Profilaxia de curto prazo com inibidor de C1 e normalização do C4 em paciente com angioedema hereditário: relato de caso
Short-term prophylactic use of C1 inhibitor and C4 normalization in a patient with hereditary angioedema: a case report
Stéphanie Kim Azevedo de Almeida1; Gabriela Barbosa Bisson2; Flávio Wellington da Silva Ferraz2; Marcelo Vivolo Aun1; Jorge Kalil1; Pedro Giavina-Bianchi1
1. Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Disciplina de Imunologia Clínica e Alergia - São Paulo, SP, Brasil
2. Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Departamento de Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial - São Paulo, SP, Brasil
Endereço para correspondência:
Stéphanie Kim Azevedo de Almeida
E-mail: stephanie_kaa@hotmail.com
Submetido em: 23/01/2025
Aceito em: 06/03/2025.
Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste artigo.
RESUMO
O angioedema hereditário (AEH) é uma doença genética rara, caracterizada por episódios recorrentes de edema subcutâneo ou submucoso, frequentemente incapacitantes. As crises de AEH são geralmente imprevisíveis, embora possam ser desencadeadas por fatores como procedimentos dentários ou médicos (incluindo cirurgias), traumas ou estresse. Neste relato, descrevemos o caso de uma paciente com AEH tipo 1 que necessitou de exodontia dos terceiros molares. Foi administrado o inibidor de C1 derivado de plasma humano duas horas antes do procedimento, prevenindo o surgimento de crises de angioedema durante e após a extração. Além disso, observou-se a normalização dos níveis de C4 após a aplicação da medicação.
Descritores: Angioedema hereditário, complemento C4, extração dentária, proteína inibidora do complemento C1.
Introdução
O angioedema hereditário (AEH) é uma doença genética rara que se manifesta com episódios de edema subcutâneo ou submucoso recorrentes e incapacitantes1-2. O AEH pode ser considerado uma síndrome causada por diferentes defeitos, sendo classicamente associado à deficiência do inibidor de C1 (C1-INH), mas também podendo resultar de outras alterações que, em geral, promovem o aumento da concentração de bradicinina nos vasos sanguíneos, levando a uma maior permeabilidade vascular3. Atualmente, são reconhecidos e geneticamente identificados diversos subtipos de AEH, e sua classificação tem levado em conta genótipos e endotipos4-5.
O C1-INH desempenha um papel essencial na regulação de diferentes sistemas biológicos6. Ele age inibindo componentes chaves do sistema complemento (C1r e C1s), do sistema de contato (fator XII e calicreína), da coagulação (fator XI e trombina) e do sistema fibrinolítico (ativador tecidual do plasminogênio e fibrinolisina). Dessa forma, o C1-INH modula a formação de peptídeos vasoativos, sendo a bradicinina o principal deles. A adequada regulação da bradicinina é crucial para evitar o surgimento de angioedema7-8.
As crises de AEH são geralmente imprevisíveis, embora possam ser desencadeadas por fatores como procedimentos dentários ou médicos (incluindo cirurgias), traumas ou estresse. Um plano de tratamento com prevenção para pacientes que passarão por esses tipos de situações pode reduzir o risco de crises de AEH1-2.
As recomendações incluem a administração de profilaxia de curto prazo em pacientes com AEH antes de procedimentos médicos invasivos, especialmente aqueles que envolvem as vias aéreas superiores ou o trato digestivo1,9. Após a extração dentária, mais de um terço dos pacientes que não receberam tratamento profilático de curto prazo pré-procedimento podem desenvolver uma crise de angioedema, sendo 75% deles nas primeiras 24h10. A medicação de primeira escolha para essa profilaxia é o concentrado do inibidor de C1 derivado do plasma humano (pdC1INH)1,9.
Relatamos o caso de uma paciente com AEH tipo 1 submetida à exodontia, que recebeu profilaxia de curto prazo com pdC1-INH. Dosamos o componente C4 do complemento como biomarcador da ação e eficácia do pdC1-INH.
Relato de caso
Paciente do sexo feminino, 41 anos, natural e procedente de São Paulo, com atuação na área administrativa. Apresentou crises de angioedema nas extremidades e intensas dores abdominais desde o primeiro ano de idade. Recebeu o diagnóstico de AEH aos 10 anos, com diversas dosagens de C4 mostrando níveis diminuídos. As crises se intensificaram aos 23 anos, com múltiplas idas ao pronto atendimento devido a crises abdominais. As crises geralmente surgem de forma espontânea ou associadas a traumas. Aos 29 anos, realizou dosagem de inibidor de C1, com valor de 6 mg/dL (valor de referência [VR] - 21 a 38 mg/dL) e C1q de 14 mg/dL (VR - 10 a 25 mg/dL), confirmando o diagnóstico de AEH tipo 1. Em sua família tem um irmão também diagnosticado com AEH tipo 1, e seu pai faleceu por edema de glote, provavelmente relacionado a AEH não diagnosticado.
