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Número Atual:  Abril-Junho 2024 - Volume 8  - Número 2


Comunicação Clínica e Experimental

Uso do icatibanto em gestante com AEH-FXII: relato de caso

Icatibant in a pregnant woman with HAE-FXII: a case report

Caroline Rosa Emergente Coutinho1; Daniel Carlos Santos Macedo1; Erika P. Souza1; Larissa Oliveira F. Silva Lima1; Adriana Santos Moreno2; Marina M. Dias2; Luisa Karla Arruda2; Eli Mansour1


1. Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Imunologia Clínica e Alergia, Departamento de Clinica Médica, Faculdade de Ciências Médicas - Campinas, SP, Brasil
2. Universidade de São Paulo, Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - Ribeirão Preto, SP, Brasil


Endereço para correspondência:

Caroline Rosa Emergente Coutinho
E-mail: c.rosacoutinho@gmail.com


Submetido em: 25/04/2024
Aceito em: 30/06/2024.

Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste artigo.

RESUMO

O angioedema hereditário (AEH) por variantes patogênicas no gene que codifica o Fator XII da coagulação (AEHFXII) é o tipo mais comum de AEH com inibidor de C1 normal (AEH-nC1NH). O AEH-FXII é altamente influenciado pela exposição ao estrogênio. Pacientes com esta condição tendem a ter piora do angioedema em períodos de elevação deste hormônio, como na gestação. Atualmente, não há tratamentos específicos aprovados para o manejo do AEH-FXII, e durante a gravidez o tratamento pode ser ainda mais desafiador, visto que os medicamentos recomendados como primeira linha nem sempre estão disponíveis. Neste relato, descrevemos o caso de uma gestante portadora de AEH-FXII que recebeu icatibanto em dose única durante crise de angioedema de vias aéreas superiores no terceiro trimestre, com desfecho favorável para a paciente e para o feto.

Descritores: Angioedema hereditário, antagonistas de receptor B2 da bradicinina, gravidez, fator XII.




Introdução

O angioedema hereditário (AEH) é uma doença genética rara, de herança autossômica dominante, que se manifesta por crises recorrentes e imprevisíveis de angioedema (AE) em subcutâneo e mucosas. O acometimento do trato gastrointestinal resulta em crises de dor abdominal intensa e potenciais intervenções cirúrgicas desnecessárias. A morte por asfixia devido a edema de vias aéreas superiores é o evento mais temido, e mais de 60% dos pacientes com AEH relatam ao menos um evento de AE de laringe. Variantes em SERPING1, o gene que codifica o Inibidor de C1 (C1-INH) resultam no AEH com deficiência do C1-INH (AEH-C1INH) que pode ser do tipo 1, quando ocorre deficiência quantitativa do C1-INH, ou do tipo 2, quando o defeito do C1-INH é funcional. AEH com C1-INH normal (AEH-nC1INH) está associado a variantes em outros genes, com sete tipos descritos atualmente. Em uma proporção de pacientes com AEH, nenhum defeito genético foi identificado, portanto parte dos portadores tem causa desconhecida. O AEH-nC1INH é considerado mais raro que o AEH-C1INH, sendo a causa mais comum a presença de variantes no gene F12. O AEH-FXII também tem herança autossômica dominante1­3.

O C1-INH inibe, em diferentes pontos, os sistemas de contato e calicreína-cininas. A ausência ou disfunção deste inibidor resulta num sistema em cascatas de ativação desinibida e a liberação final de bradicinina (BK). A liberação da BK resulta no aumento da permeabilidade vascular e no AE, pela sua ligação ao seu receptor B2 (BDKRB2). A ativação dos sistemas de contato e calicreína-cininas é iniciada com a conversão do FXII na sua forma ativa, FXIIa. O FXIIa cliva a pré-calicreína em calicreína e esta induz a liberação da BK a partir do cininogênio de alto peso molecular. No AEH-FXII, o FXII está mais sensível à ativação pela plasmina. Além do AEH-FXII, outras formas de AEH-nC1INH também são mediados pela BK, mas algumas formas do AEH-nC1INH são devido a uma maior fragilidade vascular, como é o caso do AEH-nC1INH por variante no ANGPT1, o gene da angiopoietina 1 (AEH-ANGPT1)1,2,4.

Tratamentos eficazes estão aprovados para crise e para profilaxia de curto e longo prazo apenas para pacientes com AEH-C1INH. Em nosso meio, os medicamentos de primeira linha para o manejo das crises são o inibidor do BDKRB2, o icatibanto subcutâneo (SC), e o concentrado de C1-INH derivado de plasma humano endovenoso (pdC1-INH), enquanto o plasma fresco congelado é terapia de segunda linha e deve ser usado apenas por via endovenosa (EV), na ausência das terapias de primeira linha já citadas. A profilaxia de curto prazo é realizada com pdC1-INH EV como primeira linha, ou andrógenos atenuados como danazol e oxandrolona, sendo estes de segunda linha. O tratamento de primeira linha para a profilaxia de longo prazo, embora de difícil acesso, é com pdC1-INH EV, pdC1-INH subcutâneo (SC), lanadelumabe SC e berotralstat oral. Estes dois últimos são inibidores da calicreína. Pela disponibilidade limitada de terapias de primeira linha para profilaxia de crises, os andrógenos atenuados e o ácido tranexâmico, que são opções de segunda linha, ainda são comumente usados2,5­7.

