Uso de corticoide inalado e sua implicação no nível de eosinófilos periféricos
Inhaled corticosteroid use and its implications for peripheral blood eosinophil levels
Grazielly de Fatima Pereira; Priscila de Abreu Franco; Larissa de Queiroz Mamede; Lais Souza Gomes; Iandra Leite Perez; Amanda Brolio de Souza; Allyne Moura Fé E. S. Araujo; Jorge Kalil; Pedro Giavina-Bianchi; Rosana Câmara Agondi
Serviço de Imunologia Clínica e Alergia do Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - São Paulo, SP, Brasil
Endereço para correspondência:
Rosana Câmara Agondi
E-mail: ragondi@gmail.com
Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste artigo.
Submetido em: 16/12/2019
Aceito em: 23/12/2019
RESUMO
INTRODUÇÃO: Um dos efeitos do corticoide sistêmico é a redução do número e da ação dos eosinófilos. O objetivo deste estudo foi avaliar a ação do corticoide inalatório (CI) sobre os eosinófilos periféricos (EoP).
MÉTODOS: Trata-se de um estudo retrospectivo de prontuários eletrônicos de pacientes adultos com asma grave, steps 4 e 5 da GINA 2019, acompanhados em um centro terciário de referência. Os pacientes em uso recente ou atual de corticoide oral foram excluídos. Foram avaliados dados demográficos, dose de budesonida inalada, sensibilização a aeroalérgenos, IgE total, cortisol sérico e EoP, no período de 2010 a 2019.
RESULTADOS: Foram avaliados 58 pacientes, sendo 81,0% do sexo feminino, com médias de idade de 61,0 anos, de início da asma aos 17,4 anos e de tempo de doença de 43,6 anos. A média de CI foi de 1682,8 µg/dia, e a média de IgE sérica total do grupo foi de 398,9 UI/mL. A IgE específica para aeroalérgenos estava positiva em 40 pacientes (69%), sendo 85% destes pacientes sensibilizados para ácaros. A média do cortisol sérico foi de 5,6 µg/dL, e dos EoP de 252,1 cel/mm3. Neste estudo não foi observada correlação entre a dose de CI e o cortisol sérico. Entretanto, 41,4% dos pacientes apresentaram EoP < 150 cel/mm3, e houve uma correlação inversa significante entre as doses de CI e os níveis de EoP, (p = 0,011 r2 = 0,11), ou seja, quanto maior a dose de CI, menor o nível de EoP.
CONCLUSÕES: A GINA 2019 recomenda o uso de anticorpos monoclonais (mAbs), no step 5, direcionados pelo fenótipo de asma. Alguns destes mAbs incluem como critério de tratamento os EoP acima de 150 ou 300 cel/mm3. Neste estudo, o CI em doses elevadas estava relacionado a níveis mais baixos de EoP, portanto, alguns pacientes em uso de doses elevadas de CI poderiam apresentar EoP reduzida pelo uso de CI, interferindo na recomendação de alguns mAbs.
Descritores: Corticoide inalado, eosinófilos periféricos, asma, cortisol sérico, anticorpos monoclonais.
INTRODUÇÃO
A asma é uma doença heterogênea, geralmente caracterizada por inflamação crônica das vias aéreas. É definida pela história de sintomas respiratórios, como sibilância, dispneia, opressão torácica e tosse, que variam ao longo do tempo e em intensidade, juntamente com uma limitação variável ao fluxo expiratório. A limitação do fluxo de ar pode, posteriormente, se tornar persistente1.
É uma doença respiratória crônica comum que afeta de 1 a 18% da população em diferentes países1. Calcula-se que entre 10 a 20% dos pacientes com asma apresentem sintomas persistentes graves, apesar de um plano terapêutico adequado2-4.
A presença de eosinófilos na inflamação brôn-quica da asma é reconhecida há muitos anos, sendo a asma eosinofílica um fenótipo comum que geralmente responde à terapia com corticosteroides. A inflamação eosinofílica das vias aéreas parece estar intimamente relacionada ao risco de exacerbações graves e perda do controle da asma. Pacientes asmáticos com contagem de eosinófilos periféricos (EoP) maior que 400 cel/mm3 apresentam exacerbações mais graves, e têm pior controle da doença5. Altos níveis de eosinófilos no escarro estão associados à maior frequência de asma não controlada, asma mais grave e exacerbações mais frequentes6. A asma eosinofílica alérgica representa 60% dos casos de asma, e a asma eosinofílica não alérgica, 25 a 30%7.