Iniciou tratamento com ácido aminocaproico na infância. Em 2006, aos 23 anos, foi introduzida oxandrolona 5 mg/dia, mantendo episódios de dores abdominais e angioedema nas extremidades. Posteriormente, em 2014, optou-se pela substituição da oxandrolona por danazol 200 mg/dia, com bom controle clínico. No entanto, em 2016, a paciente decidiu retornar ao uso de oxandrolona 5 mg/dia por preferência pessoal, apresentando apenas crises esporádicas de angioedema nas extremidades. Em 2021, voltou a usar danazol 200 mg/dia devido à disponibilidade gratuita da medicação pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Durante a gestação, também em 2021, houve piora das crises, com episódios semanais de angioedema nas extremidades, levando à introdução de ácido tranexâmico. Atualmente, a paciente faz uso combinado de danazol 200 mg/dia e ácido tranexâmico 500 mg/dia, apresentando bom controle da doença.
A paciente foi internada pela equipe de cirurgia bucomaxilofacial em 2024 para exodontia de terceiros molares. A equipe de Imunologia que a acompanha optou por manter as doses de danazol (200 mg/dia) e ácido tranexâmico (500 mg/dia) que a paciente já utilizava, além de realizar profilaxia pré-procedimento com o concentrado de inibidor de C1 esterase derivado de plasma humano, na dose de 20 U/kg de peso, administrado por via intravenosa. Com peso de 78 kg, a paciente recebeu 3 frascos da medicação (total de 1500 U), aplicados 2 horas antes do procedimento cirúrgico. Não houve registro de crise de angioedema durante ou após o procedimento.
Foi realizada a dosagem de C4 antes e após a aplicação do inibidor de C1 esterase derivado de plasma humano. Antes do uso da medicação, o C4 da paciente apresentava-se diminuído, com valor de 14,4 mg/dL (VR: 15-57 mg/dL). Cerca de 11 horas após a aplicação, o C4 foi normalizado, com valor de 19,7 mg/dL.
Discussão
O AEH é uma condição rara, ainda pouco conhecida e subdiagnosticada por muitos profissionais de saúde. O longo intervalo entre o início dos sintomas e o diagnóstico, assim como o acesso limitado à terapia, aumenta o risco de morte por angioedema de laringe e a morbidade relacionada à doença, impactando negativamente a qualidade de vida dos pacientes e de suas famílias. Pacientes com AEH consultam diversos médicos antes de receberem o diagnóstico correto, e muitos deles recebem diagnósticos equivocados. É fundamental que os profissionais de saúde estejam atentos à apresentação clínica do AEH e aos testes laboratoriais de triagem. Além disso, especialistas em alergia e imunologia devem se manter atualizados quanto ao diagnóstico e manejo de pacientes com AEH11.
Relatamos o caso de uma paciente com AEH tipo 1 que necessitou de cirurgia odontológica extensa e utilizou o pdC1-INH como profilaxia pré-procedimento, não apresentando crises durante ou após a intervenção. O C1-INH exógeno age nos mesmos alvos do C1-INH endógeno, e a administração do concentrado resulta em um aumento dos níveis plasmáticos dessa proteína. Esse aumento contribui para a regulação dos sistemas que interagem em cascata na produção de bradicinina durante os episódios de AEH12.
Estudos farmacocinéticos demonstraram que o uso de C1-INH exógeno resulta no aumento das concentrações plasmáticas de C1-INH, de sua atividade funcional, no incremento dos níveis de C4 e na redução do cininogênio de alto peso molecular clivado, um marcador da produção de bradicinina1314. No caso relatado, antes do procedimento, a paciente apresentava níveis reduzidos de C4. Após o uso da medicação, observou-se a normalização desse parâmetro, mesmo com a dosagem realizada 11 horas após a aplicação, o que pode ser explicado pela meia-vida prolongada do pdC1-INH, superior a 30 horas15.
A dosagem de C4 antes e após a administração do pdC1-INH pode ser uma estratégia útil para determinar a dose ideal da medicação pré-procedimento. Não há consenso na literatura sobre a dose mais apropriada de pdC1-INH para profilaxia, podendo ser utilizado 1000 U para todos os pacientes ou uma dose de 20 U/kg, ambas por via intravenosa1. Nesse contexto, a avaliação dos níveis de C4 pode servir como um parâmetro auxiliar na definição da melhor abordagem terapêutica.
Recomenda-se a profilaxia de curto prazo antes de procedimentos médicos, cirúrgicos ou odontológicos para pacientes com AEH, com o pdC1-INH sendo considerado a medicação de primeira linha1. No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) aprovou dois pdC1-INH: Berinert® e Cinryze®. Embora o Berinert® já tenha sido incorporado ao Sistema Único de Saúde (SUS), sua disponibilidade nos centros de atendimento ainda é limitada. Como alternativa para esses pacientes, é possível administrar plasma fresco congelado antes de procedimentos ou, ainda, dobrar a dose da medicação de manutenção (ácido tranexâmico ou danazol) no período de cinco dias antes até cinco dias após o procedimento. Entretanto, essas estratégias podem ser menos eficazes, reforçando a necessidade de garantir o acesso adequado ao tratamento de primeira escolha9.
Assim, a individualização da terapia, incluindo a possível utilização da dosagem de C4 como parâmetro para ajuste da dose do pdC1-INH, pode contribuir para uma abordagem mais eficaz e segura dos pacientes com AEH submetidos a procedimentos cirúrgicos médicos e odontológicos. O reconhecimento da importância da profilaxia de curto prazo e o aprimoramento do manejo clínico do AEH por parte dos profissionais de saúde são passos fundamentais para reduzir a morbidade e mortalidade associadas à doença. Estudos futuros poderão avaliar a relevância da dosagem de C4 como biomarcador para monitorar a concentração plasmática adequada de C1-INH.
Referências
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