Surfando a terceira onda
Surfing the third wave
Pedro Giavina-Bianchi
Editor dos Arquivos de Asma Alergia e Imunologia. Professor Livre Docente Associado da Disciplina de Imunologia Clínica e Alergia da FMUSP
A pandemia de COVID-19 completa dois anos em março com as estarrecedoras cifras, oficialmente reportadas, de mais de 400 milhões de infecções e de cerca de 6 milhões de vidas ceifadas em todas as partes do mundo1. No Brasil, 28 milhões de infecções e 650 mil óbitos foram confirmados até o momento, além de possíveis subnotificações1. Serão necessárias algumas décadas para termos uma percepção mais realista do impacto da pandemia sobre a saúde pública, economia e sociedade, assim como das mudanças desencadeadas pela COVID-19 em nossas vidas.
Os profissionais da saúde e cientistas nunca estudaram, aprenderam e trabalharam tanto. No PubMed, a busca com o termo "COVID-19" identificou 230 mil publicações, correspondendo a mais de 300 manuscritos por dia. Muitas questões foram respondidas e muito conhecimento adquirido. O merecido reconhecimento e agradecimento aos profissionais também vieram, incluindo a valorização da Imunologia Clínica e Alergia.
Entretanto, infelizmente, o enfrentamento da pandemia também tem suas páginas obscuras escritas por: políticos que não estão à altura dos desafios e demandas exigidas pela pandemia; pessoas oportunistas, midiáticas e irresponsáveis; vigaristas e bandidos que inventam e disseminam informações falsas; criminosos que se apropriam de verbas designadas à saúde; entre outras forças do mal. É muito triste e desgastante a energia desperdiçada com discussões pouco frutíferas, mas que se fazem necessárias para melhor orientar a população sobre a COVID-19 não ser apenas uma "gripezinha", que muitos dos medicamentos utilizados na fase aguda da doença não têm comprovação científica de eficácia, e que as vacinas são eficazes e seguras.
Também ficou patente a influência da desigualdade socioeconômica e da heterogeneidade dos sistemas de saúde nos desfechos da pandemia. Analisamos a presença de anticorpos contra o SARS-CoV-2 em trabalhadores da área de saúde sem história pregressa de infecção e que prestavam assistência a pacientes com COVID-19 durante a primeira onda da pandemia. Observamos soroprevalência de 14%. Fatores estatisticamente associados a maior seropositividade foram: menor escolaridade (aOR de 1,93), utilização de transporte público para locomoção entre o domicílio e o trabalho (aOR de 1,65) e trabalhar na área da limpeza ou segurança hospitalar (aOR de 10,1)2. Outro estudo mostrou que a mortalidade pela COVID-19 em Manaus em pessoas com mais de 70 anos foi o dobro e o triplo das observadas no Rio de Janeiro e São Paulo, respectivamente3.
No início, as medidas de higiene e as de distanciamento social foram as intervenções que contribuíram para o controle da pandemia. Posteriormente, a vacinação anti-SARS-CoV-2 tornou-se o ponto de viragem no enfrentamento da COVID-19. Cerca de 10 bilhões de doses das vacinas foram administradas no mundo, embora distribuídas de maneira heterogênea entre os diversos países, com as menores taxas de vacinação observadas na África. No Brasil, aproximadamente, 75% da população está com a vacinação completa e outros 10% receberam a primeira dose4.
Com o passar dos meses, mas antes da pandemia completar um ano, constatamos que teríamos mais de uma onda de infecções pelo coronavírus. Pelo menos três fatores concorrem para o recrudescimento da COVID-19 com aumento do número de casos: diminuição das medidas de higiene e distanciamento social; diminuição da resposta imune com o transcorrer do tempo após a infecção natural pelo SARS-CoV-2 ou vacinação; e, principalmente, o surgimento de variantes do vírus. Enquanto a grande maioria dos países enfrentaram quatro ondas distintas, no Brasil, estamos passando pela nossa terceira onda em decorrência das infecções pela variante Ômicron (Figura 1)1. Aqui houve uma junção das infecções causadas por mais de uma variante, além de termos observado maior circulação e impacto da variente Gama (P1) em relação à Delta, durante a nossa segunda onda.
Assim como é observado com outros vírus, o SARS-CoV-2 sofre mutações aleatórias de seu genoma e se adapta continuamente às mudanças do meio ambiente através do processo de seleção natural. A maioria das mutações são neutras ou prejudiciais ao vírus; porém, poucas mutações podem fornecer vantagens, como aumento de transmissibilidade, escape do sistema imunológico de um hospedeiro anteriormente ativado pela vacinação ou infecções prévias, resistência a antivirais, escape à detecção diagnóstica, entre outras. A Organização Mundial de Saúde (World Health Organization, WHO) denomina essas variantes do SARS-CoV-2 com as características descritas acima de variantes de preocupação (variants of concern, VOCs). Já as variantes que possuem mutações genéticas específicas que possam se traduzir em vantagens adaptativas ao vírus precisam ser monitoradas e são denominadas variantes de interesse (variants of interest, VOIs). O sistema da WHO de nomenclatura das variantes utiliza as letras do alfabeto grego e objetiva facilitar o compartilhamento do conhecimento de pesquisas com um público mais amplo, fornecer uma plataforma para permitir um discurso global uniforme em torno das VOIs e VOCs e evitar estigmatizações dos locais onde as variantes foram descobertas.