O corticoide inalado (CI) é o principal medicamento anti-inflamatório utilizado no tratamento de manutenção e profilático, tanto em adultos como em crianças. Pacientes com asma grave (steps 4 e 5 da GINA) muitas vezes necessitam, para o controle da doença, de doses elevadas de corticoide inalado (CI) por longos períodos de tempo8-10.
O tratamento de manutenção com CI reduz a frequência e gravidade das exacerbações, o número de hospitalizações e de atendimentos nos serviços de emergência, melhora a qualidade de vida, a função pulmonar e a hiper-responsividade brônquica, e diminui a broncoconstricção induzida pelo exercício11.
O controle dos sintomas e a melhora da função pulmonar podem ocorrer após uma a duas semanas de tratamento, enquanto que para reversão da hiper-responsividade brônquica, o paciente pode necessitar de meses ou anos de utilização de CI. A suspensão do tratamento com CI pode levar à deterioração do estado de controle da asma12-14.
Os efeitos colaterais sistêmicos dos CI são habitualmente observados com utilização de doses altas por tempo prolongado, e são eles: perda de massa óssea, inibição do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, e déficit de crescimento. Candidíase oral, disfonia e tosse crônica por irritação das vias aéreas superiores podem ser observadas com qualquer dose, e são reduzidas se a recomendação de higiene oral após o uso da medicação for seguida. Outro efeito do corticoide sistêmico é a redução do número e da ação dos eosinófilos15-18.
Em pacientes no step 5 da GINA, podem ser indicadas as terapias com anticorpos monoclonais, baseando-se no fenótipo da asma, associado às medicações inalatórias para conseguir melhor controle da doença1.
O objetivo principal deste estudo foi avaliar a ação do corticoide inalado sobre os eosinófilos periféricos (EoP).
MÉTODOS
Foi realizada para este estudo uma análise retrospectiva de prontuários eletrônicos de pacientes adultos com diagnóstico de asma grave steps 4 e 5 da GINA 2019, acompanhados em centro terciário de referência.
Os pacientes em uso de corticoide oral atual ou nos últimos três meses foram excluídos. Foram avaliados os dados demográficos, a dose de budesonida inalada ou dose correspondente à budesonida, a sensibilização a aeroalérgenos, a IgE total (valores normais: até 100 UI/mL), o cortisol sérico (valores normais: 5,4 a 17 µg/dL) e eosinófilos periféricos (EoP) (valores normais: 0 a 500 cel/mm3), no período de 2010 a 2019.
O cortisol sérico foi mensurado para se avaliar a possível inibição do eixo hipotálamo-hipófise nos pacientes eu uso de CI em doses elevadas. Apenas os pacientes que possuíam cortisol sérico dosado foram incluídos. A dose de budesonida inalada diária foi avaliada na mesma data que o hemograma havia sido realizado, para avaliação da EoP.
Foi analisada a correlação entre CI e cortisol sérico, e entre CI e o nível de EoP.
Análise estatística
As características dos pacientes e dos exames laboratoriais foram avaliadas por um método descritivo. Para a correlação entre os valores da dose de CI e cortisol e da dose de CI e EoP foi realizado o método de Pearson. O valor de p < 0,05 foi considerado estatisticamente significativo.
RESULTADOS
Foram avaliados 58 pacientes asmáticos graves, nos steps 4 e 5 da GINA, que haviam sido submetidos a dosagem de EoP e cortisol sérico. Destes pacientes, 47 (81,0%) eram do gênero feminino. A média de idade era de 61,0 anos (DP 12,1 anos), e média de tempo de asma de 43,6 anos (DP 16,4 anos). Estes dados podem ser observados na Tabela 1.
Todos os pacientes haviam realizado a dosagem de cortisol sérico, na vigência de CI, porém sem o uso atual ou recente de corticoide sistêmico. Todos os pacientes incluídos neste estudo mantinham a dose de CI estável por mais de 3 meses quando o hemograma foi avaliado juntamente com a média da dose de budesonida.
