Concentrações de vitamina D em lactentes sibilantes e crianças asmáticas: relação com a condição nutricional e o controle da doença
Vitamin D concentrations in wheezing infants and asthmatic children: relationship with nutritional status and disease control
Mirella Regina Cimino Scaff; Fabíola Isabel Suano De-Souza; Roseli Oselka Saccardo Sarni; Igor Luiz Argani; Neusa Falbo Wandalsen
Faculdade de Medicina do ABC, Departamento de Pediatria Faculdade de Medicina do ABC - Santo André, SP, Brasil
Endereço para correspondência:
Mirella Regina Cimino Scaff
E-mail: mirellacscaff@gmail.com
Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste artigo.
Fonte de financiamento: Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC).
Submetido em: 16/09/2019
Aceito em: 20/12/2019
RESUMO
INTRODUÇÃO: Deficiência de vitamina D e obesidade foram associadas a um pior controle da asma em países desenvolvidos, embora essa relação ainda não esteja devidamente estabelecida. Assim, o presente estudo visa avaliar a relação entre deficiência de vitamina D, controle da asma e a condição nutricional em crianças menores de 10 anos.
MÉTODOS: 46 crianças asmáticas menores de 10 anos foram recrutadas para esse estudo observacional transversal, realizado entre outubro de 2016 e julho de 2018. O controle da asma foi verificado de acordo com o GINA 2016. A condição nutricional foi considerada como eutrófica (Z escore -2 a +1) ou sobrepeso/obesidade (Z score > +1), de acordo com a classificação da Organização Mundial da Saúde. Valores de vitamina D < 20 ng/mL foram considerados deficiência. A análise laboratorial foi realizada pelo laboratório de análises clínicas da Faculdade de Medicina do ABC.
RESULTADOS: Não foi encontrada relação estatisticamente significante entre controle da asma e condição nutricional (p = 0,766), controle da asma e níveis de vitamina D (p = 0,880), ou níveis de vitamina D e condição nutricional (p = 0,610). Deficiência de vitamina D foi encontrada em 21,8% das crianças incluídas; 63,5% apresentavam asma não controlada; e 41,3% apresentavam sobrepeso/obesidade.
CONCLUSÕES: O presente estudo não encontrou associação entre controle da asma, níveis de vitamina D e condição nutricional, questionando a importância dessa relação em crianças com menos de 10 anos.
Descritores: Vitamina D, asma, obesidade.
INTRODUÇÃO
A asma representa uma doença crônica frequente na infância1. Sua etiologia é multifatorial1,2 e caracteriza-se por inflamação crônica das vias aéreas inferiores2, manifestando-se clinicamente com chiado, dispneia, aperto no peito e tosse, principalmente à noite e ao despertar3.
A deficiência de vitamina D corresponde a um problema crescente no mundo inteiro4,5, especialmente em indivíduos obesos6 e entre indivíduos atópicos7. Devido ao seu papel no sistema imunológico7, a deficiência da vitamina D parece relacionar-se com aumento da inflamação e das exacerbações das crises em pacientes asmáticos8.
A obesidade, como a asma, é uma condição crônica que apresenta crescente incidência e prevalência na faixa etária pediátrica9. Estudos sugerem que diversos mecanismos podem estar relacionados à piora do controle da asma devido à obesidade, resultando em quadros mais graves de sibilância e pior resposta ao tratamento10-13. Dentre esses mecanismos, estão a exacerbação da resposta inflamatória sistêmica6 com uma maior produção de mediadores pró inflamatórios14, assim como o aumento de secreção de adipocinas11, também associadas à hiper-responsividade brônquica14.
O objetivo desse estudo foi descrever os níveis séricos de vitamina D em crianças, menores de 10 anos, com asma e acompanhadas em serviço de referência, e verificar possíveis associações entre menores concentrações de vitamina D com sobrepeso/obesidade e controle da asma.
METODOLOGIA
Estudo transversal, realizado de outubro de 2016 a julho de 2018 na Faculdade de Medicina do ABC (FMABC), aprovado pelo Comite de Ética em Pesquisa sob o nª 57383416.3.
Foram incluídos pacientes de até 10 anos de idade com o diagnóstico de asma (GINA 2016)16 e lactentes sibilantes com alta probabilidade de desenvolverem asma (índice preditivo de asma modificado)17, matriculados no ambulatório de Alergia e Imunologia Clínica da FMABC. Os responsáveis foram convidados a participar do projeto por telefone ou no momento da consulta, quando todos assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), assim como as crianças alfabetizadas assinaram o termo de assentimento.
Foram excluídas as crianças que apresentavam diagnóstico duvidoso e/ou quadro infeccioso no momento das avaliações. As coletas de dados e exames laboratoriais foram realizadas no próprio ambulatório e no laboratório da FMABC, respectivamente. Utilizou-se entrevista estruturada e prontuário dos pacientes como fonte secundária de dados.
