Alergia alimentar autodeclarada em idosos no Brasil: prevalência e características clínicas - Protocolo de estudo
Self-reported food allergy among older Brazilians: prevalence and clinical characteristics - a study protocol
José Laerte Boechat1; José Rodrigo de Moraes2; Luís Taborda-Barata3,4; Carlos Lozoya-Ibáñez3,5; Emanuel Sávio Cavalcanti Sarinho6; Dirceu Solé7
1. Universidade Federal Fluminense, Disciplina de Imunologia Clínica, Faculdade de Medicina - Niterói - Rio de Janeiro, Brasil. Universidade do Porto, Serviço de Imunologia Básica e Clínica, FMUP - Porto, Portugal. Universidade do Porto, CINTESIS, FMUP - Porto, Portugal
2. Universidade Federal Fluminense, Departamento de Estatística, Instituto de Matemática e Estatística - Niterói - Rio de Janeiro, Brasil
3. Universidade da Beira Interior, Faculdade de Ciências da Saúde - Covilhã, Portugal
4. Centro Hospitalar Cova da Beira, Serviço de Imunoalergologia - Covilhã, Portugal
5. Unidade Local de Saúde de Castelo Branco, EPE, Serviços de Imunoalergologia e Consulta Externa - Castelo Branco, Portugal
6. Universidade Federal de Pernambuco, Departamento de Pediatria - Recife, PE, Brasil. Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (ASBAI), Presidente - São Paulo, SP, Brasil
7. Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina, Disciplina de Alergia, Imunologia Clínica e Reumatologia, Departamento de Pediatria - São Paulo, SP, Brasil. Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (ASBAI), Diretor de Pesquisa - São Paulo, SP, Brasil
Endereço para correspondência:
José Laerte Boechat
E-mail: jl_boechat@id.uff.br
Submetido em: 22/07/2022
Aceito em: 17/08/2022
RESUMO
Nas últimas décadas tem se observado um aumento expressivo na prevalência de alergia alimentar (AA), com frequência estimada em adultos de 3% a 8%, sendo ainda mais relevante quando se avalia a AA autodeclarada (variação de 3% a 35%). Entretanto, são poucos os dados publicados sobre a prevalência de AA em idosos, e no Brasil tais dados são inexistentes. O objetivo principal deste protocolo de estudo é conhecer a prevalência de AA autodeclarada em idosos (≥ 60 anos) brasileiros. Trata-se de estudo epidemiológico transversal que utiliza questionário padronizado e validado para a língua portuguesa. Entre os vários aspectos investigados, serão avaliados quais alimentos e sintomas são os mais relacionados à AA nestes indivíduos. Os dados obtidos serão transcritos a planilha Excel para realização da análise estatística. A obtenção dessas informações permitirá compará-las às existentes, assim como estabelecer planos de abordagem destes pacientes.
Descritores: Hipersensibilidade alimentar, prevalência, idoso, inquéritos epidemiológicos.
INTRODUÇÃO
Estudos epidemiológicos recentes sugerem que a prevalência de alergia alimentar (AA) está aumentando e que o padrão de sensibilização a alimentos está sujeito a influências geográficas1,2. Entretanto, a maioria dos estudos tem como foco crianças ou adultos jovens, levando à impressão de que a AA não acomete idosos. No Brasil, estudos sobre AA em idosos são inexistentes.
A prevalência de doenças alérgicas nos idosos é atualmente estimada em 10%, com tendência a aumentar ao longo dos próximos anos3. Estima-se que até 2030, 20% da população mundial será constituída por idosos.
O fenômeno de imunosenescência (afetando tanto a imunidade adaptativa como inata), a deficiência de micronutrientes, e a diminuição da capacidade de digestão ácida do estômago são possíveis fatores de risco para o desenvolvimento de AA nos idosos. Entretanto, o subdiagnóstico e consequentemente o subtratamento ainda é a regra nesta faixa etária, não só para a AA, mas também para outras formas de doenças alérgicas4.
Ainda não está claro se a prevalência de AA na população idosa é similar, maior ou menor em relação a adultos ou crianças. Tal variabilidade deve-se ao método de investigação utilizado na avaliação da frequência de AA empregado em diferentes estudos. A prevalência de AA autodeclarada é conhecidamente mais elevada que a de AA provável, definida por sintomas associados à determinação de IgE específica e/ou confirmada por provas de provocação oral5. Este fato fica claro quando comparamos dois estudos europeus recentes sobre prevalência de AA em adultos. Nwaru e cols.5 descrevem prevalência de AA autodeclarada em adultos variando entre 9,5% e 35%. Já Lyons e cols.6 documentaram ser a prevalência de AA provável entre 0,3% e 5,6%. Resultados semelhantes foram observados em estudo epidemiológico realizado na comunidade de adultos em geral7.
