Asma ocupacional por farinha de trigo
Occupational asthma due to wheat flour
Camila Nunes Cardoso Sora1; Carolina T. Gehlen1,2; Maurício Domingues Ferreira1; Marcelo Nunes Cardoso3; Luís Piaia1
1. MD. Instituto de Pesquisa e Ensino Médico (IPEMED), SP
2. MD. Universidade do Planalto Catarinense (UNIPLAC), Lages, SC
3. MD. Médico do Trabalho, Prefeituras de Itapetininga,Tatuí, e AME Itapetininga, SP
Endereço para correspondência:
Camila Nunes Cardoso Sora
E-mail camipericia@gmail.com
Submetido em 31/07/2013.
Aceito em 27/09/2014.
Nao foram declarados conflitos de interesse associados à publicaçao deste artigo.
RESUMO
Asma ocupacional é definida pela presença de obstruçao reversível ao fluxo aéreo e/ou hiper-responsividade brônquica causadas por agentes presentes no ambiente de trabalho. O teste de provocaçao, com objetivo de reproduzir a sintomatologia do paciente em ambiente controlado, pode ser utilizado para confirmaçao diagnóstica. Neste artigo, descrevemos um paciente trabalhador de padaria, exposto a farinha de trigo em suspensao, com sintomas de tosse seca, dispneia, prurido nasal e espirros, associados ao trabalho. Os sintomas desaparecem ao se afastar do trabalho, e reaparecem em cerca de três dias após retomar suas atividades profissionais. A investigaçao laboratorial revelou níveis elevados de IgE específica para trigo (14,9 kU/L). Sua prova de funçao pulmonar mostrou distúrbio ventilatório obstrutivo leve, reversível após uso de broncodilatador de curta duraçao. Teste de provocaçao foi realizado, em que o paciente manipulou a mesma farinha de trigo utilizada em seu trabalho na padaria, reproduzindo a preparaçao de massa de pao, sob supervisao. Após vinte minutos, apresentou dispneia moderada, com queda do pico de fluxo expiratório para 250 L/m (48% do valor predito). Teste cutâneo de hipersensibilidade imediata com farinha de trigo in natura foi positivo, indicando tratar-se de reaçao IgE mediada. Este caso ilustra de forma clara que a estratégia de teste de provocaçao com simulaçao do ambiente de trabalho, e a anamnese dirigida para investigar os sintomas decorrentes do trabalho, podem contribuir para o diagnóstico dos casos de asma iniciada em adultos. A identificaçao do agente causal é de importância fundamental para a prevençao de progressao da doença ocupacional.
Descritores: Asma ocupacional, trigo, asma.
INDRODUÇÃO
A asma ocupacional é a obstrução reversível do fluxo aéreo e/ou hiper-reatividade brônquica devido a causas e condições atribuíveis a um determinado ambiente de trabalho e não aos estímulos externos. A asma agravada pelo trabalho é aquela previamente existente, assintomática ou não, que se agravou devido a uma exposição ocupacional a agentes químicos ou físicos1. Nos dias atuais, a asma decorrente do trabalho tornou-se a doença pulmonar ocupacional mais prevalente nos países desenvolvidos. Programas de vigilância em vários países têm revelado que a asma ocorre entre 26 e 52% das doenças respiratórias ocupacionais2,3. Nos Estados Unidos, os casos novos de asma ocupacional têm sido estimados em 15%4. Portanto, a asma ocupacional por farinha de trigo pode ser caracterizada como uma reação de hipersensibilidade provocada pela inalação de antígenos da farinha de trigo6-7.
O diagnóstico de asma relacionada ao trabalho inclui o diagnóstico da obstrução ao fluxo aéreo e a relação dessa doença com a atividade laboral. Este diagnóstico deve ser considerado em todo caso de asma com início ou piora dos sintomas respiratórios na idade adulta. Diversas técnicas têm sido propostas8: história ocupacional, utilização de instrumentos (questionários), testes laboratoriais e funcionais.
O diagnóstico da asma ocupacional por farinha de trigo pode ser feito pelo quadro clínico de tosse e obstrução de vias aéreas por inalação de alimentos em pacientes que tiveram exposição ocupacional a cereais como trigo e cujos testes cutâneos de hipersensibilidade imediata são positivos às proteínas do trigo5.
A identificação da hiper-responsividade brônquica com metacolina/histamina é um passo importante para afastar a asma ocupacional, bem como qualquer outro tipo de asma. A asma ocupacional pode ser praticamente excluída em pacientes submetidos ao ambiente de trabalho que não apresentem hiper-responsividade brônquica. Entretanto, a positividade a este teste indica necessidade de exposição ao suposto antígeno ocupacional, para confirmação do diagnóstico. Uma abordagem possível é a exposição do paciente ao ambiente ocupacional, monitorizado por medidas de pico do fluxo expiratório. No entanto, este método depende da cooperação do paciente e do registro correto das observações. Para maior efetividade e credibilidade deste método, seria necessário que as medidas efetuadas no ambiente ocupacional fossem acompanhadas por um técnico. Porém, quando possível, a melhor condição para diagnóstico é o teste de provocação, para reproduzir a sintomatologia do paciente, em ambiente laboratorial controlado. Os pacientes devem ser expostos a doses sucessivamente crescentes do agente suspeito, para evitar reações graves8.
