 4


Comunicação Clínica e Experimental

Um caso de alergia a roma e a noz - qual o papel da proteína de transferência lipídica Pru p 3?

A case of allergy to pomegranate and walnut: what is the role of lipid transfer protein Pru p 3?

Alexandra Fernandes; Cristina Madureira; Sylvia Jacob; Susana Lopes; Fernanda Carvalho


DOI: 10.5935/2526-5393.20170063

Serviço de Pediatria, Centro Hospitalar do Médio Ave - Vila Nova de Famalicao, Portugal


Endereço para correspondência:

Alexandra Fernandes
E-mail: xana_ffernandes@hotmail.com


Submetido em: 09/06/2017
Aaceito em: 15/08/2017
Nao foram declarados conflitos de interesse associados à publicaçao deste artigo.

RESUMO

As proteínas de transferência lipídica (LTPs) sao pan-alergênios responsáveis pela reatividade cruzada entre frutos, vegetais e polens. A Pru p 3 (LTP presente no pêssego) é reconhecida como marcador de gravidade na alergia alimentar. A roma e a noz sao frutos relatados como causas de reaçoes alérgicas devido à existência de LTPs. Reportamos o caso de um adolescente admitido por urticária e edema labial após ingestao de roma, com história prévia semelhante após ingestao de noz. Os testes cutâneos revelaram positividade para extratos comerciais de noz e para a polpa de roma, e foram negativos para gramíneas e pêssego. Apresentava um doseamento de imunoglobulina E (IgE) total de 87,2 UI/mL e IgE específicas (sIgE) para noz e avela positivas. O doseamento de sIgE pelo método ISAC (immuno-solid-phase allergen chip) revelou positividade para os alergênios da avela (Cor a 8), do pêssego (Pru p 3) e da noz (Jug r 3). Nao havia história de reaçao alérgica à ingestao de pêssego. O caso questiona a relevância da sensibilizaçao ao Pru p 3 em doentes nao alérgicos ao pêssego, e se este será o único marcador de reaçao cruzada com a roma.

Descritores: Alergia alimentar, noz, Pru p 3, roma.




INTRODUÇAO

A alergia alimentar é um tema com interesse crescente nas últimas décadas, nao só pelo aumento exponencial da sua prevalência (afeta mais de 17 milhoes de europeus, segundo a Food Allergy and Anaphylaxis Public Declaration, da EAACI), assim como pelo impacto negativo na qualidade de vida dos doentes1,2. Sabemos que 90% das reaçoes alérgicas graves em idade pediátrica sao causadas por um grupo de oito alimentos: leite de vaca, ovo, trigo, soja, peixe, crustáceos, amendoim e frutos de casca rija.

A introduçao de novos alimentos na dieta, assim como o recurso a dietas alternativas tornaram-se um desafio no reconhecimento de novas proteínas alergênicas. A noz (Juglans regia) ea roma (Punica granatum) têm a sua origem na Asia e Mediterrâneo oriental, e foram introduzidos na Europa pelos Romanos e Fenícios, fazendo nos nossos dias parte integrante da dieta mediterrânica.

Enrique et al. (2006) demonstraram o papel de uma proteína de transferência lipídica (LTP) na reatividade cruzada entre a roma, a avela e o amendoim3. As nsLTPs (proteínas de transferência lipídica nao específicas) sao proteínas identificadas como alergênios principais nos frutos pertencentes à família Rosaceae. A sua ampla distribuiçao e a sua estrutura altamente conservada em várias espécies de plantas conferem-lhes o papel de pan-alergênio, sendo responsáveis pela reatividade cruzada entre frutas, frutos secos e/ou polens. Sao geralmente causadores de reaçoes sistêmicas graves, sendo por isso a sua identificaçao crucial4,5. O alergênio Pru p 3 (LTP do pêssego) é reconhecido como sensibilizador primário e marcador na síndrome LTP nos países mediterrânicos, e estará presente em cerca de 80% dos doentes sensibilizados a nsLTPs6.

Estudos identificaram a LTP do pêssego (Pru p 3) e a LTP da noz (Jug r 3), como possuindo reatividade cruzada entre si e com a LTP da roma6,7. No entanto, estudos mais recentes demonstraram que a associaçao entre alergia a roma e a pêssego nao é mandatária8,9. Atualmente, o recurso da biologia molecular permitiu identificar várias LTPs na roma (Pun g), com uma homologia de cerca de 60% com o Pru p 39. Outros estudos recentes demonstram a complexidade do perfil alergênico da roma com a identificaçao de outros pan-alergênios10,11.

