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Revista oficial da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia ASBAI
Revista oficial da Sociedad Latinoamericana de Alergia, Asma e Inmunología SLaai

Número Atual:  Novembro-Dezembro 2013 - Volume 1  - Número 6


Artigo de Revisão

Paracetamol e asma: evidências atuais

Paracetamol and asthma: current evidence

Geórgia Véras de Araújo1,2; Bruno Acatauassú Paes Barreto3,4; Emanuel Sávio Cavalcanti Sarinho5,6; Germana Pimentel Stefani8,2; Herberto José Chong Neto4,6; Joseane Chiabai8,9; Dirceu Solé10,6


DOI: 10.5935/2318-5015.20130044

1. MD. Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE
2. MD. Grupo de Assessoria em Alergia na Infância e na Adolescência da ASBAI
3. MD, PhD. Faculdade de Medicina Unievangélica, Anápolis, GO
4. MD, PhD. Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR
5. MD, PhD. Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE
6. MD, PhD. Grupo de Assessoria em Alergia na Infância e na Adolescência da ASBAI
7. MD. Faculdade de Medicina Unievangélica, Anápolis, GO
8. MD, MSc. Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES
9. MD, MSc. Universidade do Estado do Pará, Belém, PA
10. MD, PhD. Universidade Federal de Sao Paulo, Sao Paulo, SP


Endereço para correspondência:

Geórgia Véras de Araújo
georgiaveras@uol.com.br


Submetido em 12/09/2013.
Aceito em 02/07/2014.
Nao foram declarados conflitos de interesse associados à publicaçao deste artigo.

RESUMO

Há vários mecanismos possíveis para explicar o nexo de causalidade entre o paracetamol e a asma. A hipótese mais abordada está relacionada com o desequilíbrio entre o balanço oxidante/antioxidante, principalmente no epitélio pulmonar. A produçao de um metabólito altamente reativo, o N-acetil-p-benzoquinonaimina (NAPQI), derivado do metabolismo do paracetamol, promove depleçao no pool de glutationa intracelular, resultando em danos oxidativos, inflamaçao e broncoespasmo, destacados na asma. A diminuiçao dos níveis de glutationa pode alterar a apresentaçao antigênica e favorecer uma resposta imune polarizada para Th2. Existem evidências fisiopatológicas e epidemiológicas consistentes na literatura para considerar a forte relaçao de causalidade do paracetamol no desencadeamento da asma e outras desordens alérgicas, como rinoconjuntivite e eczema, em diferentes populaçoes no mundo. Descriçoes em consensos e diretrizes devem enfatizar esta associaçao e orientar o uso somente de forma esporádica, evitando doses altas deste fármaco em grávidas. Estudos randomizados controlados seriam úteis em dirimir possíveis dúvidas quanto ao nao uso em crianças e adultos com asma ou em risco de asma. Esta revisao narrativa pretende ressaltar o conhecimento científico atual sobre a relaçao causal do paracetamol (acetaminofeno), durante exposiçao intrauterina, infância, adolescência e na fase adulta, e as desordens alérgicas, em especial a asma. Para tanto, foram selecionados os principais artigos abordando o tema de interesse, em inglês e espanhol, a partir da pesquisa nos bancos de dados MEDLINE, SCOPUS e Web of Science publicados entre março de 1983 a março de 2014, e livros-textos selecionados sobre o assunto.

Descritores: Acetaminofeno, alergias, asma, paracetamol.




INTRODUÇÃO

O paracetamol (acetaminofeno) surgiu como metabólito ativo da acetanilida (1886) e da fenacetina (1887), sendo inicialmente identificado em 1893 na urina de indivíduos que tinham tomado compostos contendo os dois metabólitos. Mesmo seu uso sendo iniciado em meados de 1948, sua comercialização só ocorreu em 1955, em forma de gotas, inicialmente para crianças1. Atualmente é um fármaco que está disponível para venda sem prescrição médica na maioria dos países, e é utilizado como analgésico e antipirético comum em todo o mundo.

