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Revista oficial da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia ASBAI
Revista oficial da Sociedad Latinoamericana de Alergia, Asma e Inmunología SLaai

Número Atual:  Abril-Junho 2023 - Volume 7  - Número 2


Comunicação Clínica e Experimental

Anafilaxia à lapa: um caso clínico raro

Limpet anaphylaxis: a rare case

Filipa Rodrigues-dos-Santos1; Inês Falcão1; Maria Angeles Lopes-Mata2; Leonor Cunha1


DOI: 10.5935/2526-5393.20230032

1. Centro Hospitalar Universitário de Santo António, Imunoalergologia - Porto, Porto, Portugal
2. LETI Pharma S.L.U., Tres Cantos, R&D Unit - Madrid, Madrid, Espanha


Endereço para correspondência:

Filipa Rodrigues-dos-Santos
E-mail: filipair.santos@gmail.com


Submetido em: 20/06/2023
Aceito em: 30/06/2023

Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste artigo.

RESUMO

A lapa (Patella vulgata) é um molusco frequentemente encontrado em regiões costeiras com clima quente. A alergia alimentar à lapa é muito rara, com poucos casos descritos na literatura. Os autores descrevem um caso de anafilaxia à lapa, com evidência de reação de hipersensibilidade do tipo I, através de IgE específica positiva à lapa, tanto com métodos in vivo, como in vitro.

Descritores: Alergia alimentar, anafilaxia, lapa, hipersensibilidade a frutos do mar.




Introdução

A lapa (Patella vulgata) pertence ao Phylum molusca e à classe dos gastrópodes, sendo um molusco com distribuição mundial, e abundante na Costa Norte da Espanha, no Japão e em regiões marítimas quentes. Em Portugal, a lapa é mais abundante na costa do arquipélago da Madeira, onde é mais frequentemente utilizada na alimentação. As reações alérgicas a lapa são muito raras. Foram descritas na literatura na Espanha e no Japão1-4, mas não em Portugal. Os casos descritos no Japão referem-se a uma variedade diferente de lapa, grand keyhole limpet, que pertence ao gênero Fissurellidae1.

 

Relato de caso

Doente de 44 anos, do sexo masculino, cozinheiro há 24 anos, onde manuseia peixe, mexilhões, ostras e camarão, sem antecedentes pessoais de relevo. Viveu e trabalhou como cozinheiro na Ilha da Madeira em 2022, durante 6 meses.

Foi enviado à consulta por, durante o período em que viveu na Ilha-da-Madeira, ter tido episódio de exantema maculopapular generalizado, com prurido associado e angioedema dos lábios, aperto laríngeo e dispneia, 1 hora após ingestão de 15 lapas grelhadas. Negou sinais/sintomas noutros sistemas. Negou exposição a fármacos, exercício, infeção ou desidratação. Recorreu ao Serviço de Urgência, onde recebeu medicação com corticoide oral e anti-histamínico, com resolução total dos sintomas em cerca de 6 horas. Na consulta não foi possível aceder ao registro do Serviço de Urgência, assim como informação de triptase em reação. Negou novos contatos por ingestão ou mesmo por manipulação com lapa. Mantém a ingestão de camarão, lagosta, mexilhão, caranguejo, polvo, lula, sem reação alérgica. Não gosta de caracóis e nunca apresentou reação com os mesmos.

Do estudo imunoalergológico realizado salientamse testes cutâneos em picada (TCP; mm) negativos para camarão, ameijoa, lula e polvo, e prick-prick positivo para lapa crua e cozida (histamina 9, lapa crua 13, lapa cozida 11).

O doseamento de IgE total foi de 90 kUA/L, o doseamento de IgE específica (kUA/L) para lapa foi positivo: 1,56; e negativo para polvo: 0,01; lula: 0,01; ameijoa: 0,01; anisakis 0,01; e caracol 0,06; respectivamente. O doseamento de triptase basal estava dentro dos valores da normalidade e foi de 5,15 ug/L.

Para realizar o estudo de sensibilização a lapa foram preparados extratos de lapa cozida e crua e a concentração de proteína em cada um dos extratos foi determinada usando o método de Bradford, e os resultados foram de 176,6 µg de proteína/mg de liofilizado para o extrato de lapa cozida, e 430,1 µg de proteína/mg de liofilizado para o extrato de lapa crua.

O perfil proteico foi estudado por meio de SDSPAGE. Foram colocados 20 µg de proteína de cada um dos dois extratos num gel. A banda mais intensa no extrato de lapa cozida tem aproximadamente 35 kDa. No extrato de lapa crua, foram observadas um maior número de bandas distribuídas ao longo de toda a pista, tendo sido observadas bandas mais intensas com 27, 45 e 90 kDa. O resultado é mostrado na Figura 1.

