Alterações climáticas e sua repercussão sobre a saúde humana em países da América do Sul
Climate change and its impact on human health in South America
Marilyn Urrutia-Pereira1,2,3,4; Dirceu Solé2,5,6,7
1. Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Pampa - Uruguaiana, RS, Brasil
2. Departamento de Polución, Sociedad Latinoamericana de Alergia, Asma e Inmunologia - SLaai
3. Coordenadora da Comissão de Biodiversidade, Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (ASBAI)
4. Departamento Científico de Toxicologia e Saúde Ambiental da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP)
5. Departamento de Pediatria, Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina - EPM/UNIFESP - São Paulo, SP, Brasil
6. Diretor de Pesquisa da ASBAI
7. Diretor Científico da SBP
Endereço para correspondência:
Dirceu Solé
E-mail: sole.dirceu@gmail.com
Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste artigo.
Submetido em: 05/04/2023
Aceito em: 14/04/2023.
RESUMO
Nas últimas duas décadas as mudanças climáticas têm se intensificado, causado danos ao meio ambiente e aos indivíduos que nele habitam. Várias ações do ser humano têm contribuído para que cada vez mais essas mudanças climáticas sejam mais presentes e intensas. O aumento das desigualdades e vulnerabilidades sociais, o desmatamento, os incêndios florestais voluntários, a degradação do solo e a poluição ambiental aliados à variabilidade climática global da temperatura da água do mar podem potencialmente levar a eventos climáticos extremos, potencializando os efeitos negativos sobre a saúde. Neste trabalho é apresentado um resumo do relatório do Lancet Countdown South America, fruto da colaboração acadêmica multidisciplinar de instituições de ensino e agências sul-americanas de saúde de 12 países (Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Chile, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Uruguai, Venezuela e Suriname) publicado por Hartinger e cols. (2023). Este estudo é uma alerta, pois nele são publicados os resultados do levantamento sobre mudanças climáticas e seus efeitos sobre a saúde humana no continente sul-americano. Conhecê-las é o primeiro passo para que políticas de saúde pública sejam instituídas, e, preferencialmente, de modo preventivo.
Descritores: Mudanças climáticas, saúde humana, desmatamento, incêndios florestais.
Introdução
As mudanças climáticas têm sido cada vez mais presentes e intensas1-5. São responsabilizadas por danos ao meio ambiente, bem como aos indivíduos que nele habitam. O aumento das desigualdades e vulnerabilidades sociais, o desmatamento, a degradação da terra e a variabilidade climática global nas temperaturas do mar podem potencialmente levar a eventos climáticos extremos, potencializando os efeitos negativos sobre a saúde1-5. Conhecer a real dimensão do problema, mesmo em nível regional, é o primeiro passo para que medidas efetivas de adaptação e mitigação possam ser instituídas com o intuito de evitar e prevenir as suas ações sobre a saúde humana.
Em estudo recente, Hartinger e cols. publicaram os resultados de levantamento sobre mudanças climáticas e efeitos na saúde humana no continente sul-americano, denominado Lancet Countdown South America (LCSA)6. O LCSA foi gerado pela colaboração acadêmica multidisciplinar que reuniu 21 instituições acadêmicas e agências sul-americanas das Nações Unidas de 12 países (Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Chile, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Uruguai, Venezuela e Suriname; a Guiana Francesa não foi considerada) e capitaneadas por 28 pesquisadores de várias disciplinas. O LCSA teve por finalidade avaliar a relação entre saúde pública e as mudanças climáticas na América do Sul.
Os dados e resultados fornecidos por esse relatório foram obtidos por consenso entre os vários especialistas de diferentes áreas que participaram do mesmo e integram os do relatório global Lancet Countdown 20222. Nele estão reunidos vários indicadores capazes de fornecer evidências que possibilitam apoiar estratégias específicas em resposta às deliberações dos tomadores de decisão.
Considerando-se a relevância do tema e o momento que vivemos, apresentaremos a seguir um resumo das quatro principais conclusões originadas pelo estudo, sob a forma de mensagens6.
A mudança climática está prejudicando a saúde dos sul-americanos, é hora de agir imediatamente
Os efeitos adversos das mudanças climáticas sobre a saúde estão se acelerando e têm afetado de maneira desproporcional as populações mais vulneráveis da América do Sul. Nos últimos dez anos estas populações tiveram sua saúde cada vez mais afetada pelos perigos relacionados às mudanças climáticas, e a menos que algo seja feito, a tendência é piorar.