A média da dose de CI (correspondente à de budesonida) era de 1537,9 (variação de 800-2400) µg/dia. A mediana de IgE sérica total do grupo foi de 216,0 UI/mL (variação de 6,8-3085 UI/mL), e a IgE específica para aeroalérgenos estava presente em 40 pacientes (69,0%), e, destes, 85% eram sensibilizados para ácaros da poeira doméstica. A média do cortisol sérico foi de 5,6 µg/dL (DP 4,9 µg/dL) e dos EoP de 222,2 cel/mm3 (DP 175,8 cel/mm3). As características laboratoriais de todos os pacientes e a frequência de IgE específica para aeroalérgenos dos asmáticos estão na Tabela 2 e na Figura 1.
Os pacientes com asma foram classificados conforme a dose de CI utilizada no momento da dosagem de EoP, correspondente à dose de budesonida inalada, sendo divididos segundo os seguintes grupos: 800, 1200, 1600, 2000 e 2400 µg/d. Estes dados podem ser observados na Figura 2. Do mesmo modo, os pacientes com asma foram classificados conforme o nível de EoP, com variação de 0 a 750 cel/mm3 (Figura 3).
Neste estudo não foi observada correlação entre a dose de CI e o cortisol sérico. Entretanto, 41,4% dos pacientes apresentaram EoP < 150 cel/mm3, e houve uma correlação inversa significante entre as doses de CI e os níveis de EoP (p = 0,011; r2 = 0,11), ou seja, quanto maior a dose de CI, menor o nível de EoP, como mostrado na Figura 4.
DISCUSSÃO
Este estudo avaliou a correlação entre os níveis de eosinófilos periféricos e a dose de CI utilizada por um grupo de pacientes com asma grave acompanhado em um serviço terciário de Imunologia Clínica e Alergia. Foram incluídos 58 pacientes, sendo a maioria mulheres com história de asma de longa data.
Avaliamos apenas pacientes com asma grave, alérgicos ou não, em uso de CI ≥ 800 µg/dia, associado ao broncodilatador de longa duração. A dose de CI utilizada em maior frequência foi de 1600 µg/d (40% dos pacientes). Neste estudo, encontramos uma boa correlação negativa entre EoP e CI.
Yii ACA e cols.19 observaram que o nível de EoP, coletado quando um paciente chega a um pronto-socorro por crise grave de asma, se correlacionava com a gravidade da insuficiência respiratória, além de prever o risco de exacerbações subsequentes. O aumento do nível de EoP estava significativamente associado à diminuição do pH arterial e ao aumento da PCO2 arterial.
Conforme consensos internacionais, o tratamento para asma grave (refratária ao tratamento), step 5 pela GINA1, inclui a adição de imunobiológicos ao tratamento convencional, corticoide inalado associado ao broncodilatador de longa duração. O imunobiológico utilizado há mais tempo no tratamento da asma grave tem como alvo a IgE total. Para o uso do omalizumabe, um anticorpo monoclonal anti-IgE, se faz necessário que o paciente tenha um diagnóstico de asma alérgica grave, além de níveis de IgE total entre 30 e 1500 UI/mL, e peso corporal entre 20 e 150 kg, parâmetros que serão utilizados para o cálculo da dose da anti-IgE, porém, esta indicação é independente do nível sérico de eosinófilos20.
Entretanto, novos medicamentos imunobiológicos surgiram como opção terapêutica para os pacientes com asma grave. Dentre eles, medicamentos que apresentam como alvos as citocinas e seus receptores em vias finais de inflamação, em especial IL-4, IL-5 e IL-13. Também o TSLP e a IL-33 têm recentemente sido estudados como alvos terapêuticos21.
Alguns anticorpos monoclonais incluem como critério de tratamento níveis de EoP entre 150 ou 300 cel/mm322-23. Nosso estudo observou que mais de 40% dos pacientes apresentavam um valor de EoP inferior a 150 cel/mm3. Fato este que pode estar relacionado ao uso de altas doses de CI. Além disso, nosso estudo encontrou uma correlação inversa, estatisticamente significante, entre os níveis de EoP e a dose de CI utilizada pelo paciente na época da realização do exame.
Devido às altas doses do CI usado na grande maioria dos pacientes dos steps 4 e 5, algumas vezes, inclusive mais altas do que a recomendação habitual, os níveis de eosinófilos séricos podem estar diminuídos; interferindo na recomendação de alguns mAbs, e excluindo assim, o uso de uma terapêutica promissora, que possibilita maior controle dos sintomas, redução do risco de exacerbações, e melhora da qualidade de vida.
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