Hipótese da biodiversidade explicando o aumento dos transtornos inflamatórios crônicos - alergia e asma entre eles - em populações urbanizadas?
Biodiversity hypothesis explaining the rise of chronic inflammatory disorders - allergy and asthma among them - in urbanized populations?
Tari Haahtela1; Leena von Hertzen2; Ilkka Hanski3
1. MD. Departamento de Alergia, Hospital Universitário de Helsinque, Finlândia
2. PhD. Departamento de Alergia, Hospital Universitário de Helsinque, Finlândia
3. PhD. Departamento de Biociências, Universidade de Helsinque, Finlândia
Endereço para correspondência:
Tari Haahtela
E-mail: tari.haahtela@hus.fi, tari.haahtela@haahtela.fi
Submetido em 11.03.2013.
Aceito em 21.03.2013.
Nao foram declarados conflitos de interesse associados à publicaçao deste artigo.
RESUMO
Comensais humanos nao sao mais considerados como espectadores passivos ou passageiros temporários, mas cada vez mais como participantes ativos e essenciais no desenvolvimento e manutençao da funçao de barreira e da tolerância imunológica. Uma reduçao súbita na abundância e/ou na diversidade desses micro-organismos, outrora ubíquos, pode ter levado a falhas em regular e restaurar respostas imunes e inflamatórias apropriadas. Evidências indicam que alteraçoes na microbiota nativa se correlacionam com doenças inflamatórias, e sabe-se que inflamaçao é aspecto fundamental de condiçoes clínicas como asma e doenças alérgicas, doenças autoimunes e muitas formas de câncer. Este artigo de revisao focaliza na nova "hipótese da biodiversidade", que pode ser considerada como uma extensao da hipótese da higiene e privaçao microbiana, ou hipótese da microbiota. Segundo a mesma, o crescimento populacional (urbanizaçao) leva à perda da biodiversidade (macrobiota/microbiota pobre), microbiota humana pobre (disbiose), disfunçao imune (baixa tolerância), inflamaçao e, finalmente, à doença clínica.
Descritores: Hipótese da biodiversidade, microbiota, tolerância imunológica, asma, doenças alérgicas, inflamaçao.
INTRODUÇAO
Aumenta cada vez mais o número de pessoas em todo o mundo que estao vivendo em cidades e tendo pouco contato com a natureza. Isso é significante para a saúde pública, porque o contato com ambientes naturais ricos em espécies parece estar fortemente relacionado com presença de bactérias protetoras e benéficas nas barreiras humanas (pele, intestino e vias aéreas) e, consequentemente, com imunotolerância.
Um percentual progressivamente crescente de populaçoes padece nao só de alergias e de asma, mas também de outras doenças inflamatórias crônicas, obviamente como resultado do desalinhamento de mecanismos imunológicos com a adaptaçao à moderna vida urbana. Os micro-organismos ambientais, outrora ubíquose abundantes, presentes,porexemplo,naágua para beber e no leite, têm papel fundamental para a induçao e manutençao dos circuitos imunorregulatórios e da tolerância.
ESTUDO DE ALERGIA EM KARELIA
Na regiao de Karelia, no nordeste da Finlândia, nós observamos que a biodiversidade ambiental, a micro-biota humana e alergia estao inter-relacionadas1. Nós estudamos 118 adolescentes aleatoriamente selecionados do nordeste da Finlândia. Os participantes foram selecionados com o objetivo de identificar aqueles que eram e os que nao eram sensibilizados a um painel de alérgenos comuns. Além disso, foram obtidos swabs cutâneos do antebraço de todos os participantes, para identificar a composiçao da microbiota da pele (quais eram as bactérias que estavam vivendo na pele dos adolescentes). Foi registrado o ambiente em torno das casas dos participantes, inclusive com a identificaçao de espécies vegetais comuns e raras nos jardins.
Participantes que viviam em fazendas ou nas proximidades de florestas tiveram uma composiçao bacteriana diferente em suas peles e se revelaram menos sensibilizados a alérgenos,em comparaçao com os adolescentes que tinham menos contato com o ambiente natural e que estavam vivendo em áreas edificadas ou nas proximidades de lagos e outros cursos d'água.