Nos últimos dez anos, ondas de calor mais frequentes e intensas têm colocado crianças menores de um ano e adultos com mais de 65 anos em risco. Estima-se que 2,35 milhões de pessoas/dia a mais foram expostas a ondas de calor a cada ano entre os menores de um ano de idade, e mais 12,3 milhões de pessoas/dia entre os com 65 anos ou mais, tendo-se como base o período entre 1996 a 2005.
Desde o ano 2000, tem sido observado aumento do número estimado de mortes relacionadas ao calor entre pessoas com 65 anos ou mais, em todos os países, sendo mais acentuadas no Brasil, Argentina, Colômbia e Venezuela. Estima-se que o custo dessas mortes corresponda ao rendimento médio de 485.000 trabalhadores locais em 2021.
Além disso, a perda potencial de renda regional associada à redução da produtividade do trabalho devido ao calor em 2021 foi de US$ 22 bilhões, sendo os setores de construção e agricultura os mais afetados, com 68% do total de perdas na região.
O aumento da temperatura ambiente e a maior incidência de secas, sobretudo na última década, têm propiciado o aumento da ocorrência de incêndios florestais e exposição das populações residentes nessas regiões. Além disso, outro agravante que ocorre na América do Sul são os incêndios provocados pelo homem, e mais intimamente relacionados à mudança do uso da terra e ao desmatamento, como na Amazônia.
Regionalmente, a exposição da população ao risco de incêndio florestal muito alto ou extremamente alto na América do Sul aumentou em nove dos 12 países, com aumento médio de mais sete dias em 2018-2021 em comparação ao de referência.
A mudança climática, por gerar alterações nas condições ambientais (secas mais intensas e prolongadas, eventos climáticos extremos, temperaturas mais altas e maiores concentrações de CO2 na atmosfera), também interfere com os sistemas alimentares, afetando o crescimento, rendimento e o conteúdo nutricional de várias culturas, incluindo quatro culturas básicas (trigo, arroz, milho e soja), o que é preocupante, posto que 168,7 milhões de sul-americanos sofrem de insegurança alimentar moderada ou grave. A duração média da estação de crescimento para trigo de primavera, trigo de inverno, milho, soja e arroz diminuiu em 2,5%, 2,2%, 1,6%, 1,3% e 0,4%, respectivamente, em comparação com o período de referência (1981-2010).
Desse modo, esses impactos ameaçam os meios de subsistência das pessoas que dependem do setor agrícola e representam uma séria ameaça à segurança alimentar da região.
Além disso, as mudanças nas condições ambientais também têm afetado a distribuição geográfica das doenças infecciosas. A região é endêmica para dengue, responsável por uma alta carga da doença e ciclos epidêmicos frequentes em toda a região. A sua transmissão atingiu o nível mais alto nos últimos anos, com um aumento de 35,3% em 2012-2021, em comparação com a linha de referência de 1951-1960, sobretudo nos países onde o Aedes aegypti é encontrado. Outros fatores, como urbanização e mobilidade, também interferem com a propagação da dengue. No Brasil e Peru houve aumento da sua propagação para latitudes mais altas e para áreas menos povoadas.
A mudança climática também pode desencadear a troca viral entre espécies selvagens anteriormente isoladas geograficamente, levando à transmissão interespécies e ao surgimento de doenças. Além do aumento do risco de dengue representado pelas mudanças climáticas, os países temperados do Cone Sul são altamente vulneráveis aos efeitos graves da dengue, impulsionados principalmente pela rápida urbanização. A Argentina e o Uruguai experimentaram um aumento da vulnerabilidade entre 1990 e 2019.
Os países da América do Sul devem aumentar sua preparação para proteger a população dos impactos da crise climática sobre a saúde
Compreender, avaliar e monitorar os impactos das mudanças climáticas sobre a saúde e os cobenefícios das ações climáticas para a saúde é essencial para o desenvolvimento de planos e políticas de adaptação que possam proteger a saúde da população sul-americana contra o aumento das inundações, resultado das mudanças climáticas, e maximizar seu impacto positivo.