 


Figura 1
Perfil proteico (SDS-PAGE)
1 = Marcador de peso molecular Precision Plus (Bio-Rad); 2 = lapa cozida (20 μg de proteína); 3 = lapa crua (20 μg de proteína)

 

O perfil alergênico foi estudado por imunoblot usando 20 µg de proteína dos dois extratos de lapa e soro do doente diluído em 1:2. A IgE do doente reconheceu várias bandas em cada um dos dois extratos. No caso do extrato de lapa cozida, foram observadas bandas de 15, 20, 27, 34, 39 e 55 kDa. No extrato de lapa crua, foram observadas bandas em 14, 24, 27, 32, 40 kDa e duas bandas acima de 100 kDa. O resultado é mostrado na Figura 2.

 


Figura 2
Perfil alergênico (Imunoblot)
1 = Marcador de peso molecular Precision Plus (Bio-Rad); 2 = lapa cozida (20 µg de proteína); 3 = lapa crua (20 µg de proteína), soro com diluição de 1:2

 

Todos os estudos publicados até ao momento relacionam a alergia à lapa com a sensibilização a Dermatophagoides pteronyssinus (D. pteronyssinus)5,6. Por esse motivo, foi realizado um ensaio de imunoCAP com ácaros e tropomiosina. O resultado é apresentado na Tabela 1.

 

 

Uma vez confirmada a sensibilização do doente aos ácaros, foi realizado um estudo de reatividade cruzada através de um ensaio de imunoblot de inibição. Os extratos de lapa cozida e crua foram inibidos com o extrato de D. pteronyssinus. O extrato de lapa cozida foi quase completamente inibido pelo extrato do ácaro. No entanto, quando o extrato de lapa crua foi usado na fase sólida, a inibição causada pelo extrato de D. pteronyssinus foi muito leve. O resultado é mostrado na Figura 3.

 


Figura 3
Reatividade cruzada (Imunoblot inibição)
M = Marcador de peso molecular Precision Plus (Bio-Rad).
1 = D. pteronyssinus (20 µg de proteína); 2-4 = lapa cozida (20 µg de proteína); 6-8 = lapa crua (20 µg de proteína); 3 e 6 = sem inibição; 4 e 7 = inibido com 100 µg de proteína de D. pteronyssinus; 5 = inibido com 100 µg de proteína de lapa cozida; 6 = inibido com 100 µg de proteína de lapa crua. Em todas as pistas foi utilizado soro com diluição de 1:2.

 

No mesmo ensaio, foi confirmado o reconhecimento de várias bandas do extrato de D. pteronyssinus pela IgE do soro do paciente (Figura 3, pista 2).

Foi estabelecido o diagnóstico de alergia alimentar a lapa, e dada a apresentação clínica, o doente não realizou prova de provocação com lapa. Foi prescrito ao doente caneta autoinjetora de adrenalina, corticoide oral e anti-histamínico em SOS. O doente mantém atualmente evicção de ingestão de lapa e não voltou a contatar com lapa na confecção de alimentos. Tem estado assintomático, sem necessidade de uso de medicação de SOS. O doente foi notificado no Catálogo Português de Alergias e Reações Adversas (CPARA).

 

Discussão

A ingestão de marisco tem aumentado nos últimos anos em nível mundial7, podendo ser responsável por reações alérgicas graves em indivíduos sensibilizados8.9. Estima-se que a alergia alimentar ao marisco tenha uma prevalência de 3% da população global1. No entanto, existem poucos casos na literatura relativos à alergia alimentar IgE-mediada a lapa, mesmo em regiões onde o seu consumo é regular, como no arquipélago da Madeira ou nas Ilhas Canárias.

Neste artigo, as autoras descrevem o envolvimento de um mecanismo IgE-mediado numa reação imediata após consumo de lapa. Ao contrário da maioria das reações descritas na literatura, onde o principal sintoma após ingestão de lapa é a agudização de asma2,3,9, no nosso caso clínico é descrita uma reação de anafilaxia IgE-mediada. A sensibilização à lapa foi observada tanto com a lapa cozida como com a lapa crua, e em ambos os casos é causada por várias proteínas com tamanhos entre 15 e mais de 100 kDa. Apesar da pouca informação disponível na literatura sobre alergia à lapa, os artigos publicados também mencionam várias bandas associadas à sensibilização a este alimento5,6. Nessas publicações, a alergia à lapa foi associada à reatividade cruzada com ácaros, por isso a sensibilização ao D. pteronyssinus foi estudada. Foi determinado que o doente está sensibilizado aos ácaros. A atividade alergênica positiva quer para lapa crua, quer para lapa cozida poderá sugerir que o(s) antigênio(s) implicados poderão ser estáveis à temperatura.