A possibilidade do paracetamol contribuir para o desenvolvimento da asma ganha importante impacto quando se analisa a tendência paralela dos acontecimentos, ao se considerar que houve um aumento dramático do uso da medicação no início dos anos 80, em substituição ao uso da aspirina associada com a síndrome de Reye, o que poderia ter resultado em aumento da prevalência da asma2,3.

Desde os primeiros relatos dos efeitos adversos na função pulmonar do uso do ácido acetil salicílico (aspirina) em crianças asmáticas, o paracetamol tornou-se a opção terapêutica mais indicada como antipirético e analgésico. Um dos primeiros estudos publicados sobre o tema mostrava que o uso do paracetamol, apesar da indicação como substituto da aspirina, não era totalmente inócuo, sendo verificada a diminuição da função pulmonar nos pacientes incluídos no estudo, com queda do volume expiratório forçado no primeiro segundo (VEF1) > 20% e/ou fluxo expiratório forçado (FEF25-75%) > 30%4.

O presente artigo avalia diversos pontos importantes sobre o uso do paracetamol e sua associação com a asma e outras desordens alérgicas, enfatizando as evidências atuais dessa relação de causalidade.

A revisão da literatura foi realizada utilizando-se como estratégia a busca nas seguintes bases de dados eletrônicas: Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (MEDLINE/PubMed) com 254 artigos, Web of Science com 217 artigos e SCOPUS (Elsevier) com 36 artigos iniciais, além de livros-textos selecionados sobre o assunto.

O estudo restringiu-se a artigos originais com texto completo disponível nos bancos de dados, pesquisas realizadas em humanos, em todas as idades, nos idiomas inglês e espanhol, que abordassem o tema em questão, no período de março de 1983 a março de 2014, utilizando os seguintes descritores Medical Subject Headings (MeSH): "asthma" OR "allergy" AND "acetaminophen" OR "paracetamol". As referências dos artigos encontrados foram também avaliadas com o objetivo de localizar os artigos que não haviam sido identificados pela busca nas bases de dados. Foram excluídos artigos com abordagem do acetaminofeno ou paracetamol em outros órgãos ou sistemas, os artigos que não preenchiam os critérios de seleção descritos, ou que encontravam-se em duplicata, resultando um total de 55 artigos utilizados nesta revisão.

 

FARMACOCINÉTICA E FARMACODINÂMICA DO PARACETAMOL

A origem da atribuição de dois nomes - acetaminofeno e paracetamol - a uma mesma substância deve-se à nomenclatura química original: N-acetil-para-aminofenol e Para-acetil-aminofenol5.

O paracetamol oral tem excelente biodisponibilidade. As concentrações plasmáticas de 5 a 20 ug/mL ocorrem em 30-60 minutos após ingesta e a meia-vida no plasma é de cerca de 2 horas após doses terapêuticas. Tem distribuição uniforme para todos os líquidos corporais, inclusive com passagem placentária5. Estudos que mediram a concentração do paracetamol no plasma e fluido cérebro-espinhal têm mostrado que a atividade analgésica e antipirética máxima ocorre 1 a 2 horas depois dos níveis de pico plasmático6,7.

As atividades analgésicas e terapêuticas estão relacionadas às concentrações plasmáticas de 10 a 20 µg/mL. Usado em doses terapêuticas, de acordo com peso e faixa etária, o fármaco não afeta a mucosa gastrointestinal, não altera a coagulação sanguínea e não provoca danos renais. Em situações especiais pode mostrar sensibilidade cruzada com os salicilatos, levar a quadros de leucopenia e/ou pancitopenia, insuficiência hepática fulminante com doses de 10 a 15 gramas/dia, melhor evidenciado após terceiro dia de uso, e pode em altas doses causar necrose tubular aguda renal por sua passagem durante excreção urinária5.