Diante do rápido aumento dos riscos à saúde decorrentes da mudança climática, os países devem concentrar seus esforços na identificação de seus riscos específicos, assim como no desenvolvimento de planos de adaptação apropriados. No nível subnacional, poucos municípios realizaram avaliações de risco de mudanças climáticas em suas cidades, o que levanta questões sobre se os dados, necessidades e diferenças entre os países no nível local estão sendo integrados nos Planos Nacionais de Adaptação (PANs).
Como reflexo do planejamento insuficiente para a adaptação à saúde, os países sul-americanos não têm oferecido respostas de adaptação proporcionais aos riscos crescentes enfrentados por suas populações. Ações de adaptação, como a expansão de espaços verdes urbanos, fortalecimento dos sistemas de saúde e a construção de infraestruturas essenciais mais resilientes têm o potencial de reduzir os impactos na saúde relacionados ao clima e promover a saúde e o bem-estar. No entanto, dos 73 centros urbanos examinados em 2021, 84% tinha níveis muito baixos ou excepcionalmente baixos de espaços verdes, e apenas 12 (16%) tinha níveis moderados. Esses resultados refletem um progresso limitado na implementação de uma medida de adaptação eficaz que pode não apenas reduzir a exposição a extremos de calor prejudiciais à saúde em áreas urbanas, mas também fornecer benefícios diretos significativos por ar mais limpo, melhor saúde mental e bem-estar da exposição a espaços verdes, e melhores resultados gerais de saúde decorrentes do acesso a espaços de socialização e recreação.
É essencial melhorar a capacidade e resiliência do sistema de saúde, uma vez que com o aumento dos riscos para a saúde associados às alterações climáticas, aumentam também as necessidades de saúde da população. Assim, os esforços das agências governamentais devem se concentrar em garantir que os estabelecimentos de saúde tenham acesso aos serviços essenciais de que precisam para fornecer atendimento adequado, incluindo serviços de água e saneamento, fornecimento de eletricidade e conectividade com a Internet. As infraestruturas de saúde também devem ser fortalecidas para lidar com os efeitos crescentes de eventos climáticos extremos e para serem baluartes seguros durante emergências relacionadas ao clima. A capacidade do sistema de saúde deve ser ajustada para fazer face à crescente procura de cuidados, e devem ser atribuídos recursos à formação e educação dos profissionais de saúde para que possam reconhecer, prevenir e tratar as consequências para a saúde dos perigos relacionados com clima.
Finalmente, os sistemas de vigilância, alerta precoce e resposta devem ser implementados em colaboração às agências meteorológicas e se adaptar aos riscos locais de saúde, para ensinar sobre a prevenção e a resposta apropriada a esses riscos à saúde. De fato, o apelo à cobertura universal de sistemas de alerta precoce contra eventos climáticos extremos e mudanças climáticas foi consignado no acordo alcançado na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas ou Conferência das Partes da United Nations Framework Convention on Climate Change (UNFCCC; COP27) de 2022. No entanto, apenas Argentina e Brasil relatam a incorporação de informações climáticas para sistemas de alerta precoce contra o calor em seus sistemas de saúde. O sistema de alerta precoce de calor na Argentina foi o único sistema nacional de alerta precoce implementado e avaliado.
O fortalecimento dos sistemas de saúde sulamericanos para melhor prevenir e responder aos riscos de saúde relacionados ao clima também proporcionará melhores serviços, com ganhos gerais para a saúde e o bem-estar da sua população. Com a fragilidade dos sistemas de saúde exposta na pandemia de COVID-19, o fortalecimento dos serviços locais de saúde deve estar no topo das agendas dos governos locais.
A América do Sul deve continuar e acelerar seus esforços para uma transição de carbono zero
Deve-se continuar e acelerar os esforços para mitigar as emissões de gases de efeito estufa (GEE), reduzir as mudanças no uso da terra ligada ao desmatamento, descarbonizar seu sistema de energia e transporte e aumentar a produção e o uso de energia renovável. Fazer isso ajudará não apenas a região a cumprir seus compromissos com o Acordo de Paris, mas também proporcionará benefícios significativos à saúde pela melhoria da qualidade do ar, redução da pobreza energética, redução das desigualdades no acesso ao transporte e estilos de vida mais ativos.
