Tatuagens: de temporárias a permanentes
Tattoos: from temporary to permanent
Catarina Oliveira Pereira1; Dulce Helena Saraiva dos Santos2; Agostinho Silva Fernandes3; Filipa Inês de Sousa Vela Cunha4
1. Interna de Pediatria Médica do Hospital Pediátrico - Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Portugal
2. Médico(a) Pediatra do Serviço de Pediatria do Hospital Distrital da Figueira da Foz, Portugal
Endereço para correspondência:
Catarina Oliveira Pereira
E-mail: catarinaopereira@gmail.com
Submetido em: 03/07/2017
Aceito em: 20/07/2017.
Nao foram declarados conflitos de interesse associados à publicaçao deste artigo.
RESUMO
A realizaçao de tatuagens temporárias é frequente, sendo percebida como inofensiva. A tinta usada deriva da henna, pigmento castanho-avermelhado obtido de uma planta. No entanto, para obter "henna negra" e facilitar a realizaçao da tatuagem, sao adicionados outros compostos, mais frequentemente a parafenilenodiamina. Esta está associada a reaçoes alérgicas, por vezes graves e com sequelas. Os autores apresentam um caso de uma criança de 10 anos com uma reaçao alérgica exuberante com provável sobreinfecçao bacteriana em local de tatuagem temporária. Havia história de sensibilizaçao prévia, pelo que a reaçao foi precoce e mais agressiva. Os sinais inflamatórios francos motivaram o internamento sob corticoterapia sistêmica e antibioticoterapia endovenosa. Apesar da boa evoluçao clínica, permaneceu uma lesao hipopigmentada sequelar. Pretende-se alertar para os perigos desta realidade e também para a falta de legislaçao existente.
Descritores: Dermatite alérgica de contato, tatuagem, fenilenodiaminas.
INTRODUÇAO
As tatuagens temporárias com henna têm-se tornado populares, sobretudo nas crianças e adolescentes e em períodos de férias de verao. Sao de fácil acesso, indolores, de baixo custo, pouca durabilidade e julgadas como benignas pelos cuidadores1. Contudo, na preparaçao da tinta final, também conhecida por "henna negra", podem ser usados outros produtos, como é o caso da parafenilenodiamina (PPDA), responsáveis por dermatites de contato alérgica. Através da descriçao de um caso de reaçao alérgica a uma tatuagem temporária num adolescente, pretendemos alertar para os perigos relacionados com esta prática.
CASO CLINICO
Adolescente de 10 anos assistida em serviço de urgência por sinais inflamatórios localizados a tatuagem temporária realizada três dias antes, numa estância balnear. Nao apresentava outros sintomas e negava febre. Em relaçao aos antecedentes pessoais, tratava-se de um adolescente saudável, referindo, contudo, pequena reaçao inflamatória local em tatuagem semelhante, realizada um ano antes. Ao exame objetivo, visualizava-se tatuagem com cerca de 10 cm, na face externa da perna direita, com edema, eritema, calor, presença de várias flictenas e exsudato sero-sanguinolento na regiao da tatuagem e tecidos circundantes (Figura 1). Analiticamente, apresentava leucócitos de 9315/µL, neutrófilos de 5595/µL, hemoglobina de 13,3 g/dL, plaquetas de 311000/µL e proteína C-reativa de 18,4 mg/L. Perante a hipótese diagnóstica de reaçao alérgica com provável sobreinfeçao bacteriana, ficou internado sob prednisolona oral, flucloxacilina endovenosa, anti-histamínico oral e pensos diários com sulfadiazina de prata. Durante o internamento verificou-se melhoria progressiva dos sinais inflamatórios e do exsudato, tendo tido alta ao quarto dia de internamento. Permaneceu uma lesao hipopigmentada nos dois anos seguintes (Figura 2).
DISCUSSAO
As tatuagens temporárias sao formadas a partir da henna, um pigmento obtido da planta Lawsonia inermis. Esta cresce no Norte de Africa, Médio Oriente e India, e sao as suas folhas que originam a henna, um pó verde que, quando dissolvido, apresenta coloraçao castanho-avermelhada1,2. A este preparado dá-se a designaçao de "henna vermelha"3. Esta é usada há muitos milhares de anos, para tingir o cabelo, as unhas e a pele como parte de hábitos religiosos ou culturais, em comunidades islâmicas ou hindu1,3.
O componente ativo da henna, designado lawsone, liga-se à queratina da pele de 2 a 12 horas e, geralmente, é bem tolerado, raramente induzindo reaçoes alérgicas1-4. Contudo, de modo a estabilizar a preparaçao da henna, a escurecer a cor, a reduzir o tempo de fixaçao da tatuagem à pele e a produzir desenhos mais definidos, adicionam-se diferentes compostos, fazendo com que a composiçao final da tinta seja muito variável. Já foi identificada a presença de vários produtos, como óleos essenciais, carvao, café, casca de noz, açúcar, vinagre, sumo de limao ou beterraba, sendo o mais encontrado a PPDA, formando a chamada "henna negra"1,3. A PPDA é uma diamina que permite uma fixaçao rápida da tinta à pele, muitas vezes em menos de meia hora, e é responsável pela maioria dos casos de dermatite de contato alérgica1-5. A incidência destes episódios é desconhecida, mas pensa-se ser elevada, uma vez que a maioria dos casos nao sao valorizados e nao motivam procura de observaçao médica3.
