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Número Atual:  Janeiro-Março 2018 - Volume 2  - Número 1


Comunicação Clínica e Experimental

Endomiocardite de Loeffler - manifestação cardíaca da síndrome hipereosinofílica: relato de caso

Loeffler's endomyocarditis - cardiac manifestation of hypereosinophilic syndrome: case report

Joao Paulo de Assis; Raísa Borges de Castro; Carolina T. Alcantara; Jorge Kalil; Clóvis E. S. Galvao


Hospital das Clínicas - Faculdade de Medicina da Universidade de Sao Paulo, Serviço de Imunologia Clínica e Alergia - Sao Paulo, SP, Brasil


Endereço para correspondência:

Clóvis E. S. Galvao
E-mail: clovis.galvao@hc.fm.usp.br


Submetido em 19/02/2018
Aceito em: 10/03/2018.

Nao foram declarados conflitos de interesse associados à publicaçao deste artigo.

RESUMO

INTRODUÇAO: A síndrome hipereosinofílica é caracterizada por uma produçao aumentada e contínua de eosinófilos e pode levar a lesoes teciduais em múltiplos órgaos, como consequência da infiltraçao eosinofílica. Os pacientes apresentam eosinofilia absoluta no sangue periférico (> 1.500 eosinófilos/mm3) sem uma causa primária de eosinofilia. A manifestaçao cardíaca desta síndrome geralmente se apresenta como endomiocardite de Loeffler, que constitui uma miocardiopatia restritiva primária resultante da infiltraçao de eosinófilos no tecido cardíaco.
DESCRIÇAO DO CASO: Relatamos o caso raro de uma paciente de 64 anos com eosinofilia a esclarecer e comprometimento cardíaco, que teve o diagnóstico estabelecido a partir de exames de imagem.
COMENTARIOS: Enfatizamos os aspectos clínicos e evolutivos, ressaltando as dificuldades diagnósticas e a importância da investigaçao de eosinofilias persistentes sem causa aparente, uma vez que o diagnóstico e tratamento precoce podem proporcionar melhores taxas de sobrevida e prognóstico nestes pacientes.

Descritores: Síndrome hipereosinofílica, endocardite, diagnóstico.




INTRODUÇAO

A síndrome hipereosinofílica (SHE) é uma desordem mieloproliferativa rara, que é caracterizada por uma contínua produçao de eosinófilos. Pode acarretar lesoes em múltiplos órgaos, incluindo o coraçao, como consequência da infiltraçao eosinofílica e por elevada eosinofilia absoluta no sangue periférico (> 1.500 eosinófilos/mm3) sem uma causa primária de eosinofilia1-5.

A manifestaçao cardíaca desta síndrome geralmente se apresenta como endomiocardite de Loeffler, que representa uma miocardiopatia restritiva primária resultante da infiltraçao de eosinófilos no tecido cardíaco6-7. É caracterizada por espessamento fibroso do endocárdio de um ou ambos os ventrículos, levando a uma obliteraçao apical que resulta em complicaçoes cardiovasculares múltiplas. O tratamento é direcionado para a etiologia da hipereosinofilia, mas que na maioria das vezes permanece desconhecida8.

Neste artigo discutiremos um caso típico de SHE com comprometimento cardíaco, enfatizando seus aspectos clínicos e evolutivos, ressaltando a importância da investigaçao de eosinofilias persistentes sem causa aparente.

 

RELATO DO CASO

Paciente do sexo feminino, 64 anos na época do diagnóstico, previamente tabagista (54 anos/maço) e etilista social. Iniciou o quadro com perda ponderal (7 Kg em 1 mês) acompanhada de fraqueza muscular, inapetência, dor em membros inferiores e tosse seca. Associado ao quadro apresentava aumento do volume de regiao cervical, bilateral, indolor, que melhorou espontaneamente após 45 dias. Procurou Unidade Básica de Saúde onde foi solicitado hemograma, que evidenciou naquele momento eosinofilia de 2314/mm3 (26% - VN: 1-5%). Foi entao encaminhada ao ambulatório do Serviço de Imunologia Clínica e Alergia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Sao Paulo, para avaliaçao.