Embora a América do Sul seja responsável por apenas 6% das emissões globais de GEE, deve unir esforços para reduzi-las, e, mais importante, garantir que não fique para trás na transformação global em direção a um sistema de emissões zero, líquido e muito mais saudável. Essas emissões estão relacionadas principalmente com mudanças no uso da terra (24%), agricultura (28%) e produção de energia (39%). Por ele, a mitigação relacionada ao uso da terra e práticas agrícolas é especialmente importante, exigindo uma estratégia de longo prazo, sistemas de incentivos nacionais e internacionais e forte governança e regulamentação, o que é particularmente desafiador nos países sul-americanos.
A mitigação da mudança climática no setor agrícola e na do uso da terra ligada ao desmatamento também tem o potencial de trazer benefícios de saúde significativos, simultâneos e imediatos para as populações locais e promover dietas mais saudáveis, com benefícios adicionais de redução da mortalidade prematura por dietas desequilibradas.
Na América do Sul, 23% de todas as mortes atribuíveis a dietas desequilibradas está relacionada ao alto consumo de carne vermelha e processada e produtos lácteos, cuja produção é altamente intensa em carbono (principalmente devido a emissões associadas à produção de alimentos para gado e fermentação entérica de ruminantes). Portanto, minimizar o consumo de carne vermelha de acordo com as diretrizes dietéticas não apenas ajudaria a prevenir essas mortes, mas também reduziria as emissões de GEE relacionadas à pecuária e práticas agrícolas associadas.
Quanto ao setor de energia, a diminuição também pode trazer co-benefícios substanciais e imediatos para a saúde. A queima de combustíveis fósseis não só contribui para aumentar as concentrações de GEE na atmosfera, como também causa níveis tóxicos de poluição atmosférica, que as pessoas respiram. Na América do Sul, a exposição ao material particulado 2,5 (PM2,5) no ar externo causou 37.000 mortes somente em 2020 (indicador 3.2), sendo as maiores taxas de óbito observadas no Chile (230 mortes/milhão) e Peru (178 mortes/milhão). Os custos decorrentes de mortalidade prematura secundária à poluição do ar são equivalentes ao rendimento médio de 2,9 milhões de pessoas produtivas.
A mudança para combustíveis limpos também pode reduzir significativamente a exposição à poluição do ar doméstico e reduzir as desigualdades de saúde entre áreas urbanas e rurais. Apesar do acesso quase universal à eletricidade nos lares sul-americanos, apenas metade é gerada por fontes limpas, como solar, eólica ou hidrelétrica. Além disso, há grandes diferenças urbano-rurais, com 23% da população rural ainda dependendo exclusivamente de combustíveis de biomassa para cozinhar, expondo-se a altos níveis de poluentes no ar intradomiciliar. A exposição anual média a PM2,5 para uma família rural é de 171 µg/m3 [95% CI: 159-183], 34 vezes maior do que o limite anual recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), de 5 µg/m3.
A descarbonização do transporte terrestre também pode gerar benefícios importantes para a saúde da população da América do Sul. Reduzir as viagens rodoviárias realizadas com combustíveis fósseis pode ajudar a evitar mortes atribuíveis à exposição à poluição do PM2,5 gerada pelo setor de transporte, com as mais de 10.100 mortes registradas no ano de 2020. A expansão do acesso e uso de redes de transporte público seguras, acessíveis e confiáveis não apenas reduziria o uso de combustíveis fósseis, mas também traria importantes co-benefícios ao reduzir as desigualdades socioeconômicas associadas ao acesso ao transporte. Além disso, promover a mudança modal para formas ativas de deslocamento por incentivos e infraestrutura segura pode trazer simultaneamente benefícios significativos para a saúde física e mental, associados ao aumento da atividade física.
Apesar desses potenciais benefícios à saúde, os países sul-americanos aumentaram em 138% o uso de energia per capita para transporte terrestre entre os anos de 1971 e 2019. Especificamente, países como Paraguai, Equador, Bolívia e Guiana triplicaram o uso de energia per capita no transporte terrestre desde a década de 1970. Isso ocorreu em paralelo ao rápido processo de urbanização e ao aumento regional nas vendas de veículos automotores.
Os combustíveis fósseis continuam sendo a principal fonte de energia para o transporte terrestre na América do Sul, com 84%, seguidos pelos biocombustíveis (16%). Embora frequentemente apontados como uma alternativa sustentável, os biocombustíveis causam emissões líquidas de carbono (especialmente biocombustíveis de primeira geração), sua produção normalmente gera emissões líquidas de mudanças no uso da terra, e, mais importante, sua combustão emite poluentes atmosféricos como PM2,5, que prejudicam a saúde humana.