 

DESCRIÇAO DO CASO CLINICO

Rapaz de 17 anos de idade, admitido no Serviço de Urgência por urticária e edema labial cerca de 2 horas após ingestao de salada de fruta com roma. Referia dois episódios anteriores semelhantes após ingestao de bolo com noz seca. Negava qualquer doença alérgica. Após administraçao de anti-histamínico oral de primeira geraçao, apresentou reversao dos sintomas e teve alta, sendo orientado para a consulta de Pediatria/Alergologia Pediátrica, e com indicaçao de evitar roma e noz.

Foram realizados testes epicutâneos, considerando-se a histamina (10 mg/mL) como controle positivo, e uma soluçao salina como controle negativo. A leitura dos resultados foi efetuada aos 15 minutos, considerando-se como positividade a existência de um diâmetro médio da pápula ≥ 3 mm em relaçao ao controle negativo. Estes revelaram positividade para extratos comerciais padronizados (Laboratórios Leti®, Madrid, Espanha) de noz e amendoim, e foram negativos para uma mistura de 5 gramíneas e pêssego (polpa e pele). Nao foi efetuado teste epicutâneo com Pru p 3 por nao haver extrato disponível. O teste cutâneo prick-prick efetuado com polpa de roma foi positivo (10 mm). Apresentava IgE total de 87,2 UI/mL e IgE específicas (sIgE) por UniCAP® 100 (Phadia, Uppsala, Suécia) positivas para noz (8,47 kU/L- Score 3), para avela (2,87 kU/L- Score 2) e para amendoim (1,88 kU/L - Score 2), mas negativas para gramíneas (considerado como cutoff de positividade valores de sIgE ≥ 0,35 kU/L). Foi efetuado o doseamento de sIgE pelo método ImmunoCAP ISAC® (Genomics, Viena, Austria), que revelou positividade para os seguintes alérgenos: Cor a 8 (avela) -4,55 ISU, Pru p 3 (pêssego) -11,90 ISU e Jug r 3 (noz) - 18,50 ISU (considerando como cut-off de positividade 0,3 ISU).

Para confirmaçao da alergia a roma e a noz foram realizadas provas de provocaçao oral abertas em ambiente hospitalar, com reproduçao dos sintomas após a ingestao do número cumulativo de 20 graos de sementes de roma, e de uma noz e meia. As provas foram efetuadas com o intervalo de duas semanas, confirmando-se, assim, o diagnóstico de alergia a roma e a noz. O pêssego, a avela e o amendoim faziam parte da dieta do adolescente, e nunca desencadearam qualquer sintomatologia, pelo que nao foram investigados.

 

DISCUSSAO

A alergia alimentar mantém-se um problema nao resolvido no campo das doenças alérgicas. O reconhecimento da reatividade cruzada permitiu melhorar o prognóstico e a qualidade de vida dos doentes com alergia alimentar, e os estudos de biologia molecular permitiram identificar proteínas com açao fundamental nas reaçoes alérgicas, nomeadamente as nsLTPs. As nsLTPs sao importantes alergênios inalantes e alimentares, e estao associadas a reaçoes alérgicas sistêmicas graves4,8.

A roma e a noz constituem parte integrante da dieta mediterrânica, estando a sua ingestao associada a casos de hipersensibilidade imediata, nomeadamente angioedema e choque anafilático7,10. Embora taxonomicamente diferentes, estes frutos expressam algumas proteínas reconhecidas como nsLTPs. A LTP do pêssego (Pru p 3) atua como sensibilizador primário, e é também descrita como marcador de gravidade para reaçoes alérgicas alimentares7,12,13. O trabalho de Scala et al. (2015) numa populaçao mediterrânica sensibilizada a nsLTPs demonstrou que 88% dos doentes estudados apresentavam sensibilizaçao às LTPs Pru p 3 e Jug r 3 em simultâneo, e observou que a Jug r 3 tem um papel comparável ao da Pru p 3 em doentes com mais de 15 anos6. No caso descrito, verificou-se positividade para estas duas LTPs, Pru p 3 e Jug r 3, podendo ter sido a segunda o alergênio sensibilizador primário, já que os primeiros sintomas de alergia alimentar aconteceram com a noz.