O metabolismo do paracetamol é primariamente no fígado (Figura 1), via conjugação com o ácido glicurônico (60%), com o ácido sulfúrico (35%), e cisteína (3-4%). Uma pequena quantidade (1%) passa por um caminho oxidativo via sistema citocromo P-450, gerando um metabólito tóxico que é a N-acetil-p-amino-benzoquinoneimina (NAPQI)1. A mais importante isoforma do citocromo P-450 responsável por este caminho oxidativo é o CYP2E1, mas formas CYP3A4 e CYP1A2 estão também envolvidas8.

 


Figura 1 - Metabolismo do acetaminofeno

 

O NAPQI produzido, quando encontra níveis normais de glutationa (GSH), reage com esta em nível hepático, e é neutralizado e excretado. Seguindo a ingesta de quantidades repetidas do paracetamol, a GSH é depletada e o NAPQI reage instantaneamente com o grupo sulfidrila nas proteínas hepáticas, podendo levar a danos hepáticos9. De forma geral, a GSH é encontrada na estrutura intracelular de quase todas as células do organismo humano, e sua depleção está associada ao uso frequente e em altas doses do Paracetamol10.

O paracetamol tem ação de inibição fraca da cicloxigenase-3 (COX-3), que é uma variante da COX-1, pois é derivada do mesmo gene desta isoforma. A inibição fraca tanto da COX-1, quanto da COX-3 seria o mecanismo central pelo qual o paracetamol agiria como analgésico e antipirético. Sua ação diminuta na atividade da ciclooxigenase-2 (COX-2) leva também à diminuição da produção da prostraglandina E2, que nos receptores EP2 age como broncodilatador11,12.

A diminuição da prostaglandina E2 (PGE2) provoca perda do efeito protetor sobre os mastócitos, causando liberação de histamina e biossíntese de leucotrienos cisteínicos, podendo desencadear quadros de urticária, angioedema, além de broncoespasmo, rinorreia e conjuntivite12. Estas mesmas reações de hipersensibilidade são observadas com maior frequência nos inibidores preferenciais da COX-1, como o ibuprofeno e dipirona, drogas largamente utilizadas em todas as faixas etárias13.

 

PAPEL DA GLUTATIONA (GSH)

A L-gama-glutamil-L-cisteinil glicina (glutationa - GSH) é um tripeptídeo de baixo peso molecular, formado pelo ácido glutâmico, glicina e cisteína, intracelular universal, presente em especial nos hepatócitos. Está diretamente implicada em manter adequado potencial celular de oxidação-redução de peróxidos e de radicais livres, e é cofator de diversas enzimas, auxiliando na síntese de proteínas e ácidos nucleicos8. Constitui-se em importante antioxidante pulmonar, encontrado em altas concentrações nos fluidos de revestimento do epitélio das vias aéreas e tem grande papel na limitação do processo inflamatório brônquico na asma14.

O paracetamol diminui os níveis de glutationa, principalmente no fígado e rins, mas também nos pulmões. Esta diminuição é dose dependente: níveis altos e contínuos do paracetamol são citotóxicos e causam injúria aguda pulmonar, embora doses terapêuticas também possam produzir significante redução dos níveis de glutationa nos pneumócitos tipo II e macrófagos alveolares15.

A Glutationa-S-transferase (GST), enzima que catalisa a conjugação da glutationa com o NAPQI, apresenta um polimorfismo genético, e sua forma GSTP é a responsável por 90% da atividade antioxidante nos pulmões15. Esse polimorfismo genético do sistema de enzimas da GST, que age contra produtos do stress oxidativo, tem sido detectado em pacientes asmáticos16,17. Crianças asmáticas que são homozigóticas para variantes alelos específicos da GSTP1, têm valores significantemente mais baixos de CVF e VEF1 do que crianças sem asma17. Perzanowski et al. evidenciaram que a exposição pré-natal ao uso do paracetamol, principalmente no início da gravidez, desencadeou sibilância na idade de 5 anos, em estudo de coorte realizado na República Dominicana e em crianças afro-americanas em Nova York, devido a alterações de polimorfismo genético da GSTP1, sugerindo um mecanismo envolvendo a via da glutationa18. Comparado com crianças saudáveis, a glutationa tem sido detectada em baixos níveis no condensado respiratório exalado de crianças asmáticas durante as exacerbações19.