Por outro lado, idosos com reações imunomediadas a alimentos podem apresentar sintomas pouco perceptíveis, ou por serem confundidas com sintomas de outras doenças relacionadas à idade ou por serem mascaradas pelo uso de medicações (polifarmácia) o que facilita a subestimativa da prevalência de AA nesses inidivíduos8.
Estudo português elaborou e validou questionário escrito para investigação de AA autodeclarada em população adulta e abriu a possibilidade de sua utilização em países de fala portuguesa, além de funcionar como instrumento de triagem na investigação de AA9.
A ausência de dados epidemiológicos sobre AA em idosos no Brasil, aliada à disponibilidade de instrumento escrito previamente validado para o idioma português, motivaram a realização do presente estudo objetivando conhecer a prevalência de AA autodeclarada, alimentos envolvidos e principais sintomas manifestos.
PACIENTES E MÉTODO
Idosos, independentemente de sexo, com 60 anos de idade ou mais serão convidados a participar deste estudo populacional transversal com amostragem de conveniência. Esses indivíduos serão identificados por médicos alergistas/imunologistas, associados à Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (ASBAI) nos 23 estados brasileiros em que a ASBAI atua.
O recrutamento desses pacientes será feito pelo médico assistente, durante a consulta na especialidade de Alergia e Imunologia Clínica, nas unidades de atendimento (ambulatório ou consultório) público (hospital universitário, unidades de saúde) ou privado, de modo sequencial e independentemente da queixa atual.
Todos os idosos responderão de forma presencial ao questionário idealizado por Lozoya-Ibáñez e cols.9, elaborado e validado para o idioma português (cultura portuguesa) que será submetido à avaliação e possível adaptação cultural para a cultura brasileira. Os dados assim obtidos serão transcritos em planilha Excel para posterior análise estatística.
ADAPTAÇÃO TRANSCULTURAL DO INSTRUMENTO
Por ser o questionário original escrito em português (cultura portuguesa), a fase de tradução será omitida realizando-se apenas a verificação de sua adequação ao contexto cultural e estilo de vida encontrados na cultura alvo, a brasileira10. Assim, o questionário foi enviado a 25 médicos especialistas em alergia e imunologia de todo o Brasil, sendo inquiridos quanto à clareza das perguntas e sua capacidade de distinguir indivíduos com possíveis quadros relacionados à AA. Destes, 21 concordaram em avaliar a adequação do questionário e retornaram com suas observações.
Os termos identificados como de uso não comum na cultura brasileira foram substituídos por outros mais apropriados e alterações pontuais foram introduzidas (por exemplo, alimentos regionais), chegando-se ao instrumento final que será aplicado a 10 idosos para avaliar a sua intelecção (Figura 1).
Foram inseridas as seguintes modificações no questionário original após a avaliação dos especialistas: (a) na questão nº 2, "anos de escolaridade" foi modificado para "nível de escolaridade mais elevado alcançado pelo idoso" que foi especificado em: sem instrução, fundamental completo, fundamental incompleto, médio completo, médio incompleto entre outros, para facilitar o entendimento; (b) na questão nº 6, modificou-se "Que alimento ou alimentos provoca(m) a reacção (resposta múltipla RM)?" para "Qual é o alimento ou alimentos que lhe provoca/provocam reação (resposta múltipla)?"; ao item "mariscos" foi inserido entre parêntesis "frutos do mar ou crustáceos - camarão, siri, lagosta etc."; ao item "moluscos" incluiu-se entre parêntesis "mexilhão, polvo, lula"; "outros frutos secos" foi substituído por "frutos secos (castanha de caju, castanha do Pará, amêndoa, pistache, avelã, nozes, etc.)"; os alimentos do grupo do látex foram posicionados após os frutos secos e especificou-se o termo "mamão papaia" ao invés de apenas "papaia"; o item "frutas" recebeu a descrição "outras que não do grupo do látex" e foi inserido após os alimentos do grupo do látex; no item "legumes" acrescentou-se o milho e a explicação "milho é considerado legume quando fresco e cereal quando os grãos são secos"; na descrição do item "leguminosas" acrescentou-se "lentilhas e soja"; o item "cereais (trigo, centeio, cevada, aveia)" foi introduzido no questionário após o item "leguminosas"; o item "alimentos regionais (aipim, inhame, açaí, etc.) lhe provoca reação?" foi introduzido no questionário após o item "carne de vaca"; (c) na questão nº 7 deixou-se claro que mais de uma alternativa sobre o tipo de reação após a ingestão do alimento poderia ser assinalada e escreveu-se por extenso o termo SAO - síndrome da alergia oral; (d) na questão nº 8 acrescentou-se o item "não recorda" às opções de resposta sobre o tempo de surgimento das reações após a ingestão do alimento; (e) na questão nº 10 no item "onde recebeu tratamento médico?", a opção "INEM" (Instituto Nacional de Emergência Médica português) foi substituída pelo correspondente no Brasil: "SAMU ou UPA"; foram acrescentadas as opções "consulta virtual ou on-line (Telemedicina)" e "não recorda onde recebeu tratamento"; em caso de resposta afirmativa à opção "automedicação", foi inserido um espaço para informar qual medicação foi utilizada; (e) na questão nº 15 o enunciado "Sofre algum tipo de doença alérgica?" foi modificado para "Independente das reações aos alimentos, você tem algum tipo de doença alérgica?"; o item "asma (tosse, pieira, falta de ar)" foi modificado para "asma (tosse, chiado, falta de ar)"; o item "rinite (espirros, corrimento e comichão nasal)" foi modificado para "rinite (espirros, coriza, coceira no nariz e nariz entupido)"; o item "conjuntivite (lacrimejo, comichão e vermelhidão ocular)" foi modificado para "conjuntivite (lacrimejamento, coceira e vermelhidão ocular); o termo "alergia cutânea (eczema, comichão, descamação ou babas na pele) foi modificado para "alergia cutânea (eczema, coceira, descamação, urticas); (f) na questão nº 16 modificou-se o item "tios" para "tios biológicos" e foram acrescentados os itens "primos" e "filhos"; e (g) a questão nº 17 "Caso de ser possível, desejaria continuar o estudo numa consulta de Imunoalergologia no Hospital de referência?" foi excluída por questões éticas.