Até o momento, nenhum tratamento específico foi aprovado para o AEH-FXII e as estratégias terapêuticas atuais se baseiam nos tratamentos que demonstraram ser eficazes em pacientes com AEH-C1INH8. O manejo dos pacientes com AEH-FXII também inclui a interrupção de potenciais fatores desencadeantes, como os anticoncepcionais contendo estrogênio, a terapia de reposição hormonal e os inibidores da enzima conversora da angiotensina (iECA)9,10.

O planejamento correto da gravidez em pacientes com AEH é importante para minimizar riscos à gestante e ao feto. Durante a gestação, mudanças na gravidade e na frequência das crises são imprevisíveis, podendo diminuir ou aumentar. Nas pacientes com AEH-FXII, os sintomas costumam piorar em condições de hiperestrogenismo, como a gestação. As crises de angioedema em gestantes costumam acometer principalmente o abdômen e as extremidades. Crises afetando as vias aéreas são menos frequentes, mas devem ser tratadas com urgência e preferencialmente com o pdC1-INH11,12.

O icatibanto é um medicamento cuja segurança na gestação é desconhecida. Mesmo assim, pode ser utilizado em gestantes quando o pdC1-INH não está disponível ou quando a ação deste último é duvidosa para determinada paciente. Por razões éticas, não existem estudos controlados e randomizados sobre o uso destes medicamentos para o tratamento das crises de AEH na gestação. Porém, diversos estudos observacionais têm demonstrado eficácia e segurança do icatibanto para tratar as crises durante a gravidez. Portanto, até que mais dados estejam disponíveis, o uso do icatibanto durante a gestação não é recomendado como primeira opção, mas pode ser considerado na ausência da medicação de primeira linha, quando os benefícios superarem os riscos13­15.

 

Relato de caso

Paciente do sexo feminino apresentava crises frequentes de dor abdominal de forte intensidade desde a infância, que pioraram aos 22 anos de idade. Além das manifestações abdominais, apresentava angioedema de extremidades e face. Inicialmente os episódios recorriam a cada 2 a 3 meses, em associação a traumas ou espontaneamente. A piora na gravidade dos sintomas coincidiu com o início do uso de anticoncepcional combinado. Com 24 anos foi diagnosticada com angioedema hereditário com variante patogênica em F12 (AEH-FXII). Os exames laboratoriais da ocasião revelaram valores normais de C4 e C1-INH (Tabela 1), e no teste genético foi encontrada a variante patogênica no exon 9 do gene F12, p.Thr328Lys (c.983C>A) em heterozigose. A história familiar é negativa, porém o pai, assintomático, é portador da mesma variante.

 

 

Com o diagnóstico de AEH-FXII o uso do anticoncepcional combinado contendo estrogênio foi suspenso e, como a paciente não tinha desejo de engravidar na ocasião, permaneceu em uso de anticoncepcional contendo apenas progesterona. Com esta conduta, a paciente permaneceu aproximadamente 10 anos completamente assintomática.

Com a intenção de engravidar, a paciente interrompeu a contracepção e aos 34 anos teve sua primeira gestação. Com 12 semanas de gestação, as crises recomeçaram e aumentaram em gravidade e frequência ao longo do tempo. O acesso a pdC1-INH foi negado, e foi então indicado tratamento profilático com ácido tranexâmico 500 mg/dia, com controle parcial e insatisfatório dos sintomas. Doses superiores a 500 mg/dia não foram toleradas por sintomas gástricos.

Com 30 semanas de gestação, apresentou uma crise de angioedema em orofaringe (Figura 1), sem outros sintomas associados. Devido ao risco de progressão e potencial obstrução das vias aéreas superiores e pela indisponibilidade do pdC1-INH, de primeira linha na gestação, foi optado por realizar o tratamento da crise com icatibanto SC, na dose de 30 mg, com a concordância da paciente após informações sobre riscos e benefícios. A escolha pelo icatibanto se deveu ao fato de que este medicamento estava disponível com a paciente para uso, desde o diagnóstico, previamente à gestação. O medicamento foi administrado após cerca de 4 horas do início da crise, com melhora referida após 2 horas e resolução completa após 10 horas da administração. A paciente não apresentou nenhum evento adverso local ou sistêmico, imediato ou tardio. O parto ocorreu com 35 semanas e 2 dias de gestação, por sangramento secundário à placenta prévia centro total que já havia sido diagnosticada no início da gestação. O parto e o pós-parto foram livres de eventos, tanto para a mãe quanto para o recém-nascido.