A diminuição dos níveis de glutationa guia também a expressão de células T-helper, alterando a apresentação e reconhecimento antigênico, favorecendo o domínio de células Th2 e promovendo a formação de leucotrienos C4 e D4, ambos potentes broncoconstrictores20-22.

Estudo in vivo em seres humanos demonstrou redução na capacidade antioxidante da glutationa no sangue, após doses terapêuticas de paracetamol por duas semanas, embora os níveis de glutationa não tenham sido dosados22. Em estudo posterior, foi evidenciado que o paracetamol reduzia os níveis de glutationa no soro de indivíduos saudáveis voluntários, confirmando o efeito de diminuição da concentração desta substância como um processo esperado23.

 

RELAÇÃO DO USO DE PARACETAMOL COM ASMA E DESORDENS ALÉRGICAS

Exposição intrauterina

Desde a primeira publicação de Shaheen et al. sobre o uso do paracetamol na gravidez e sibilância na infância, oito estudos subsequentes têm relatado que o uso desta medicação na gravidez está associado com aumento do risco de asma24-31. Esta associação está presente na sibilância persistente mais do que na sibilância transitória, estendendo para asma na idade de 7 anos, sugerindo um efeito em ambos: ocorrência e gravidade da asma. Em três estudos24,29,30, dados sugerem que o efeito depende do tempo da exposição pré-natal ao paracetamol, embora existam dados que sugiram que o risco de asma na infância está presente com o uso da medicação em qualquer tempo durante a gravidez. O uso do paracetamol na fase tardia da gravidez foi positivamente associado com asma, sibilância e IgE total nos descendentes até a idade de 6-7 anos, com o uso diário da medicação e em doses usualmente recomendadas26.

O uso do paracetamol durante a gravidez e o risco de sibilância no filho foram avaliados em estudo de coorte prospectivo, em que 9.400 mulheres participaram do Avon Longitudinal Study of Parents and Children (ALSPAC), sendo questionadas quanto ao uso da medicação entre 18 a 20 semanas e 32 semanas de gestação. O uso frequente do paracetamol no final da gravidez (20-32 semanas) esteve associado com aumento do risco de sibilância em crianças na idade de 3 anos24. O aumento do risco de sibilância no filho até os 6 meses de vida teve um odds ratio (OR) de 2,34 (95% de IC, 1,24-4,40). Em outro momento, no mesmo estudo de coorte, avaliando estas crianças agora com idade de 6-7 anos, foi evidenciada associação positiva de asma e níveis elevados de IgE total25.

A forte relação de exposição do paracetamol na gravidez e o risco de sibilância e asma na infância também é documentada em estudo de coorte realizado na Dinamarca, que mostra um risco significante de asma aos 18 meses de vida da criança, com o uso de paracetamol em qualquer fase da gravidez, com OR de 1,15 (95% de IC, 1,10-1,19), 1,13 (95% de IC, 1,09-1,18) e 1,17 (95% de IC, 1,13-1,22), no primeiro, segundo e terceiro trimestres de gravidez, respectivamente26.

Mostrando a força da evidência de que o uso de paracetamol pode resultar em sibilância, mesmo em crianças de mães não asmáticas que usaram o fármaco durante a gravidez, temos um estudo de coorte espanhol, que mostrou um OR de 1,74 (95% de IC, 1,15-2,61) para sibilância nas crianças pré-escolares e o uso do paracetamol pelas mães durante o pré-natal28.