O estudo sugeriu que o contato com um ambiente natural e biodiversificado contendo bactérias em abundância e provavelmente com outros micróbios, pode proteger as pessoas de ficarem sensibilizadas a alérgenos, como parte do desenvolvimento do sistema imune. Em particular, a sensibilidade dos adolescentes a alérgenos pareceu estar ligada à diversidade de plantas em torno da casa. Os arredores dos participantes sadios continham 25% a mais de espécies de plantas de floraçao nativas incomuns, em comparaçao com os arredores dos participantes sensibilizados a alérgenos. Isso ocorreu mesmo depois que foi levado em conta o efeito de possíveis fatores de confusao.
Os adolescentes saudáveis tiveram maior diversidade de um grupo de bactérias, nesse caso gamaproteobactérias, em sua pele, comparados a adolescentes que apresentaram maior sensibilizaçao a alérgenos. Além disso, entre os adolescentes saudáveis, a abundância de certa gamaproteobactéria, Acinetobacter, na pele foi positivamente associada com o nível de uma uma importante molécula sinalizadora anti-inflamatória, interleucina 10, no sangue.
Esses resultados sugerem que uma diversidade genética elevada de gamaproteobactérias na pele está ligada à maior tolerância contra alérgenos. Gamaproteobactérias sao encontradas no ambiente, por exemplo, no solo, em superfícies das plantas, em pólen de gramíneas e na poeira, e podem ser mais diversificadas no ambiente natural que no ambiente urbano.
CONCEITOS DE BIODIVERSIDADE
Por definiçao,biodiversidade é "a variabilidade entre organismos vivos de todas as fontes, incluindo, inter alia, ecossistemas terrestres,marinhos e de outros tipos aquáticos e os complexos ecológicos dos quais fazem parte. Isto inclui a diversidade dentro das espécies, entre as espécies e dos ecossistemas2". Na prática, os elementos-chave da biodiversidade incluem a diversidade genética das populaçoes e espécies; a riqueza das espécies locais e globais; a extensao espacial e o estado dos habitats naturais; e o funcionamento dos ecossistemas que provêem variados serviços essenciais à humanidade.
Embora a Convençao da Diversidade Biológica2esteja primariamente interessada em plantas e animais, biodiversidade também inclui micro-organismos, que sao menos visíveis, mas que representam a maior parte da matéria viva em nossa Terra3. Biodiversidade, de acordo com a definiçao,está relacionada tanto com a microbiota ambiental como com a microbiota comensal.
Nós propusemos que a biodiversidade em nível da macrobiota e microbiota está inter-relacionada, no sentido de que a perda da biodiversidade da macrobiota provavelmente estará associada à perda da biodiversidade da microbiota4. Ademais, perda da biodiversidade leva à menor interaçao entre as microbiotas ambiental e humana. Por sua vez, isso pode levar à disfunçao imune e à perda de mecanismos de tolerância em humanos.
A velocidade da perda de biodiversidade nao mostra sinais de diminuiçao, e de forma preocupante, os indicadores que refletem as diversas pressoes sobre a biodiversidade continuama aumentar. Por exemplo, um terço das espécies de animais e vegetais suficientemente bem conhecidas estao atualmente classificadas como ameaçadas (56.000 espécies).
O QUE SIGNIFICAM ESSES RESULTADOS?
Implicaçoes para a saúde
A perda da biodiversidade tem uma variedade de possíveis consequências adversas para a humanidade. Com efeito, as duas megatendências globais, uma delas no estado da biodiversidade, isto é, biosfera alterada, e a outra na prevalência de doenças inflamatórias das mucosas, podem estar intimamente ligadas.
Humanos evoluíram com os micro-organismos, que nao promovem respostas imunes defensivas, mas, ao contrário, induzem circuitos imunorregulatórios. Uma reduçao súbita na abundância ou na diversidade desses micro-organismos, outrora ubíquos, pode ter levado a falhas em regular e restaurar respostas imunes e inflamatórias apropriadas.