 

 

Discussão

Gestantes com AEH podem ter uma piora considerável na frequência e na gravidade de sua doença. A exposição ao estrogênio, endógeno ou exógeno, tem influência tanto sobre as pacientes com AEH-C1INH tipos I e II, quanto nos portadores de AEH-FXII, porém ainda não se entende completamente esta relação. O AEH-FXII já foi considerado estrogênio-dependente, visto que algumas pacientes portadoras de variantes patogênicas em F12 só passam a ter manifestações clínicas diante da exposição a este hormônio, como durante a gestação ou uso de anticoncepcionais que contenham estrogênio. Este hormônio pode agir em várias etapas da ativação em cascata dos sistemas de contato e calicreína-cininas, tanto em nível genômico quanto por vários receptores de membrana endoteliais. Entre os efeitos observados, estimula a liberação de algumas citocinas e da proteína do choque térmico, a Hsp90, que são capazes de atuar nas células endoteliais, levando à conversão de pré-calicreína em calicreína, com posterior clivagem do HMWK e liberação de BK. Além disso, a calicreína também ativa o FXII, tanto de forma direta, quanto através da indução da degradação de plasminogênio em plasmina e consequente ativação por esta última. O estrogênio pode aumentar a expressão do receptor B2 da BK, além de intervir na atividade da enzima conversora de angiotensina, reduzindo a degradação de BK1,16.

Apesar da terapia de escolha para o tratamento das crises durante a gestação ser o pdC1-INH7, nesta paciente optou-se pelo uso do icatibanto, pela gravidade da crise e pela localização do angioedema em orofaringe, com potencial risco de progressão e obstrução das vias aéreas superiores. Além disso, a medicação de primeira linha, na ocasião, não estava disponível.

O icatibanto é classificado na categoria C, devido aos eventos adversos demonstrados em estudos com animais13. Os eventos adversos descritos em animais incluem parto prematuro, aborto, morte fetal e perda pré-implantação, sem evidências de teratogenicidade. Estudos observacionais em seres humanos relataram partos pré-termos em gestantes que receberam o icatibanto durante crises de AEH, sem outros registros de eventos adversos. No entanto, o conjunto de dados levantados é muito pequeno para se chegar a conclusões sobre a relação entre o uso da medicação e o aumento de incidência de prematuridade14. Uma preocupação relacionada à utilização de icatibanto durante a gravidez é o fato de que as células da decídua humana expressam os receptores BDKRB2 e os efeitos da inibição destes receptores, mesmo durante períodos transitórios, ainda são desconhecidos15. Apesar de alguns estudos observacionais relatarem casos de parto pré-termo em gestantes que fizeram uso do icatibanto, no caso da paciente descrita neste relato, o parto pré-termo não pôde ser atribuído à esta medicação, visto que este desfecho foi secundário às complicações da placenta prévia, cujo diagnóstico já havia sido realizado no primeiro trimestre da gestação.

Atualmente não existem medicamentos aprovados para o AEH-FXII, por falta de dados sólidos de ensaios clínicos. O tratamento destes pacientes baseia-se na experiência clínica com o AEH-C1INH já consolidada. A interrupção dos estrogênios exógenos é o primeiro passo no manejo de mulheres com suspeita de AEH-FXII antes do início de quaisquer outras terapêuticas. Os medicamentos disponíveis e utilizados nos pacientes com AEH-C1INH para crise ou profilaxia, como o icatibanto, pdC1-INH (EV e SC), ácido tranexâmico, o lanadelumab injetável e, mais recentemente, berotralstat oral, modulam direta ou indiretamente o metabolismo da bradicinina e, portanto, podem ser úteis na condução dos pacientes com AEH-FXII. Vale ressaltar que o ácido tranexâmico é mais eficaz no AEH-FXII que no AEH-C1INH para profilaxia17.

O AEH, em todas as suas formas, impacta significativamente a qualidade de vida, a educação e o desempenho profissional dos pacientes. A dificuldade de diagnóstico precoce frequentemente está associada a múltiplas visitas ao pronto-socorro, erros diagnósticos, intervenções cirúrgicas desnecessárias, aumento da ansiedade e depressão, resultando em maior risco à vida3,17. Alguns estudos nacionais estimam que a demora no diagnóstico em pacientes com AEH varie entre 14-18 anos no Brasil. Uma combinação do desconhecimento por parte dos médicos dessa condição clínica e a dificuldade de acesso a exames de triagem e diagnóstico favorecem esse atraso. É imperativo o desenvolvimento de ações coordenadas para aumentar a conscientização do AEH, tanto pelos profissionais da saúde, especialistas e não especialistas, quanto pela população7,18.

 

Conclusão

Atualmente não existe tratamento direcionado especificamente para o manejo de pacientes com AEH-FXII. As terapêuticas empregadas baseiam-se no tratamento instituído para o AEH-C1INH. Apesar da indisponibilidade de estudos controlados sobre o uso do icatibanto na gestação, este medicamento tem sido descrito como uma opção terapêutica eficaz e segura nestas pacientes. Nos diversos relatos descritos até o momento, não há evidência de efeitos adversos relacionadas à paciente ou ao feto. Portanto, é possível considerar o uso deste, na ausência da opção de primeira linha, considerando riscos e benefícios de forma individualizada e compartilhada.

 

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