Paracetamol usado na infância e adolescência

A principal evidência da associação entre o uso do paracetamol na infância e o risco de asma é vista na fase III do ISAAC, que incluiu 205.487 crianças de 73 centros em 31 países do mundo32. Depois de ajustadas as potenciais variáveis de confusão, a administração do paracetamol usado para febre no primeiro ano de vida foi associada com um aumento de sintomas de asma na idade de 6-7 anos, com OR 1,46 (95% de IC, 1,36-1,56). Aumento semelhante do risco foi observado com rinoconjuntivite e eczema, sugerindo que esta associação se estende para outras condições alérgicas. O uso atual do paracetamol foi também associado com um risco maior de sintomas de asma, dose-dependente, com OR de 1,61 (95% de IC, 1,46-1,77) e 3,23 (95% de IC, 2,91-3,60) para uso em doses médias e altas, respectivamente, versus o não uso ou uso esporádico em doses terapêuticas normais. Outro dado que chamou a atenção foi o risco de gravidade dos sintomas da asma no primeiro ano de vida e mais tarde na infância, com riscos atribuíveis na população de 22% e 38%, respectivamente.

Resultados da fase III do estudo ISAAC foram recentemente publicados. O desfecho primário dos seus achados, envolvendo 322.959 adolescentes em diferentes populações do mundo, com idade de 13-14 anos, de 113 centros em 50 países, revelou importante associação da exposição ao paracetamol nos últimos 12 meses com risco significativo de asma. Esta associação foi evidenciada por OR de 1,43 (95% IC, 1,33-1,53) e 2,51 (95% IC, 2,33-2,70] para doses médias e altas versus não uso, respectivamente. Uso de paracetamol foi também associado com maior risco para os sintomas de rinoconjuntivite e eczema neste grupo33.

Em revisão sistemática com metanálise o risco de asma em crianças que usaram o paracetamol no ano anterior ao diagnóstico de asma, e durante os seus primeiros anos de vida, foi elevado, com OR de 1,60 (95% IC, 1,48-1,74) e 1,47 (95% IC, 1,36-1,56) respectivamente34.

Uso do paracetamol em adultos

Adicionado à crescente evidência epidemiológica do uso frequente do paracetamol e sua associação com a asma, temos um estudo de caso-controle multicêntrico organizado pela Global Allergy and Asthma European Network (GA2LEN). Este estudo foi desenvolvido em 12 centros europeus, e comparou 521 casos com diagnóstico e sintomas de asma com 507 controles sem diagnóstico de asma ou sintomas de asma durante 12 meses, em que o uso semanal do paracetamol, em comparação ao uso menos frequente, foi fortemente associado positivamente com asma35.

A relação da frequência do uso de paracetamol e aumento dos sintomas de asma foi bem documentada em dois importantes estudos caso-controle desenvolvidos em adultos, no Reino Unido e na Etiópia, mostrando piora dos sintomas da asma em indivíduos que usaram diariamente, semanalmente e mensalmente o fármaco36,37.

No United States Nurses Health Study, o aumento da frequência do uso do paracetamol foi positivamente associado com diagnóstico recente de asma no adulto, durante um período de 7 anos. O OR foi de 1,63 (95% de IC, 1,11-2,39) nos participantes que usaram o fármaco por mais de 14 dias por mês, comparado com os que não usaram38. Este estudo evidencia uma relação causal importante da frequência do uso do paracetamol no desencadeamento da asma em adultos que não eram asmáticos.

Em outro relevante estudo de caso-controle com adultos jovens asmáticos e não-asmáticos, no sul de Londres, Shaeen et al.36 encontraram importante associação do paracetamol com asma, evidenciando que a frequência do uso (diário, semanal, mensal) do fármaco é um fator desencadeante da asma em pacientes não-asmáticos e de piora dos escores de gravidade em asmáticos. Neste mesmo estudo, foi encontrada forte associação com rinite em pacientes não-asmáticos.

 

ASSOCIAÇÕES ECOLÓGICAS

A crescente relação entre o consumo per capita do paracetamol e o aumento da prevalência de asma em crianças e adultos tem sido bem documentada, principalmente em países da língua inglesa39, após introdução deste fármaco no mercado mundial.