Inflamaçao é um aspecto fundamental da asma e das doenças alérgicas, doenças autoimunes e de muitas formas de câncer; entretanto, mais recentemente associaçoes menos tangíveis foram ligadas a essas tendências, como incidência aumentada de obesidade e depressao associada a marcadores inflamatórios. Até o momento, o aumento na prevalência de doenças inflamatórias é um fenômeno em grande parte restrito ao mundo desenvolvido, enquanto que tais transtornos ainda sao incomuns entre populaçoes das regioes nao afluentes, isto é, aquelas regioes que ainda têm estilos de vida nao urbanos, mais tradicionais.
Comensais humanos nao sao mais considerados como espectadores passivos ou passageiros temporários, mas cada vez mais como participantes ativos e essenciais no desenvolvimento e manutençao da funçao de barreira e da tolerância imunológica. A flora nativa pode nao ser formada exclusivamente por bactérias e fungos, mas também por vírus e protozoários microscópicos, embora muito poucos dados sao disponíveis sobre essas últimas formas.
Disbiose
Reduzida diversidade e alteraçoes na composiçao das microbiotas humanas podem ter causado um desequilíbrio dos micróbios "pró-inflamatórios" e "anti-inflamatórios", isto é, disbiose e aumento da sensibilidade do hospedeiro a condiçoes inflamatórias. Coletivamente, o estilo de vida sedentário em ambientes urbanos afluentes nao provê exposiçao microbiana adequada para o desenvolvimento de uma microbiota "sadia" na pele e mucosa. Uma ilustraçao indireta desse conceito é a utilizaçao, com sucesso, do transplante da microbiota fecal para restaurar o equilíbrio da microbiota em infecçoes graves por Clostridium difficile resistentes a todos os outros tratamentos.
Tolerância imune
O conceito de induzir tolerância e homeostase pode tornar-se alvo primordial para as estratégias de prevençao e tratamento para muitas doenças modernas, tais como alergia, asma, autoimunidade, obesidade, alguns tipos de câncer e alguns transtornos mentais e neurológicos nos quais desregulaçao do sistema imune desempenha papel essencial. Já sabemos que, no tratamento da alergia, induçao da tolerância imune aos alérgenos é caracterizada pelo estabelecimento de remissao clínica prolongada. Entretanto, tanto a imunidade adaptativa como a imunidade inata devem ser alvo de intervençoes para obter resultados a longo prazo.
CONCLUSOES
Recentemente,a Comissao Especial sobre Mudanças Climáticas e Biodiversidade da Organizaçao Mundial da Alergia publicou uma declaraçao de posiçao da nova hipótese da biodiversidade5. Essa hipótese pode ser considerada como uma extensao da hipótese da higiene ou "velhos amigos" e privaçao microbiana ou hipótese da microbiota. O crescimento populacional (urbanizaçao) leva à perda da biodiversidade (macrobiota/microbiota pobre), microbiota humana pobre (disbiose),disfunçaoimune(baixa tolerância),inflamaçao e, finalmente, à doença clínica.
REFERENCIAS
1. Hanski I, von Hertzen L, Fyhrquistc N, Koskinen K, Torppa K, Laatikainen T, et al. Environmental biodiversity, human microbiota, and allergy are interrelated. Proc Natl Acad Sci USA. 2012; 109:8334-9.
2. Convention on Biological Diversity 1992. www.biodiv.org/convention/
3. Whitman WB, Coleman DC, Wiebe WJ. Prokaryotes: the unseen majority. Proc Natl Acad Sci USA. 1998;95:6578-83.
4. von Hertzen L, Hanski I, Haahtela T. Biodiversity loss and rising trends of inflammatory diseases: two global megatrends that may be related. EMBO Reports. 2011;12:1089-93.
5. Haahtela T, Holgate ST, Pawankar R, Akdis CA, Benjaponpitak S, Caraballo L, et al. and WAO Special Committee on Climate Change and Biodiversity. The biodiversity hypothesis and allergic disease: World Allergy Organization position statement. World Allergy Organization J. 2013;6:3.