Na consulta ambulatorial, paciente mantinha os sintomas inespecíficos e relatava dor abdominal de moderada intensidade associada a aumento do volume abdominal, que havia se iniciado há cerca de 1 mês. Referia também dispneia aos mínimos esforços, com episódios mesmo em repouso, dispneia paroxística noturna e ortopneia iniciadas há 15 dias. Indicada internaçao hospitalar para estabilizar o quadro clínico e iniciar investigaçao diagnóstica. No exame físico de admissao, paciente se apresentava em regular estado geral, sem outras alteraçoes na ectoscopia. A ausculta cardíaca estava normal, e a ausculta pulmonar evidenciava estertores crepitantes em ambas as bases. No exame do abdome, apresentava hepatomegalia (fígado a 4 cm do rebordo costal direito) associada a dor a palpaçao do mesmo local, com edema moderado de ambos os membros inferiores. O restante do exame nao mostrava alteraçoes significativas.

Iniciou-se a investigaçao laboratorial com novo hemograma para se confirmar a eosinofilia. Esta se mantinha no novo exame: 1253/mm3 (15%). Solicitado sorologias, cujo resultado foi negativo, e exames de fezes a fim de se investigar parasitoses, que também foi totalmente negativo. Imunoglobulinas eram normais, exceto por IgE de 4.610 KU/L. Funçao tireoideana, hepática e renal eram normais. Prosseguiu-se a investigaçao com exames de imagem. Devido ao quadro prévio de aumento do volume de regiao cervical, foi solicitada ultrassonografia (USG) da mesma regiao, que evidenciou glândula tireoide de volume normal e ecotextura difusamente heterogênea, sem outros achados. Devido ao quadro aumento do volume abdominal, foi solicitado USG de abdome, que demonstrou hepatoesplenomegalia e pequena quantidade de líquido em cavidade abdominal. Por paciente apresentar edema de membros inferiores e dispneia importante, optou-se por solicitar ecocardiograma e tomografia computadorizada de tórax, a fim de se fazer diagnóstico diferencial entre causas cardíacas e pulmonares para tais sintomas. O ecocardiograma evidenciou dilataçao importante do átrio direito, com abaulamento do septo atrial em direçao ao átrio esquerdo. Havia sinais de obliteraçao dos ápices ventriculares por componente infiltrativo, o que sugeria a síndrome de Loeffler. Havia também sinais de sobrecarga de volume do ventrículo direito. Já a tomografia de tórax mostrava enfisema centro lobular e parasseptal, que era mais evidente nos campos pulmonares superiores. Apresentava, ainda, alteraçoes morfológicas cardíacas, caracterizadas por aumento do volume do átrio direito e áreas de espessamento hipoatenuante nas porçoes apicais dos ventrículos, especialmente do ventrículo direito, o que também poderia corresponder a endocardite de Loeffler, com diagnóstico diferencial de endocardiomiofibrose. Neste momento, foi introduzido tratamento para insuficiência cardíaca, com diurético e restriçao hídrica no primeiro momento, porém paciente evolui com piora da dispneia e períodos de confusao mental, sendo entao transferida para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI).

Frente ao resultado dos exames de imagem e a eosinofilia em sangue periférico mantida nos dias subsequentes, foi solicitada avaliaçao da equipe de Hematologia, devido a possibilidade de neoplasia maligna hematológica (eosinofilia associada a esplenomegalia e perda ponderal), e da equipe de Cardiologia do mesmo serviço.

Após avaliaçao da Hematologia foi descartada, naquele momento, a possibilidade de mieloproliferaçao, já que, apesar da paciente apresentar eosinofilia com as causas secundárias descartadas e com níveis variando entre 850 a 3.000 eosinófilos/mm3, esta nao era sustentada por mais de 6 meses e com níveis superiores a 1.500 eosinófilos/mm3. Logo em seguida, a paciente foi avaliada pela Cardiologia, que otimizou o tratamento da insuficiência cardíaca, associando Diltiazen e Digoxina à prescriçao e, em discussao conjunta com a equipe da Imunologia, solicitou ressonância nuclear magnética (RNM) cardíaca para complementaçao diagnóstica.