No estudo de Varner et al.40, analisando os anos seguintes da substituição do uso da aspirina pelo paracetamol, fica claro o crescente aumento da venda e do consumo do paracetamol e sua associação com casos de asma. Neste período, houve uma crescente associação da aspirina com a síndrome de Reye, e o paracetamol se tornou o fármaco mais prescrito na infância.

Análises ecológicas baseadas nos dados de países participantes da fase I do International Study of Asthma and Allergy in Childhood (ISAAC) e do European Community Respiratory Health Survey (ECRHS) têm identificado positiva associação entre o consumo de paracetamol por pessoa e prevalência de asma em crianças e adultos39.

 

OUTRAS DESORDENS ALÉRGICAS E PARACETAMOL

Usando dados do ISAAC e do European Community Respiratory Health Survey (ECRHS), foi observada uma associação entre o paracetamol vendido e sintomas de asma, eczema e rinoconjuntivite alérgica no primeiro grande estudo epidemiológico publicado. Países com grande venda de paracetamol tinham alta prevalência de sibilância, asma, rinite e hiper-reatividade brônquica em adultos, e alta prevalência de sibilância, rinoconjuntivite alérgica e eczema atópico em crianças e adolescentes39.

 

CONCLUSÕES

Vários mecanismos potenciais estão implicados no desencadeamento e gravidade da asma e de outras desordens alérgicas com o uso do paracetamol41. Através do seu metabolismo natural, o paracetamol diminui o pool de glutationa intracelular que nos pulmões, leva à redução das defesas antioxidantes do epitélio respiratório. Neste processo, as espécies de oxigênio reativo contribuem para danos respiratórios, com alterações na secreção do muco, prejuízo da função dos β-adrenérgicos, aumento da permeabilidade vascular, responsividade brônquica aumentada, liberação dos mediadores pró-inflamatórios, contribuindo para a patogênese da asma12. A constante diminuição dos níveis de glutationa causa um desvio de produção de citocinas do padrão Th1 para Th2, predispondo às desordens alérgicas. Além disso, ao reduzir a febre o paracetamol interrompe a liberação de citocinas como o interferon INF-γ e IL-2, que são citocinas de perfil predominante Th142.

Apesar da dificuldade em determinar se o stress oxidativo, com suas repercussões em órgãos como fígado, rins e principalmente nos pulmões, é devido ao uso do paracetamol ou de infecções virais e/ou bacterianas presentes desde tenra idade, não podemos refutar a real e demonstrável ação do paracetamol e seus efeitos na depleção da glutationa, facilitando todo um mecanismo silencioso de desencadeamento das desordens alérgicas, principalmente da asma43.

Alguns fatores de confusão, como doenças do aparelho respiratório no início da vida por infecção pelo vírus sincicial respiratório (VSR) ou pelo rinovírus C, que estão envolvidos em sibilância aos 6 anos, podem estar associados a maior risco de asma44-46. No entanto, o uso do paracetamol em crianças com outras condições febrís, que não se relacionam às infecções respiratórias de vias aéreas inferiores, tais como estados pós-vacinais e infecções em outros órgãos e sistemas, podem levar também às alterações intracelulares já descritas.

Outro dado importante para ser analisado é a causalidade reversa, ou seja, crianças com asma seriam mais propensas a terem episódios febrís e, como resultado, teriam um maior uso do paracetamol que crianças não asmáticas. No entanto, esta situação não explicaria a associação entre o paracetamol e eczema, independente da asma47.