Mesmo no Chile e no Equador, dois países que lideram a eletrificação rodoviária na região, menos de 1% das fontes de energia rodoviária provém da eletricidade. Na região, a eletricidade representa apenas até 4% da energia consumida nas viagens rodoviárias.
À medida que a crise global de energia provoca aumentos acentuados nos preços internacionais da energia e o aumento da inflação ameaça a capacidade das pessoas de comprar energia limpa, a pobreza energética na região provavelmente aumentará e, com ela, o uso de combustíveis nocivos nas residências. Uma ação rápida para eliminar gradualmente o uso de combustíveis fósseis na região e aumentar a produção local de energia limpa e renovável em todos os níveis (ou seja, individual, doméstico, comunitário e social) não apenas ajudaria a cumprir os compromissos que os países assumiram no Acordo de Paris, mas também forneceria sistemas de energia mais resilientes, estáveis e soberanos para as populações sul-americanas. Isso, por sua vez, reduziria a dependência da região dos mercados voláteis internacionais de combustíveis fósseis e dos conflitos geopolíticos, ajudaria a reduzir a pobreza energética e seus impactos associados à saúde, e melhoraria a qualidade do ar que as pessoas respiram em toda a região.
É preocupante que, apesar dos perigos que a contínua dependência excessiva de combustíveis fósseis representa para as populações dos países do Sul, os países da região continuem oferecendo incentivos financeiros para o consumo de combustíveis fósseis, dificultando a transição para fontes de energia limpa e renovável. Considerando todos os subsídios e instrumentos de precificação de carbono, a região continua subsidiando efetivamente o consumo de combustíveis fósseis, por um valor total que equivale em média a 10,5% dos gastos governamentais com saúde na região. Atualmente, os subsídios líquidos aos combustíveis fósseis na Venezuela, Equador, Bolívia e Argentina equivalem a 85,6%, 29,2%, 23,5% e 15,4%, respectivamente, do orçamento nacional de saúde. Esses subsídios líquidos equivalentes variam de 3,5% a 4,8% para Brasil, Chile e Colômbia. No total, os seis países gastaram US$ 27,9 bilhões em subsídios a combustíveis fósseis no ano de 2021. Redirecionar esses gastos para subsidiar energia renovável e proteger populações vulneráveis do aumento dos custos de energia e do custo de vida da crise energética não apenas promoveria a transição para uma vida saudável, futuro de baixo carbono, mas também contribuiria para reduzir as desigualdades e a pobreza energética.
Os países da América do Sul precisam de compromissos financeiros sérios para responder aos desafios impostos pela mudança climática
Implementar políticas e ações de adaptação às alterações climáticas para a saúde e bem-estar das populações é um investimento sem arrependimentos que requer o apoio dos governos, com compromissos financeiros transparentes e uma dotação orçamentária concreta.
Embora os governos sul-americanos tenham apresentado sua segunda rodada ou versões atualizadas de suas Contribuições Determinadas Nacionalmente (NDCs), apenas oito dos 12 países propuseram NDCs revisadas para 2021. A mudança percentual no número de menções de termos relacionados à saúde do primeiro ao segundo NDC foi de 130,4%. Os países com maior número de menções foram Venezuela, Paraguai e Colômbia. Isso reflete a consciência dos vínculos entre saúde e mudança climática e a priorização nas agendas climáticas nacionais. No entanto, muitas dessas NDCs são compromissos de alto nível que consolidam a intenção de um país, em alguns casos sem detalhar totalmente as atividades, indicadores para monitorar seu progresso, funções e responsabilidades institucionais e/ou um orçamento para sua implementação. Normalmente, esta descrição mais detalhada é desenvolvida nos Planos Nacionais de Adaptação, e nos NAPs setoriais - no caso da saúde - um NAP para a Saúde. Apesar do alto nível de reconhecimento da importância de ter atividades relacionadas à saúde nas NDCs dos países, apenas o Brasil desenvolveu um NAP de Saúde até 2021, enquanto outros países, Argentina, Colômbia, Chile e Peru, informam tê-los prontos, mas não foram apresentados ou estão em fase de desenvolvimento.