Procedeu-se a realizaçao da RNM, que evidenciou dilataçao do átrio direito, ventrículos com dimensoes reduzidas associado à disfunçao sistólica discreta do ventrículo direito e disfunçao diastólica biventricular. Via-se fibrose miocárdica apical biventricular, estendendo-se para os músculos papilares e aparelhos subvalvares. Insuficiência tricúspide e mitral era notada. O exame compatível com o diagnóstico de síndrome de Loeffler.

Paciente evoluiu com melhora importante do quadro, sendo novamente transferida para a enfermaria. Devido à estabilidade dos sintomas, optou-se por nao iniciar corticoterapia e manter tratamento para insuficiência cardíaca diastólica. Paciente recebeu alta com acompanhamento ambulatorial na Imunologia e na Cardiologia.

Após este episódio, onde foi diagnosticada a causa da doença cardíaca, a paciente foi internada por mais duas vezes. Na última internaçao, a paciente apresentou grave desconforto respiratório, que evoluiu com parada cardiorrespiratória refratária às medidas terapêuticas realizadas, evoluindo para óbito.

 

DISCUSSAO

A síndrome hipereosinofílica (SHE) é caracterizada por uma elevaçao persistente da contagem absoluta dos eosinófilos para 1.500/mm3 ou superior, como mostrado no caso, por um período de pelo menos 6 meses. A causa que desencadeia a eosinofilia pode nao ser encontrada, o que define a SHE como idiopática. Já as causas secundárias abrangem as infecçoes (principalmente parasitas e helmintos), distúrbios alérgicos, medicamentos, doenças autoimunes, endocrinopatias e doenças malignas metastáticas. Também pode estar envolvida na fisiopatologia da SHE a causa clonal que inclui as leucemias agudas, disfunçoes crônicas mieloides e doenças mieloproliferativas. As causas secundárias foram excluídas na paciente descrita8.

É uma doença rara, estimando-se a sua prevalência ao redor de 5.000 casos nos Estados Unidos9. Alguns estudos evidenciam uma prevalência maior em homens do que em mulheres, com uma relaçao de 9:1, mas a razao pela qual essa doença atinge mais o sexo masculino em relaçao ao feminino é desconhecida. A média de idade dos pacientes acometidos está em torno de 50 anos, compatível com a nossa paciente10-13.

Esta síndrome está associada a lesoes de órgaos-alvo mediadas pelos eosinófilos e o acometimento mais frequente na SHE é a hematológica, seguida por problemas cardiovasculares, cutâneos, neurológicos, pulmonares, hepáticos, oculares e gastrointestinais14-17, e o envolvimento cardíaco é a manifestaçao extra-hematológica mais comum da SHE, podendo ocorrer em 50-60% dos casos e está essencialmente confinado às regioes de clima temperado, e também possui uma predileçao para o sexo masculino. O presente caso, uma mulher que é residente em uma regiao tropical, representa uma apresentaçao incomum dessa rara doença18.

A doença endomiocárdica de Loeffler é o exemplo do acometimento cardíaco. Os eosinófilos podem sobreviver no tecido cardíaco durante semanas e a desgranulaçao destas células é a responsável pelo dano tóxico. As toxinas liberadas pelos eosinófilos incluem neurotoxina derivadas de eosinófilos, proteína catiônica, proteína básica principal, e as espécies reativas de oxigênio. Essa cascata inflamatória gera lesoes que evoluem de um modo sequencial. A primeira fase consiste na lesao endocárdica e infiltraçao do miocárdio por eosinófilos e linfócitos, culminando com necrose aguda, que quando envolve o aparelho valvar pode se manifestar como regurgitaçao, envolvendo as válvulas mitral e tricúspide secundárias devido a intensas alteraçoes inflamatórias dentro do endocárdio e disfunçao do músculo papilar. Nesta fase apenas a biópsia endomiocárdica pode confirmar a necrose2,19. A seguir, um estádio com formaçao de trombos murais pode se desenvolver, resultando em manifestaçoes cardioembólicas19,20. E finalmente surge a fibrose endomiocárdica, resultando numa cardiomiopatia restritiva2,19,21.