Dados coletados
– Questionário estruturado: coletadas informações demográficas, sobre a asma, medicamentos utilizados e doenças associadas. O controle da doença foi classificado de acordo com os critérios do GINA 201616, e foram considerados níveis suficientes de vitamina D valores maiores ou iguais a 20 ng/mL, de acordo com a Sociedade Brasileira de Pediatria18.
– Antropometria: crianças foram pesadas e medidas, e a partir dos dados antropométricos calculou-se os indicadores de índice de massa corporal idade (IMC) e estatura/idade (EI), na forma de escore Z, por meio do programa Anthro 4.2.3. Os pacientes foram divididos em dois grupos: grupo A, eutróficos (Z score entre -2 e +1) e grupo B, não eutróficos (Z score ≥ 1), de acordo com a classificação da Organização Mundial de Saúde (OMS)15.
– Exames laboratoriais: coletou-se, após jejum de 8 horas, 10 mL de sangue das crianças incluídas no estudo, para dosagem dos níveis séricos de vitamina D (eletroquimioluminescência), proteína C-reativa, PCR (turbidimetria), glicemia (enzimático oxidase-peroxidase), insulina (eletroquimioluminescência), HDL colesterol (enzimático-colorimétrico), VLDL colesterol (enzimático-colorimétrico), LDL colesterol (enzimático-colorimétrico), colesterol total (enzimático-colorimétrico) e triglicérides (enzimático-colorimétrico).
Análise estatística
Realizada por meio do pacote estatístico SPSS 25.0. As variáveis categóricas foram apresentadas em números absolutos e percentual, e comparadas por meio do teste do qui-quadrado. As variáveis contínuas foram avaliadas quanto a sua distribuição por meio do teste de Shapiro-Wilk, como apresentavam distribuição paramétrica, foram apresentadas na forma de média e desvio-padrão, e comparadas por meio do teste t de Student. O nível de significância adotado para todos os testes foi de 5%.
RESULTADOS
Na Tabela 1 estão apresentadas as características gerais, antropométricas e análises laboratoriais das 46 crianças incluídas no estudo, destas 27 eram eutróficas e 19 tinham sobrepeso/obesidade. A média de idade foi de 5,7±2,7 anos, e dos níveis séricos de vitamina D foi de 34,8±12,4 anos.
Quando se comparou as variáveis clínicas e laboratoriais nas crianças asmáticas com e sem sobrepeso/obesidade (Tabela 2), não se observou diferença estatisticamente significante nas concentrações de vitamina D (33,2±14,2 µg/mL vs. 27,4±8,6 µg/mL, p= 0,12). Entretanto, crianças com sobrepeso/obesidade tiveram maior valor de IMC (15,3±1,1 kg/m2 vs. 24,9±16,6 kg/m2; p < 0,001), ZIMC (-0,1±0,7 vs. 2,4±1,7; p < 0,001), triglicérides (71,7±24,8 mg/dL vs. 96,1±47,9 mg/dL; p = 0,03), VLDL-c (14,1±4,9 mg/dL vs. 19,2±9,6 mg/dL; p = 0,03), insulina (4,5 ± 3,4 mcUI/mL vs. 11,9 ± 8,7 mcUI/mL; p = 0) e glicose (80,3±8,6 mg/dL vs. 85,5±8,1 mg/dL; p = 0,04).
Não houve associação entre a condição nutricional e o controle da asma (p = 0,610) (Tabela 3). Não se observou maior frequência de deficiência de vitamina D no grupo asmático com sobrepeso/obesidade (p = 0,610) (Tabela 4) e com asma não controlada (p = 0,880) (Tabela 5).
DISCUSSÃO
Deficiência de vitamina D é uma condição altamente frequente, com prevalência de 30 a 80% conforme a população estudada19, constituindo um problema de saúde pública em todo o mundo4,19. No Brasil, de acordo com metanálise publicada em 20185, a concentração média de vitamina D na população geral, entre 2000 e 2017, foi de 67,65 nmol /L (IC95% 65,91-69,38 nmol/L), com prevalência de 28,16% (IC95% 23,90-32,40) de deficiência, e 45,26% (IC95% 35,82-54,71) de insuficiência da vitamina, e não pareceu diferir significativamente de acordo com a faixa etária investigada. Entretanto, a idade mais jovem e praticar atividades físicas ao ar livre são fatores que relacionam-se com maiores concentrações séricas de vitamina D na população brasileira5, e que poderiam justificar os altos níveis de vitamina D encontrado nas crianças do presente estudo.