CÁLCULO AMOSTRAL
Estabelecendo-se nível de confiança de 95%, erro amostral máximo absoluto de 2%, e empregando-se ser a prevalência de AA de no máximo 10%, obtevese um tamanho de amostra requerido de 865 idosos. Considerando-se uma taxa de não resposta de 30%, pretende-se entrevistar 1.236 idosos, distribuídos proporcionalmente entre os 23 estados brasileiros. Para se estabelecer a distribuição desses indivíduos nos diferentes estados, empregaremos a distribuição de idosos na população geral, estimada em 20.369.810, de acordo com o último censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística11, conforme apresentado na Tabela 1.
O questionário será disponibilizado em plataforma de Formulários Google e deverá ser respondido pelo paciente durante o atendimento médico. A leitura das questões, assim como o preenchimento do questionário, será feito pelo médico assistente. Cada questionário preenchido será identificado por código segundo o centro participante e o seu número de admissão ao estudo.
CONSIDERAÇÕES ÉTICAS
O estudo será submetido à avaliação prévia do comitê de ética e pesquisa (CEP) com seres humanos do Centro Coordenador do estudo, localizado no Hospital Universitário Antônio Pedro - HUAP/UFF. Todos os pacientes deverão assinar o termo de consentimento livre e esclarecido antes do preenchimento do questionário.
Além do centro coordenador, será oferecida a possibilidade de participação de outros centros, doravante denominados de coparticipantes e que seguirão os mesmos trâmites para aprovação do estudo por seus respectivos CEPs.
ANÁLISE ESTATÍSTICA
Para características sociodemográficas (sexo, idade e escolaridade), presença/ausência de AA autorreferida, alimentos identificados como responsáveis pelas reações alérgicas, tipos de reações, tempo para o surgimento dos sintomas após a ingestão do alimento, data da última reação alérgica, frequência de episódios anteriores de reações adversas ao alimento, necessidade de atendimento médico em função da reação, histórico pessoal e familiar de doenças alérgicas, entre outras, serão construídas inicialmente tabelas de distribuições de frequências. Adicionalmente, para avaliar associações bivariadas, serão aplicados testes paramétricos ou não paramétricos, considerando o nível de significância de 5%.
Tomando-se como ponto de análise a presença ou não de AA autorreferida, será utilizado mode-lo linear generalizado para identificar os fatores estatisticamente associados à prevalência de AA autorreferida em idosos brasileiros, considerando o nível de significância de 5%.
CONCLUSÃO
O estudo objetiva obter e quantificar dados mais acurados sobre a prevalência de AA autodeclarada em idosos, empregando-se questionário validado. O autorrelato de AA pela população idosa permitirá também um confronto comparativo com dados disponíveis na literatura mundial tais como prevalência, sintomas apresentados e alimentos envolvidos, entre outros.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos à colaboração dos seguintes profissionais na adaptação transcultural do questionário: Ana Paula Castro, Bruno Paes Barreto, Dirceu Solé, Fábio Kuschnir, Fernando Aarestrup, Giovanni Di Gesu, Herberto Chong Neto, Jackeline Motta Franco, José Carlison Oliveira, José Luiz Rios, Lillian Sanchez Moraes, Lucila Camargo Lopes de Oliveira, Maria Elisa Bertocco Andrade, Maria Letícia Chavarria, Myrthes Toledo Barros, Nilza Lyra, Norma Rubini, Renata Cocco, Roberto Magalhães de Souza Lima, Valéria Botan e Valéria Soraya de Farias Sales.
REFERÊNCIAS
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