O quadro clínico é caracterizado por uma lenta e progressiva insuficiência cardíaca, devido ao componente restritivo, causado pela fibrose e obliteraçao das cavidades ventriculares. As manifestaçoes incluem: dispneia, dor torácica, sinais de insuficiência cardíaca direita ou esquerda, como edema de membros inferiores que a paciente apresentava. Outras complicaçoes incluem a ocorrência de episódios de fibrilaçao atrial, fenômenos tromboembólicos ou cardite aguda2,8.

A ecocardiografia é ainda a principal forma de imagem para o diagnóstico e seguimento dos pacientes acometidos. O padrao ecocardiográfico característico da endocardite de Loeffler inclui um padrao restritivo de enchimento com funçao sistólica relativamente preservada. Também pode ser encontrado: espessamento da parede do ventrículo esquerdo posterio-basal, movimento restrito do folheto posterior da válvula mitral, obliteraçao apical de um ou ambos os ventrículos, e contraçao hiperdinâmica das paredes ventriculares poupadas com alargamento atrial bilateral. A paciente do caso apresentava no ecocardiograma sinais sugestivos de insuficiência de valvas tricúspide e mitral e sinais de obliteraçao dos ápices ventriculares por componente infiltrativo, que levantaram a suspeita diagnóstica de Síndrome de Loeffler22.

Outros métodos que podem ser usados no diagnóstico do comprometimento cardíaco sao o cateterismo cardíaco, que pode revelar pressoes de enchimento ventricular elevadas e presença de regurgitaçao mitral ou tricúspide, e a ressonância magnética cardíaca (RMC), que permite identificar com precisao as regioes de fibrose miocárdica, e pode ser útil no diagnóstico quando há suspeita de trombo ventricular. A paciente do caso apresentava fibrose miocárdica apical biventricular, estendendo-se para os músculos papilares e aparelhos subvalvares. A biópsia percutânea endomiocárdica também pode ser utilizada, porém como a doença pode nao afetar todo o tecido de forma regular, os resultados podem ser inconsistentes8.

A abordagem terapêutica consiste em medidas que visam a normalizaçao da eosinofilia periférica, já que o dano cardíaco é secundário à toxicidade relacionada à desgranulaçao dos eosinófilos. Esse objetivo pode ser alcançado com a corticoterapia. A hidroxiureia e interferon-α sao uma abordagem terapêutica alternativa23 e o Imatinib pode ser considerado uma opçao bastante eficaz no controle da eosinofilia24. Quanto à terapêutica da insuficiência cardíaca, tem-se proposto o tratamento habitual, semelhante a outras formas de falência cardíaca6.

O prognóstico da doença tem melhorado ao longo dos tempos, provavelmente pelos avanços diagnósticos e terapêuticos, porém a mortalidade ainda é alta: 42%. Os fatores de pior prognóstico sao: pouca ou nenhuma resposta ao corticoide, cardiopatia, sexo masculino e intensidade da eosinofilia19,25.

Diante do exposto, é importante alertar a necessidade de investigar as eosinofilias persistentes. O envolvimento cardíaco no SHE pode ter manifestaçoes variáveis, por vezes colocando dificuldades diagnósticas. A evoluçao clínica da miocardite eosinofílica pode também ser bastante variada e, por vezes com quadros clínicos de grande gravidade. É necessário um acompanhamento regular e cuidadoso, mantendo um elevado índice de suspeiçao para qualquer nova lesao orgânica e eventuais complicaçoes. O diagnóstico e tratamento precoces podem proporcionar melhores taxas de sobrevida e prognóstico nestes pacientes.

 

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