Recentemente, pesquisadores têm buscado demonstrar uma associação entre obesidade e deficiência de vitamina D6, porém a importância dessa relação ainda não está bem estabelecida6. Em estudo de revisão, Walsh e cols.20 observaram que pacientes com sobrepeso/obesidade apresentam níveis séricos de vitamina D aproximadamente 20% menores do que os eutróficos, provavelmente devido à redistribuição dessa vitamina pela alteração de composição corporal (plasma, tecido adiposo, fígado e músculo), maior consumo de 1,25(OH)3D (calcitriol) pelo tecido adiposo como um fator anti-inflamatório. Apesar do que os estudos mostraram, não houve diferença significante nos níveis de vitamina D entre eutróficos e obesos (p = 0,610) nos pacientes que frequentam o ambulatório da FMABC. Visness e cols.21 e Fitzpatrick e cols.22 demonstraram que crianças e adolescentes com sobrepeso/obesidade apresentam níveis séricos de IgE maiores do que pacientes eutróficos, podendo correlacionar-se com maior gravidade dos sintomas e dificuldade do controle da doença. Desse modo, poder-se-ia pensar que o controle rigoroso do peso seria uma medida essencial para o manejo da asma. Apesar disso, não foi encontrada relação significante entre níveis séricos de IgE e obesidade na presente pesquisa (p = 0,75).
Diversos autores encontraram relação entre condição nutricional e pior controle da asma11-13, porém essa relação ainda não está bem estabelecida. Em metanálise23 que incluiu 52.147 crianças e adolescentes de 14 estudos diferentes, não foi encontrada relação entre obesidade e controle da asma, semelhantemente aos resultados aqui relatados (p = 0,76). Atualmente, a teoria mais aceita atribui o fato ao mecanismo inflamatório implicado em ambas as condições, uma vez que a obesidade está associada à expressão aumentada de múltiplos mediadores inflamatórios, resultando em um desequilíbrio entre as vias imunomoduladoras Th1 e Th26,14,24,25, favorecendo as últimas, e assim, a asma. Porém, análise de quase 18.000 crianças na Virginia24 confirmou que a prevalência de asma aumenta com o IMC, mas apenas quando este atinge a faixa de obesos e obesos mórbidos, enquanto nenhuma diferença é observada na prevalência de asma entre crianças com sobrepeso e eutróficas, sugerindo a existência de um limiar a partir do qual o desarranjo metabólico começaria a prejudicar a função das vias aéreas24. No presente estudo, apenas 7 das 19 crianças do grupo sobrepeso/obesidade eram obesas ou tinham obesidade grave, estando a maioria abaixo desse limiar e por isso, talvez, a relação procurada não tenha sido encontrada.
O estudo acima referido concluiu, ainda, que a asma está diretamente associada a níveis séricos elevados de triglicérides e à resistência à insulina, independentemente do IMC24. Morishita e cols., em um estudo com 92 crianças também encontraram relação entre pior controle da asma e resistência à insulina25. Assim, a dislipidemia e a hiperinsulinemia, sabidamente associadas à doenças cardiovasculares e diabetes, também podem estar associadas ao desenvolvimento de asma, e terem sua ligação epidemiológica confundida com a obesidade24. Nesta amostra, apenas uma criança apresentou hiperinsulinemia e, das 10 que apresentaram hipertrigliceridemia, 7 não tinham a doença controlada, embora não tenha sido realizada análise estatística desses dados para uma afirmação mais consistente dessa relação.
Quanto a controle da asma e níveis de vitamina D, revisões recentes sugeriram que a deficiência desta vitamina poderia estar relacionada a pior controle da asma26-28, porém em metanálise realizada por Luo e cols.29 (2015), analisando 7 estudos clínicos e 903 pacientes, não foi encontrada associação entre suplementação de vitamina D e melhor controle da doença. Esse achado corrobora o registrado neste estudo, no qual níveis de vitamina D não foram associados a controle da asma (p = 0,88).
Sabe-se que o perfil lipídico, a insulina e a glicose de pacientes com sobrepeso e obesidade são maiores do que os da população eutrófica30. No presente estudo, pacientes com obesidade/sobrepeso apresentaram valores maiores de triglicérides, VLDL colesterol, insulina e glicose (p < 0,05), porém o mesmo não ocorreu com relação ao colesterol total, HDL colesterol e LDL colesterol.
Diversos estudos estão surgindo, e apesar de vários demonstrarem relação entre controle da asma, níveis de vitamina D e condição nutricional, estas não foram encontradas na presente pesquisa, questionando a importância dessa relação em crianças com menos de 10 anos. Em parte, os resultados aqui apresentados poderiam ser decorrentes do tamanho limitado da amostra e dos altos valores encontrados de vitamina D, justificando um aprofundamento da investigação na população pediátrica, para a obtenção de análises mais consistentes, que levem ao esclarecimento dessas associações.
AGRADECIMENTOS
Ao MEC e, posteriormente, à Faculdade de Medicina do ABC pela bolsa de Iniciação Científica. À equipe do Setor de Alergia e Imunologia Clínica, Departamento de Pediatria, Centro Universitário Saúde ABC - Faculdade de Medicina do ABC, e ao Prof. Dr. Fernando Luiz Affonso Fonseca, coordenador do Laboratório de Análises Clínicas da Faculdade de Medicina do ABC, fundamentais para a realização desse trabalho.
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