Desde os primeiros estudos moleculares publicados por Zoccatelli et al. acerca da alergia a roma, tem-se observado a existência de várias LTPs nao relacionadas imunologicamente nesse fruto14. Mais recentemente, Bolla et al. identificaram um grupo de três nsLTPs na polpa da roma designadas Pun g nsLTPs6. Estes isoalergênios foram classificados pela International Union of Immunological Societies (WHO/IUIS) como Pun g 1.0101, Pun g 1.0201 e Pun g 1.0301. Os autores demonstraram uma analogia entre estas proteínas e a Pru p 3 de 62-65%.Também neste estudo, dos 6 casos estudados com alergia a roma e positividade para Pru p 3, 50% também apresentavam alergia a noz, e apenas 1/3 apresentava alergia a pêssego. Esta situaçao verifica-se no caso estudado, em que apesar da positividade para Pru p 3 (LTP do pêssego), nao havia qualquer reaçao à ingestao deste fruto. Será, entao, a Pru p 3 o único marcador de sensibilizaçao às nsLTPs?

Alguns estudos recentes vieram demonstrar que as LTPs poderao nao ser as únicas proteínas sensibilizantes da roma. Petersen et al. (2011) mostraram diferentes padroes de sensibilizaçao conforme consideramos o sumo ou as sementes da roma10. No sumo, identificou-se a presença de uma LTP com 9 kDa com uma homologia de 77% com a LTP do pêssego, e nas sementes uma proteína de 16 kDa com uma sequência semelhante às proteínas homólogas da Bet v 1. Esta última pertence ao grupo de proteínas (PR-10), que sao termolábeis e frequentemente associadas a sintomas alérgicos menos graves. Recentemente, Buyuktiryaki et al. (2013) demonstraram a presença de proteínas PR-4, nao-LTPs, como alergênio relevante na reaçao alérgica a roma11. Considerando estes dados, Gabriele Gadermaier questiona se será suficiente usar a Pru p 3 como único marcador molecular de alergia causada pelas nsLTPs8.

A tecnologia ImmunoCAP ISAC®, importante nos casos de polissensibilizaçao, onde é necessário perceber se a reaçao a determinado alergênio se trata de um processo de cossensibilizaçao ou de reatividade cruzada, foi aplicada neste caso, após realizaçao de testes in vitro (doseamento de IgE específicas) e in vivo (testes epicutâneo e prova de provocaçao oral), com o intuito de esclarecer qual a proteína alergênica envolvida. O paciente nao apresentava alergia a pêssego e nao há extrato comercial para a realizaçao de testes cutâneos com Pru p 3. O fato do adolescente apresentar positividade para Pru p 3, mas sem sintomatologia ao pêssego, e de as reaçoes apresentadas à noz e à roma nao terem sido graves, levou-nos a pensar que a proteína implicada na alergia a roma poderia nao ser uma LTP. No entanto, nao foi possível efetuar técnicas de Immunoblotting, nem de inibiçao, por abandono do doente. Estas teriam sido importantes no sentido de avaliar o perfil alergênico da roma neste doente e para avaliar a reatividade cruzada entre as proteínas identificadas e os alergênios Pru p 3 e Jug r 3.

 

CONCLUSAO

A identificaçao do alergênio implicado na alergia a determinado alimento através de técnicas de biologia molecular, quando necessária, é fundamental para determinar prováveis reaçoes cruzadas entre alimentos e, assim, prevenir futuras reaçoes alérgicas graves, excluindo da dieta nao só o alimento envolvido na reaçao inicial, mas também todas as fontes alergênicas contendo proteínas homólogas. Os autores apresentam este caso de alergia a roma, questionando o papel da Pru p 3 como seu alérgeno representativo.

 

REFERENCIAS

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11. Buyuktiryaki B, Bartolomé B, Sahiner U, Tolga Yavuz S, Pastor-Vargas C, Vivanco F, et al. Pomegranate allergy and pathogenesis-related protein 4. Ann Allergy Asthma Immunol. 2013;111:231-2.

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13. Asero R. Lipid transfer protein cross-reactivity assessed in vivo and in vitro in the office: pros and cons. J Investig Allergol Clin Immunol. 2011;21(2):129-36.

14. Zoccatelli G, Dalla Pellegina C, Consolini M, Fusi M, Sforza S, Aquino G, et al. Isolation and identification of two lipid transfer proteins in pomegranate (Punica granatum). J Agric Food Chem. 2007;55:11057-62.

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