O pediatra e a hesitação vacinal
The pediatrician and vaccine hesitancy
Isabella Ballalai
Pediatra, presidente do Instituto Ciesa, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), membro do Comitê Consultivo Brasileiro de Imunizações (DPNI- MHO), membro do Comitê Consultivo Brasileiro de Emergências em Saúde Pública (DEMSP-MHO), presidente do Departamento Científico de Imunização da Sociedade de Pediatria do Rio de Janeiro (SOPERJ)
A evolução das coberturas vacinais no Brasil pode ser compreendida em três fases históricas distintas, fundamentais para enfrentar a hesitação vacinal1. Essa análise deve considerar o papel das heurísticas e dos vieses cognitivos no processo de decisão, mecanismos que, ao longo da evolução humana, permitiram respostas rápidas a ameaças. No contexto da vacinação, tais mecanismos, mediados por emoções, podem tanto favorecer a adesão quanto alimentar a resistência2.
A análise histórica das coberturas vacinais no Brasil revela padrões distintos de comportamento da população frente à imunização, que podem ser agrupados em três etapas principais.
Fase 1 - Alta confiança e engajamento (até meados da década de 1990): marcada por elevada percepção de risco das doenças imunopreveníveis e memória coletiva de epidemias, a vacinação era vista como dever cívico e ato de proteção coletiva. A adesão era espontânea, massiva e impulsionada por campanhas amplas, com forte credibilidade institucional.
Fase 2 - Manutenção com sinais de saturação (meados de 1990 a meados de 2013): a redução da incidência de várias doenças diminuiu a percepção de risco, embora as coberturas se mantivessem elevadas. A motivação vacinal passou a depender de mobilização ativa e busca de faltosos, com a vacinação deixando de ser prioridade automática para alguns grupos.
Fase 3 - Declínio e emergência da hesitação (meados de 2015 em diante): caracterizada por queda sustentada nas coberturas, impulsionada por múltiplos fatores, incluindo baixa percepção de risco, erosão da confiança institucional, desinformação e barreiras de acesso. O comportamento vacinal tornouse mais seletivo e vulnerável à influência de informações equivocadas. Portanto, a hesitação vacinal não se resume à desinformação (fake news), trata-se de um comportamento complexo.
Como está hoje a confiança da população brasileira nas vacinas?
No Brasil, o levantamento realizado no Estudo Quantitativo sobre Conscientização Vacinal, publicado em junho de 2024, mostra que a confiança da população brasileira nas vacinas ainda é majoritária, mas não unânime. Sete em cada dez entrevistados (72%) afirmam confiar nas vacinas, sendo que 33% confiam muito. Em contrapartida, 26% dizem confiar pouco, e 8% não confiam, revelando a persistência de uma parcela cética. Quanto à percepção de importância, o consenso é ainda mais forte: 90% consideram as vacinas importantes para a saúde pessoal, familiar e comunitária (57% "muito importantes", e 33% "importantes"). Apenas 8% julgam as vacinas pouco ou nada importantes. O estudo também investigou sentimentos de insegurança. Mais de um quarto dos entrevistados (27%) já sentiu medo de se vacinar ou de levar uma criança/adolescente para vacinar, índice que reforça a necessidade de estratégias de acolhimento e comunicação empática. A confiança na segurança e eficácia das vacinas permanece alta. Oitenta por cento (80%) considera as vacinas seguras - 51% "muito seguras" e 29% "moderadamente seguras" -, enquanto apenas 19% têm opinião contrária. Já em relação à eficácia, 86% acredita que as vacinas funcionam na prevenção de doenças (58% "muito eficazes" e 28% "moderadamente eficazes"). Apenas 11% têm percepção negativa, classificando-as como pouco ou nada eficazes3.
Em síntese, os dados reforçam que a maioria da população valoriza a vacinação como instrumento essencial de saúde pública. No entanto, a presença de dúvidas, medos e resistência entre uma parte significativa dos brasileiros evidencia o desafio contínuo de fortalecer a confiança por meio de informação clara, acesso facilitado e comunicação baseada em empatia.
Somos "irracionais" por natureza e dependemos fortemente de influências afetivas na tomada de decisões em tempo real. A percepção de risco refere-se às crenças, atitudes, julgamentos e sentimentos das pessoas em relação ao risco. As pessoas avaliam subjetivamente a probabilidade e a gravidade de perigos potenciais em uma determinada situação4.