A broncoprovocação específica foi descrita por alguns autores como o padrão-ouro para alguns tipos de asma ocupacional. Embora seja um teste útil para o diagnóstico e para estudos científicos da asma desencadeada pelo trabalho, necessita laboratório especializado, e não está disponível de rotina nos EUA e em muitos outros países15.
O tratamento medicamentoso da asma ocupacional segue os mesmos preceitos do tratamento da asma convencional. A maioria dos indivíduos com asma ocupacional com latência não se recuperam totalmente, mesmo após o afastamento do agente causal, e desenvolvem uma incapacidade permanente para a função relacionada9. A duração dos sintomas, a gravidade da asma no período do diagnóstico, a duração total da exposição e a duração da exposição após o aparecimento dos sintomas, são determinantes para o prognóstico10.
DESCRIÇÃO DO CASO
Paciente D.D.A, masculino, 46 anos, confeiteiro, natural de São Paulo. Relata o paciente que sente falta de ar, prurido nasal e espirros, há aproximadamente dez anos. Após iniciar o trabalho, apresenta tosse seca e falta de ar. Faz uso de corticoide inalatório associado a broncodilatador de curta duração com melhora do quadro respiratório. O paciente trabalha em uma padaria desde 1998, e refere que o ambiente de trabalho se caracteriza por presença constante de farinha de trigo em suspensão. Não usa máscara ou qualquer equipamento de proteção. Quando se afasta do trabalho para tratamento, a sintomatologia desaparece. Quando volta ao trabalho, os sintomas reaparecem em três a quatro dias. Entre as manifestações alérgicas prévias relata apenas rinite; nega asma na infância e alergia alimentar ao trigo. Não relata outros antecedentes pessoais de relevância clínica.
Os exames complementares incluiram: testes cutâneos de hipersensibilidade imediata (puntura) negativos para painel composto de 10 alérgenos ambientais comuns; níveis elevados de anticorpos IgE específicos para trigo, de 14,9 kU/L. A prova de função pulmonar revelou distúrbio ventilatório obstrutivo leve, com melhora após uso de broncodilatador de curta duração.
O paciente foi então orientado a permanecer afastado do trabalho por oito dias, suspendendo a medicação, e a retornar para a realização de teste de provocação com exposição a farinha de trigo, simulando o ambiente de trabalho. Após 8 dias de afastamento do trabalho, referiu melhora dos sintomas, sem necessidade de usar medicação de resgate para asma neste período. O exame clínico estava compatível com a normalidade; a ausculta pulmonar revelou murmúrio vesicular presente, ausência de roncos ou sibilos e o pico de fluxo expiratório (PF) foi de 450 L/min (78% do previsto). Durante o teste de provocação, o paciente manipulou a mesma farinha de trigo utilizada na padaria, como se preparasse uma massa de pão, sendo assistido pelos autores. Nos primeiros dez minutos referiu dispneia leve e houve queda do PF para 360 L/min (65% do previsto). Após vinte minutos, relatou dispneia moderada, com queda do PF para 250 L/m (48% do previsto). Foi então interrompido o teste de provocação e realizada a inalação com broncodilatador de curta duração até alivio total dos sintomas e o PF atingir 454 L/min (79%). Após isso, foi realizado o teste de puntura com a farinha de trigo in natura (prick to prick) dissolvida em soro fisiológico, e os resultados mostraram reação positiva com pápula de diâmetro médio de 6 mm acompanhada de eritema, após 15 minutos da aplicação do alérgeno. A reação ao controle positivo (histamina) foi pápula de diâmetro médio de 7 mm.
DISCUSSÃO
Os sintomas sugestivos de asma ocupacional incluem tosse, chiado, falta de ar, e aperto no peito que pioram no trabalho e melhoram após afastamento deste, por exemplo durante os finais de semana ou férias10,11. A asma relacionada ao trabalho apresenta algumas peculiaridades: os sintomas podem ser reproduzidos em laboratório, e o paciente apresenta muitas vezes melhora dos sintomas quando o agente causal é retirado do ambiente.
O prognóstico é dependente da duração da exposição e da gravidade da doença. O afastamento do paciente do ambiente de trabalho, onde ocorreu a possível exposição, é o procedimento ideal para o tratamento dos indivíduos com asma ocupacional.
A confirmação diagnóstica neste relato não ocorreu apenas pelo afastamento do posto de trabalho, mas também através do aparecimento dos sintomas durante teste de provocação, a partir da simulação das condições a que o trabalhador estava exposto. Foi comprovada diminuição progressiva e significativa do pico de fluxo expiratório (PF), com queda de 55% do PFE após 20 minutos da exposição à farinha de trigo.