O doente descrito neste caso clínico tolera outros moluscos e crustáceos. O mesmo já foi observado por Carrilo e cols.11, sugerindo um padrão de sensibilização diferente do usualmente observado na alergia alimentar ao marisco, em que os doentes muitas vezes se apresentam com sensibilizações concomitantes a crustáceos e moluscos ou entre crustáceos.

O caracol (terrestre e marinho) também faz parte da classe dos gastrópodes, já tendo sido descrita reatividade cruzada entre o caracol e os ácaros do pó da casa10. Até à data não existe descrição na literatura da existência de reatividade cruzada entre o caracol e a lapa, podendo, no entanto, esta ser teoricamente possível, já que pertencem à mesma classe. No nos-so caso, o doente não ingere caracol, pelo que não foi possível avaliar uma reação de alergia alimentar concomitante ao caracol.

A alergia ao marisco IgE-mediada normalmente persiste ao longo da vida, e o único tratamento eficaz é a evicção12,13. O doente mantém evicção à lapa.

Uma vez que trabalha como cozinheiro e pela gravidade da reação, o doente foi alertado para manter também evicção de manipulação de lapa, de modo a evitar reações alérgicas, quer por contato, quer por inalação. Foi aconselhado a usar sempre equipamento de proteção individual e a transportar consigo a caneta autoinjetora de adrenalina, bem como a restante medicação de SOS. O doente está notificado no Catálogo Português de Alergias e Reações Adversas (CPARA).

 

Referências

1. Morikawa A, Kato M, Tokuyama K, Kuroume T, Minoshima M, Iwata S. Anaphylaxis to grand keyhole limpet (abalone-like shellfish) and abalone. Ann Allergy. 1990;65(5):415-7.

2. Carrillo T, Rodríguez de Castro F, Blanco C, Castillo R, Quiralte J, Cuevas M. Anaphylaxis due to limpet ingestion. Ann Allergy. 1994;73(6):504-8.

3. Garcia JC, Bartolomé B, De La Torre. Sensibilización a lapa (Patella spp.) en pacientes con reacciones de hipersensibilidad al marisco. Rev Esp Alergol Inmunol. 1996;11(2):147.

4. Joral A, Navarro JA, Villas F, et al. Limpet anaphylaxis. Allergy. 1997;52(37):117.

5. Azofra J, Lombardero M. Limpet anaphylaxis: cross-reactivity between limpet and house-dust mite Dermatophagoides pteronyssinus. Allergy. 2003:58(2):146-9.

6. Gutiérrez-Fernández D, Fuentes-Vallejo MS, Zavala BB, FoncubiertaFernández A, Lucas-Velarde J, León-Jiménez A. Urticaria-angioedema due to limpet ingestion. J Investig Allergol Clin Immunol. 2009;19(1):77-9.

7. Davis CM, Gupta RS, Aktas ON, Diaz V, Kamath SD, Lopata AL. Clinical Management of Seafood Allergy. J Allergy Clin Immunol Pract. 2020;8(1):37-44.

8. Ruethers T, Taki AC, Johnston EB, Nugraha R, Le TTK, Kalic T, et al. Seafood allergy: a comprehensive review of fish and shellfish allergens. Mol Immunol. 2018;100:28-57.

9. Gupta RS, Warren CM, Smith BM, Jiang J, Blumenstock JA, Davis MM, et al. Prevalence and severity of food allergies among US adults. JAMA Netw Open. 2019;2:e185630.

10. Azofra J, Lombardero M. Limpet anaphylaxis: cross-reactivity between limpet and house-dust mite Dermatophagoides Pteronyssinus. Allergy. 2003:58(2):146-9.

11. Carrillo T, Rodríguez de Castro F, Blanco C, Castillo R, Quiralte J, Cuevas M. Anaphylaxis due to limpet ingestion. Ann Allergy. 1994;73(6):504-8.

12. Muraro A, Werfel T, Hoffmann-Sommergruber K, Roberts G, Beyer K, Bindslev-Jensen C, et al. EAACI Food Allergy and Anaphylaxis Guidelines: Diagnosis and management of food allergy. Allergy Eur J Allergy Clin Immunol. 2014;69(8):1008-25.

13. Davis CM, Gupta RS, Aktas ON, Diaz V, Kamath SD, Lopata AL. Clinical Management of Seafood Allergy. J Allergy Clin Immunol Pract. 2020;8(1):37-44.

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