Apesar da necessidade urgente de proteger a saúde das populações locais face ao rápido aumento dos perigos para a saúde, a adaptação dos cuidados de saúde é lamentavelmente subfinanciada na América do Sul, com apenas 10% (USD 36 milhões) do financiamento aprovado relacionado com a adaptação dedicada à saúde em 2021. No entanto, as grandes somas de dinheiro destinadas a subsidiar os combustíveis fósseis mostram que os fundos geralmente estão disponíveis, mas não estão sendo gastos em atividades que permitiriam um futuro seguro e saudável.
Os gastos sociais e de infraestrutura necessários para cumprir as metas climáticas variam de "7% a 19% do produto interno bruto (PIB) até 2030 (entre 470.000 e 1.300.000 milhões de dólares em 2030), dependendo das condições iniciais e dos objetivos econômicos e sociais propostos". Sob esta perspectiva, uma transição justa para um futuro sustentável requer que fundos suficientes sejam disponibilizados para os países menos industrializados, incluindo muitos sul-americanos. Os países menos industrializados precisam ser capacitados para fazer a transição para sistemas de energia saudáveis, resilientes e de car-bono zero e sistemas de saúde mais fortes e mais bem preparados. Na 27ª Conferência da ONU sobre Mudança Climática (COP27), os países "desenvolvidos" foram instados a aumentarem sua contribuição de financiamento climático, transferência de tecnologia e capacitação para responder às necessidades de adaptação e abrandamento de países "em desenvolvimento". A implementação dessa ambição, que deve ser avançada na COP28, não é apenas essencial para atingir as metas do Acordo de Paris, mas também para alcançar uma saúde global melhor e mais equitativa.
A implementação de medidas climáticas aceleradas requer o apoio de atores e setores-chave da sociedade, como formuladores de políticas, cientistas, mídia e público em geral. A comunicação eficaz da ciência sobre os vínculos entre mudança climática e saúde é fundamental para mudar a percepção pública, gerar demanda por ação e informar a implementação de políticas de adaptação e abrandamento baseadas em evidências que maximizem os benefícios para a saúde. A cobertura da mídia sobre as relações entre saúde e clima tem aumentado na América do Sul, atingindo seu nível mais alto nos principais jornais de oito países em 2021. E enquanto a dimensão da saúde da mudança climática permanece pouco estudada na região, a pesquisa original liderada por pesquisadores sul-americanos aumentou mais de 1.000% desde 2007.
Apesar disso, 94% dos artigos sobre saúde e mudanças climáticas publicados se referem aos efeitos do clima na saúde, enquanto o número dos relacionados aos efeitos da ação multissetorial (co-benefícios para a saúde e adaptação) sobre o clima e a saúde permanece baixo. A pesquisa sobre os benefícios da ação climática com foco na saúde é urgentemente necessária na América do Sul, para informar uma resposta de abrandamento e adaptação baseada em evidências que maximize os benefícios para as populações locais.
Este relatório inaugural da LCSA enfoca (a) as ameaças imediatas à saúde representadas pelas mudanças climáticas na América do Sul; (b) os planos limitados de adaptação à saúde desenvolvidos na região; (c) nossa necessidade de acelerar os esforços para a corrida rumo a uma transição de carbono zero; e (d) a lacuna financeira existente para lidar com o ônus da mudança climática sobre a saúde na América do Sul.
Além disso, este relatório destaca a necessidade de promover esforços regionais para criar sistemas de saúde resilientes e reduzir o efeito convergente da desigualdade, pobreza e vulnerabilidade à mudança climática. Nunca foi tão importante como agora trabalhar pelo Acordo de Paris em limitar o aumento da temperatura média global a 1,5 ºC e liberar os recursos financeiros necessários para uma resposta climática eficaz. Além disso, essa ação climática pode trazer benefícios imediatos e substanciais, salvando milhões de vidas a cada ano, melhorando a qualidade do ar, a dieta e a atividade física e tornando os sistemas de saúde mais resilientes.
O LCSA apela aos governos e às várias partes interessadas na região para iniciar e acelerar uma resposta coordenada e definir e empreender ações claras que enfrentem os desafios colocados pela mudança climática, garantindo vidas saudáveis, ambientes limpos, serviços ecossistêmicos e bem-estar para todos os povos sul-americanos.
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