Em estudo multicêntrico, van Kampen et al.12 realizaram testes cutâneos de puntura com extratos de trigo e centeio provenientes de quatro fabricantes, em 125 padeiros sintomáticos. Os autores observaram uma grande variabilidade entre os resultados, indicando que as soluções utilizadas no diagnóstico de asma do padeiro devem ser padronizadas e melhoradas. Assim, o teste de puntura realizado com a farinha de trigo utilizada usualmente no trabalho reforça o diagnóstico, pois sua positividade indica que o paciente tem hipersensibilidade mediada por IgE. A positividade ao teste de puntura demonstra desgranulação de mastócitos cutâneos provocada pela ligação do alérgeno presente no extrato testado, no caso o trigo, a moléculas de IgE localizadas na membrana do mastócito.
Com todas as evidências apresentadas, foi possivel caracterizar que o nosso paciente é portador de asma ao trigo mediada por IgE, de causa ocupacional. O tratamento foi estabelecido, afastando o paciente do contato com o trigo, encaminhando o mesmo à Previdência Social, visando readaptação profissional. É importante destacar que a incapacidade não é relacionada apenas a condições médicas, mas envolve fatores mais complexos tais como: idade, sexo, medidas antropométricas, educação, condição psicológica e socioeconômica, e tipo de requerimento energético da ocupação, constituindo-se numa atribuição médico-administrativa.
A estratégia de teste de provocação com simulação do ambiente de trabalho, e a anamnese dirigida para investigar os sintomas decorrentes do trabalho podem contribuir para o diagnóstico dos casos de asma iniciada em adultos. A busca do agente causal é de importância fundamental para minizarmos as despesas desnecessárias ao empregador e as doenças ocupacionais dos empregados.
REFERÊNCIAS
1. Thiel H . Bakers asthma: a classical occupational allergy. In: Settipane GA, ed. Current treatment of ambulatory asthma. New England and Regional Allergy Proceedings Providence; Rhode Island, USA; 1986.
2. Lagier F, Cartier A, Malo JL. Statistiques medicolegales sur l'asthme profissionnel au Quebec de 1986 a 1988. Rev Mal Respir. 1990;7:337-41.
3. Contreras GR, Rousseau R, Chan-Yeung M. Occupational respiratory diseases in British Columbia, Canadá in 1991. Occup Environ Med. 1994;51:710-12.
4. Meredith SK, Taylor VM, Mcdonald JC. Occupational respiratory disease in United Kingdom 1989; a report to the British Thoracic Society and Society of Occupational Medicine by the SWORD project group. Br J Ind Med. 1991;48:292-8.
5. Cocco R. Alimentos e asma. Gazeta Médica da Bahia. 2008;79(Suplemento 2):114-16.
6. Wilbur RD, Ward GW. Immunologic studies in case of bakers' asthma. J Allergy Clin Immunol. 1976;58:366-72.
7. Napolitano J, Weiss NS. Occupational asthma of bakers. Ann Allergy. 1978;40:258-61.
8. Bernstein DI. Clinical Assessment and Management of occupational Asthma. In: Berntein IL, Chan-Yeung M, Malo JL Berntein DI, eds. Asthma in the workplace. 2nd Ed. New York: Marcel Dekker; 1999. p. 145-57.
9. Pepys J & Hutchcroft BJ. Bronchial provocation tests in etiologic diagnosis and analysis of asthma. Am Rev Respir Dis. 1975;112:829-59.
10. Sicarusa A, Kennedy SM, Bybuncio A, Lin FJ, Marabini A, Chen-Yeung M. Prevalence and predictors of asthma in working groupsin British Columbia. Am J Ind med. 1995;28:411-23.
11. Lemiere C, Cartier A, Dolovich J, Chan-Yeung M, Grammer L, Ghezzo H, et al. Outcome of specific bronchial responsiveness to occupational agents after removal from exposure. Am J Respir Crit Care Med. 1996;154(2 Pt 1):329-33.
12. Linneberg A, Nielsen NH, Frolund L, et al. The link between allergic rhinitis and allergic asthma. A prospective population-based study. Allergy. 2002;57:1048-52.
13. Lundblad L. Allergic rhinitis and allergic asthma: a uniform airway disease? Allergy. 2002;57:969-71.
14. van Kampen V, Merget R, Rabstein S, Sander I, Bruening T, Broding HC, et al. Comparison of wheat and rye fl our solutions for skin prick testing: a multicenter study (Stad 1). Clin Exp Allergy. 2009;39:1896-902.
15. Ortega HG, Weissman DN, Carter DL, et al. Use of specific inhalation challenges in the evaluation of workers at risk for occupational asthma: a survey of pulmonary, allergy, and occupacional medicine residency training programs in the United States and Canada. Chest. 2002;121:1323-8.