Em outro recente estudo, foi considerado que o aumento do número de infecções das vias aéreas de crianças em risco de asma, e não a medicação paracetamol por si, estaria associada a asma, não conseguindo esclarecer como essas infecções no trato respiratório levariam ao desencadeamento da asma48. Existe apenas um estudo randomizado controlado que investigou o efeito do uso de paracetamol na morbidade da asma em crianças asmáticas. Essas crianças que tinham uma doença febril foram randomizadas para usar paracetamol ou ibuprofeno. Em comparação com crianças asmáticas tratadas com paracetamol durante as doenças febris, as crianças que receberam ibuprofeno tiveram um risco reduzido de consultas ambulatoriais para asma nas 4 semanas seguintes, diferente do grupo que fez uso do paracetamol, que persistiu com sibilância49.

Um requisito básico para a demonstração de uma relação causal entre a exposição de um determinado fármaco e uma doença é o conhecimento da sequência temporal dos eventos. Um dado chama a atenção para esta realidade, que nos últimos 30 anos existe uma coincidência no aumento de prevalência da asma e aumento do uso do paracetamol, e até o momento a presença de qualquer outra mudança abrupta ambiental, que pudesse explicar o aumento da morbidade na asma, ainda não foi identificada. A "hipótese da higiene" tem sido sugerida para explicar o aumento gradual de asma na infância em todo o mundo, mas existem ainda estudos controversos sobre o assunto50. Alguns outros fatores de risco bem identificados na literatura, como tipo de parto, desmame precoce, pouca diversidade na microbiota intestinal, infecções respiratórias com menos de três meses de vida, que cooperam para um aumento da asma na infância, sempre estiveram presentes durante séculos e não conseguem explicar isoladamente este aumento de prevalência da asma em todo o mundo.

Em estudo publicado recentemente por Shaheen et al. os autores concluiram que há evidências epidemiológicas consistentes, em adultos e crianças, de que o uso do paracetamol está associado com sintomas de asma. Outro dado citado no estudo é que o uso do paracetamol na gravidez e na primeira infância parece estar associado com risco aumentado de desenvolvimento da asma na infância tardia, sendo a exposição pré-natal mais convincente. Apesar do largo corpo de evidências dos estudos observacionais, estudos randomizados placebo-controlados são necessários para estabelecer se o paracetamol causa aumento da morbidade em crianças com asma e desenvolvimento de asma em crianças mais jovens51.

Considerando as implicações de orientações para a saúde pública, estudo recente demonstra uma sólida evidência de associação positiva do paracetamol com asma/sibilância, e cita que a associação com rinite e eczema é mais duvidosa, pelo menor número de trabalhos publicados, inferindo cautela quanto ao uso do fármaco52.

Sumarizando as principais e atuais evidências do uso do paracetamol como um importante fator de risco no desencadeamento da asma, na gravidade em indivíduos asmáticos, no provocar sibilância nos vários fenótipos de asma e em indivíduos não asmáticos, a Tabela 1 mostra os critérios de causalidade, baseada nos estudos publicados sobre o assunto53.

 

 

Desperta-nos a atenção recente artigo publicado por Moral et al., em que os autores enfatizam a necessidade de se realizar um estudo multicêntrico comparando a incidência e prevalência de asma em um estudo prospectivo de coorte de crianças, desde o nascimento. Em estudo desta natureza, crianças seriam randomizadas em dois grupos, um com o uso do paracetamol e outro com uso do ibuprofeno, para quadros febrís em que necessitem serem usados. Os autores não consideram necessário evitar o uso do paracetamol durante gravidez, e em crianças com ou sem risco de asma, por falta de estudos de intervenção adequados54.

Diante da natureza heterogênea da asma, estudos farmacogenéticos serão os instrumentos promissores em esclarecer a fascinante relação das medicações num contexto biológico individualizado. Apesar das evidências dos estudos epidemiológicos observacionais mostrarem que o uso do paracetamol está associado com sintomas de asma, a literatura ainda apresenta alguns estudos com resultados conflitantes, por possíveis fatores de confusão55. Há necessidade de realização de estudos de intervenção, ensaios clínicos randomizados, no intuito de serem dirimidas as dúvidas quanto à recomendação do uso do paracetamol na infância, adolescência e suas implicações na asma e outras desordens alérgicas.

 

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