E como age o médico antivacinista? Ele costuma basear suas falas na ética da convicção, e não na da responsabilidade; utiliza sua autoridade profissional para validar informações distorcidas ou sem fundamento, o que transmite ao paciente uma falsa sensação de segurança; sua estratégia é frequentemente pautada na disseminação de dúvidas, mostrando-se aparentemente preocupado; para reforçar seu discurso, recorre a estudos já retratados ou de baixa qualidade, apresentados como "verdades escondidas" que ninguém teria coragem de revelar4,5. No entanto, esse médico ignora princípios fundamentais de saúde pública, como a precaução e a solidariedade, minimizando doenças graves ao afirmar que "a doença é leve" ou que "todos já tiveram e sobreviveram". Sua comunicação é envolta em empatia percebida - ele escuta longamente, valida dúvidas e evita o confronto direto, o que o torna visto como humano, independente e corajoso. Além disso, utiliza uma linguagem emocional, acessível a leigos, contando histórias de relatos pessoais, crenças e experiências do paciente. Por fim, reforça a "autonomia individual" acima da saúde coletiva, confirmando e até fortalecendo as dúvidas trazidas pela família: "você está certo em questionar"4.
Diante desse cenário, cabe ao pediatra adotar uma postura estratégica com famílias hesitantes. Ao invés de desqualificar o discurso antivacinista de forma direta, o profissional deve escutar ativamente, demonstrar empatia genuína e, a partir disso, oferecer informações claras, baseadas em evidências científicas, em linguagem acessível e, principalmente, contando histórias reais de proteção e exemplos de vidas salvas que possam transformar os dados técnicos em uma experiência entendida pela família5.
É preciso entender o comportamento humano (nosso também). Processamos os riscos de forma instintiva, quase automática, como se fosse um "instinto" natural, respondendo a eles por meio de sentimentos e emoções. Essa reação acontece em tempo integral, e a forma como nos sentimos em relação ao risco costuma ter mais peso do que o que pensamos racionalmente sobre ele. Além disso, buscamos sempre a facilidade: quando um benefício antecipado se sobrepõe aos custos percebidos, ten-demos a escolher os riscos para alcançar conforto, comodidade e conveniência.
Outro fator determinante é o imediatismo, já que damos mais valor a benefícios certos e imediatos do que a custos distantes ou incertos. Nossas experiências passadas também moldam fortemente a maneira como percebemos os riscos, influenciando nossa confiança ou receio em situações futuras. Por fim, grande parte de nossas decisões ocorre no "piloto automático" - somos seres de hábitos e, muitas vezes, agimos guiados pela intuição e por emoções impulsivas, que orientam nossa tomada de decisão diante de diferentes circunstâncias5. Portanto, a comunicação deve equilibrar acolhimento com informação de qualidade; escuta ativa e empatia são fundamentais. Para isso, nada como uma boa história. Contar sua experiência é uma das estratégias mais emotivas e assertivas que pode ser usada para personalizar informações médicas e motivar os pacientes. Comparadas às informações científicas, as histórias relatam lições de vida e valores. Elas são eficazes porque são memoráveis e relacionáveis6.
Em resumo, diante de uma dúvida ou recusa vacinal:
- acolha a família e diga que entende a preocupação dela;
- não ataque as fake news; para quem as segue, são médicos como você;
- não insista em apresentar dados epidemiológicos, a maioria das pessoas não se vê nesses números;
- conte uma história.
REFERÊNCIAS
1. Homma A, Maia MLS, Azevedo ICA, Figueiredo IL, Gomes LB, Pereira CVC, et al. Pela reconquista das altas coberturas vacinais. Cad Saude Publica. 2023;39(3):e00240022. doi: 10.1590/0102311XPT240022.
2. Simione L, Vagni M, Maiorano T, Giostra V, Pajardi D. How Implicit Attitudes toward Vaccination Affect Vaccine Hesitancy and Behaviour: Developing and Validating the V-IRAP.Int J Environ Res Public Health. 2022 Apr 1;19(7):4205. doi: 10.3390/ijerph19074205.
3. Conselho Nacional do Ministério Público, Universidade Santo Amaro (Unisa).Estudo Quantitativo sobre Conscientização Vacinal [Internet]. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/images/noticias/2024/Junho/Relat%C3%B3rio_Estudo_Quantitativo_ sobre_Consci%C3%AAncia_Vacinal_no_Brasil_-_2024_junho. pdf. Acessado em: 16/08/2025.
4. da Silva Dantas JM, Pacífico FA. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. An Fac Med Olinda. 2022;7(1):53-4. doi:10.56102/afmo.2022.186.
5. Goldenberg MJ.Vaccine Hesitancy:Public Trust, Expertise, and the War on Science.University of Pittsburgh Press, 2021.doi:10.2307/j. ctv1ghv4s4.
6. Cunningham RM, Boom JA. Telling stories of vaccine-preventable diseases: why it works. S D Med. 2013;Spec no:21-6. PMID: 23444587.