A variante Ômicron do SARS-CoV-2 (B.1.1.529) foi identificada na África no final de 2021. Em comparação com as outras quatro VOCs previamente identificadas (alfa, beta, gama e delta), a variante Ômicron é a cepa com maior número de mutações, com 97 mutações acumuladas em todo o genoma, incluindo pelo menos 33 mutações na proteína espícula (spike). Estudos mostraram que as diferentes mutações dessa variante conferem aumento de infectividade com maior afinidade do vírus pelo receptor ECA2 e escape imunológico em comparação com a cepa inicial do tipo selvagem e as outras VOCs5. A mudança acentuada da antigenicidade viral confere evasão significativa do coronavírus aos anticorpos neutralizantes monoclonais terapêuticos e policlonais induzidos pelo esquema vacinal original com duas doses. Uma terceira dose com vacina de mRNA resgata e amplia a neutralização6. A variante Ômicron se tornou a cepa dominante, sendo responsável por recordes no número de infecções novas por dia em todo o mundo, e traz desafios adicionais para a prevenção e controle da COVID-19.
Felizmente, observamos que, apesar do rápido aumento de novos casos de infecção pelo SARS-CoV-2 com a circulação e dominância da variante Ômicron, não há um aumento proporcional do número de óbitos. Evidências científicas em modelos animais experimentais sugerem que essa variante tem algumas características intrínsecas que a tornam menos virulenta, patogênica e letal. A variante Ômicron tem menor capacidade de clivar a proteína spike e de ligar-se ao receptor humano TMPRSS2, duas propriedades que auxiliam na invasão viral, além de menor atividade de indução de sincícios multinucleados nas células do hospedeiro5,6. Consequentemente, há menos lesão tecidual em comparação com as outras variantes, principalmente das células humanas que expressam o receptor TMPRSS2, como os pneumócitos2.
Qual o principal fator que diferencia a terceira onda da COVID-19 das demais? Desta vez o vírus está enfrentando uma população com algum grau de imunidade que foi desencadeada pela vacinação e/ou infecções prévias por outras variantes. Estudo da rede VISION mostrou que a eficiência das vacinas de mRNA em prevenir infecções pela variante Ômicron que acarretam internação hospitalar é de 91% durante os primeiros dois meses, e de 78% após quatro meses da terceira dose vacinal7. Segundo dados do CDC, no final de 2021, o risco dos indivíduos com 18 anos ou mais sem vacinação ter uma infecção fatal pelo SARS-CoV-2 era 68 vezes maior do que naqueles vacinados com três doses8. Qual a principal mensagem a ser salientada e divulgada? Manter a vacinação para a COVID-19 atualizada para minimizar os riscos de contrair a doença e de suas evoluções graves.
AGRADECIMENTO
À Bruna Giavina-Bianchi, pela ilustração.
REFERÊNCIAS
1. WHO - World Health Organization. WHO Coronavirus (COVID-19) Dashboard [site na Internet]. Disponível em: https://covid19.who.int/. Acessado em: 19/02/2022.
2. Costa SF, Giavina-Bianchi P, Buss L, Mesquita Peres CH, Rafael MM, Dos Santos LG. Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (SARS-CoV-2) Seroprevalence and Risk Factors Among Oligo/Asymptomatic Healthcare Workers: Estimating the Impact of Community Transmission. Clin Infect Dis. 2021;73(5):e1214-18.
3. Silva GAE, Jardim BC, Lotufo PA. Age-adjusted COVID-19 mortality in state capitals in different regions of Brazil. Cad Saude Publica. 2021;37(6):e00039221.
4. Our World in Data. Coronavirus (COVID-19) Vaccinations [site na Internet]. Disponível em: https://ourworldindata.org/covid-vaccinations. Acessado em: 19/02/2022.
5. Suzuki R, Yamasoba D, Kimura I, Wang L, Kishimoto M, Ito J, et al. Attenuated fusogenicity and pathogenicity of SARS-CoV-2 Omicron variant. Nature. 2022. doi: 10.1038/s41586-022-04462-1.
6. Meng B, Abdullahi A, Ferreira IATM, Goonawardane N , Saito A, Kimura I, et al. Altered TMPRSS2 usage by SARS-CoV-2 Omicron impacts tropism and fusogenicity. Nature. 2022. doi: 10.1038/s41586-022-04474-x.
7. Ferdinands JM, Rao S, Dixon BE, Mitchell PK, DeSilva MB, Irving SA, et al. Waning 2-Dose and 3-Dose Effectiveness of mRNA Vaccines Against COVID-19-Associated Emergency Department and Urgent Care Encounters and Hospitalizations Among Adults During Periods of Delta and Omicron Variant Predominance - VISION Network, 10 States, August 2021-January 2022. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2022;71(7):255-63.
8. CDC - Centers for Disease Control and Prevention. Rates of COVID-19 Cases and Deaths by Vaccination Status [site na Internet]. Disponível em: https://covid.cdc.gov/covid-data-tracker/#rates-by-vaccine-status. Acessado em: 19/02/2022.