A reaçao à PPDA surge 4 a 14 dias após a realizaçao da tatuagem. Trata-se de uma reaçao de hipersensibilidade do tipo IV, mediada por linfócitos T. Esta complexa cascata inflamatória envolve a ligaçao dos haptenos, substâncias de baixo peso molecular, a proteínas da pele levando à sua captura por células de Langerhans. Estas levam à ativaçao de linfócitos T, que atuam no local de presença dos antígenos com a libertaçao de citocinas6. No entanto, os sinais inflamatórios podem surgir de forma mais precoce, um a três dias após a tatuagem, no caso de já ter havido sensibilizaçao prévia, como aconteceu no caso descrito acima3. O episódio de sensibilizaçao primária pode corresponder à realizaçao prévia de uma tatuagem, mesmo que vários anos antes, nos quais nao se verificou reaçao ou esta foi mínima, ou pode ter havido contato com produtos contendo PPDA ou compostos estruturalmente semelhantes a este3,5. A capacidade da PPDA desencadear uma reaçao alérgica depende do tempo de exposiçao ao produto e da concentraçao desta diamina no preparado, geralmente ambos elevados na prática das tatuagens temporárias2.
A reaçao alérgica desencadeada pela PPDA é geralmente caracterizada por eritema, edema, pápulas, vesículas e flictenas, limitadas à regiao da tatuagem. Mais raramente, estao descritos casos de dermatite generalizada, reaçoes sistêmicas, reaçoes de urticária e angioedema, ou hipertricose localizada temporária. Também deve-se considerar a presença de sobreinfeçao bacteriana, como aconteceu no caso clínico apresentado3.
Após resoluçao da reaçao alérgica, podem surgir alteraçoes da pigmentaçao, por vezes permanentes, sendo mais frequente na idade pediátrica o desenvolvimento de hipopigmentaçao, como no caso descrito, ou mesmo haver formaçao de uma cicatriz2,3. Além destas lesoes sequelares, os doentes que apresentaram reaçao de hipersensibilidade a uma tatuagem temporária terao de evitar produtos com PPDA ou que contenham compostos que fazem reaçao cruzada com esta, tais como tintas capilares, borracha, tintas usadas em têxteis (contendo anilina), alguns protetores solares (com ácido paraaminobenzoico), anestésicos locais com procaína ou benzocaína, e até medicamentos, como as sulfonamidas ou a mesalazina2-4.
A legislaçao existente apenas permite o uso de PPDA em produtos para coloraçao dos cabelos, numa concentraçao máxima de 6%. O uso destes é proibido nas pestanas e sobrancelhas7. Nao existe legislaçao em relaçao às tintas das tatuagens temporárias, que chegam a ter concentraçoes de PPDA na ordem dos 30%3,5.
Com este caso clínico, pretendemos alertar para a necessidade de informar os doentes e os cuidadores dos perigos das tatuagens temporárias, que podem levar a reaçoes graves, com consequências que podem ser permanentes e afetar a qualidade de vida dos doentes. Além disso, salientamos a importância da criaçao de uma legislaçao que regulamente esta prática que atrai desde crianças a adultos jovens.
REFERENCIAS
1. Soares JB, Lopes A, Barbosa MP. Tatuagens temporárias - Inofensivas? Rev Port Imunoalergologia. 2014;22(3):227-9.
2. Sonnen G. Type IV hypersensitivity reaction to a temporary tattoo. Proc Bayl Univ Med Cent. 2007;20:36-8.
3. Groot AC. Side-effects of henna and semi-permanent 'black henna' tattoos: a full review. Contact Dermatitis. 2013;69:1-25.
4. Food & Drug Administration, Center for Food Safety and Applied Nutrition, Office of Cosmetics and Colors, Harp BP, Hollinger K. Temporary tattoos: raising consumer awareness of safety. 2014 [site na Internet]. Disponível em: www.fda.gov/AboutFDA/Transparency/ Basics/ucm395671.htm.
5. Mascarenhas R, Gonçalo M, Figueiredo A. Dermatite de contacto alérgica por tatuagem temporária. Med Cutan Iber Lat Am. 2002;30(3):126-9.
6. Hogan dJ. Allergic Contact Dermatitis [site na Internet]. Disponível em: http://emedicine.medscape.com/.
7. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.011, de 1º de dezembro de 2009 [site na Internet]. Disponível: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/ saudelegis/gm/2009/prt3011_01_12_2009.html.