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Revista oficial da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia ASBAI
Revista oficial da Sociedad Latinoamericana de Alergia, Asma e Inmunología SLaai

Número Atual:  Abril-Junho 2023 - Volume 7  - Número 2


Comunicações Clínicas e Experimentais

Coexistência de doenças autoimunes: oportunidade para a associação de imunobiológicos?

Coexisting autoimmune diseases: an opportunity to associate immunobiologicals?

Isaac Teodoro Souza-e-Silva; Pablo Waldeck Gonçalves-de-Souza; Rossy Moreira Bastos-Junior; Sérgio Duarte Dortas-Junior; Solange Oliveira Rodrigues Valle


DOI: 10.5935/2526-5393.20230027

Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF-UFRJ), Serviço de Imunologia - Rio de Janeiro, RJ, Brasil


Endereço para correspondência:

Sérgio Duarte Dortas-Junior
E-mail: sdortasjr@gmail.com


Submetido em: 21/04/2023
Aceito em: 12/06/2023.

Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste artigo.

RESUMO

O tratamento das doenças autoimunes com imunobiológicos é uma opção segura na prática clínica. A simultaneidade na ocorrência de doenças imunomediadas em um mesmo indivíduo pode determinar a necessidade da associação dos imunobiológicos para controle dos sintomas e melhora da qualidade de vida dos doentes. Relatamos o caso de uma paciente com artrite reumatoide em uso de etanercepte, que necessitou da associação de omalizumabe para o tratamento de urticária crônica espontânea.

Descritores: Urticária, angioedema, omalizumabe, etanercepte, terapia biológica.




Introdução

As terapias com imunobiológicos têm o objetivo de otimizar o manejo terapêutico de várias enfermidades. Sua aplicação mudou o curso de várias doenças imunoalérgicas como a urticária, dermatite atópica e asma, assim como de diversas doenças reumatológicas, entre outras. Os imunobiológicos têm sido alvo de diversos estudos nos últimos anos, e sua eficiência no controle de doenças tem devolvido a qualidade de vida a pacientes que antes sofriam com sintomas graves e persistentes.

Assim, pacientes com diversas comorbidades associadas passaram a se beneficiar da possibilidade do uso combinado de imunobiológicos no seu plano terapêutico.

Neste artigo relatamos o caso de uma paciente com artrite reumatoide (AR) em uso de etanercepte, que necessitou da associação de omalizumabe para o tratamento de urticária crônica espontânea (UCE), de maneira eficaz e segura.

 

Relato de caso

Paciente feminina de 66 anos, com AR em uso de etanercepte (anti-TNF) 50 mg semanalmente por via subcutanea há 10 anos, com doença sob controle, sem novas queixas articulares e com melhora da rigidez matinal. Referia hipertensão arterial sistêmica em uso de losartana, e tireoidectomia (1977) sem causa relatada, além de cura de hepatite C (2018).

Em janeiro de 2020, iniciou quadro de urticas associadas à angioedema, principalmente em face e pés, sem desencadeante específico (Figura 1). Fazia uso recorrente de cursos de corticoide oral nas exacerbações, além de anti-histamínico de primeira geração prescritos por dermatologista. Após avaliação por imunologista, seguindo as diretrizes atuais para o manejo da urticária crônica, realizou hemograma completo, velocidade de hemosedimentação (VHS), proteína C-reativa (PCR), IgE total e antitireoperoxidase (anti-TPO) (Tabela 1); e fez uso de anti-histamínico de segunda geração, inclusive em dose quadruplicada, sem controle da doença (UCT = 0 e UAS7 = 42). Em fevereiro de 2022 iniciou uso de omalizumabe 300 mg a cada 4 semanas e dose quadruplicada de loratadina 10 mg diariamente, com controle total da doença (UCT = 16, UAS7 = 0) na primeira semana após aplicação da primeira dose do omalizumabe. Em setembro de 2022 houve uma tentativa de aumentar o intervalo entre as aplicações, porém a paciente apresentou prurido e urticas na quarta semana após a aplicação (UCT = 11 e UAS7 = 10), retornando ao intervalo de 4 semanas. A paciente permanece em uso de omalizumabe 300 mg/4 semanas associado a loratadina 10 mg/dia sem sintomas (UCT = 16 e UAS7 = 0). Na Tabela 2 observamos os exames laboratoriais da paciente antes e após início do tratamento com omalizumabe associado ao etanercepte, mantendo-se inalterados e dentro da normalidade. Tanto o etanercepte quando o omalizumabe são medicações comprovadamente seguras, mas na avaliação individual da paciente com uma história patológica pregressa com uso de metotrexato para tratamento da AR, infecção prévia pelo HCV, optou-se por monitorar as provas de função renal e lesão hepática de acordo com bula do medicamento etanercepte.

 


Figura 1
A)
Dorso da paciente com lesões eritematosas pela urticária crônica espontânea (UCE). B) Pé com lesões eritematosas e a deformidade do hálux característica da artrite reumatoide (AR)

 

 

 

 

 

Discussão

A urticária é uma doença com acometimento universal e debilitante para a maioria dos pacientes. A UCE é caracterizada pela ocorrência de episódios de urticas e angioedema ou ambos, por mais de seis semanas. Sua fisiopatologia não está totalmente elucidada, entretanto a ativação de mastócitos teciduais por diferentes gatilhos, e a consequente liberação de seus mediadores inflamatórios, são a via final comum de todas as formas de urticária1. Além das urticas e do angioedema, a UCE é caracterizada por prurido, que pode ser tão intenso a ponto de incapacitar o paciente.

Apesar da baixa prevalência e etiologia complexa, além de evolução recorrente e imprevisível, a UCE pode estender-se por anos, com cerca de 10% dos pacientes apresentando sintomas por 5 anos ou mais2, sendo o sexo feminino mais afetado e a faixa etária predominante entre 20 e 40 anos. Embora a patogênese não tenha sido totalmente elucidada, a autoimunidade relacionada à IgG e à autoalergia mediada por IgE são os principais mecanismos descritos3.

O diagnóstico da UCE é baseado em uma avaliação detalhada da história clínica do paciente e no exame físico para afastar outras possíveis causas dos sintomas. Não há um único teste específico para este diagnóstico4. As atuais diretrizes recomendam a realização de hemograma completo, VHS e/ou PCR; e especialistas devem solicitar também IgE total e anti-TPO. As mesmas diretrizes recomendam contra a realização de exames laboratoriais extensos, não orientados pela história clínica4.

O tratamento da UCE está bem estabelecido, e tem por objetivo o controle total dos sintomas (UCT = 16 e UAS7= 0), para que os pacientes tenham uma vida normal4.

A primeira linha de tratamento consiste em monoterapia por doses diárias de anti-histamínicos de segunda geração (sgAH), cuja dosagem é dependente do sintoma, podendo ser até quadruplicada para alcançar o controle total dos sintomas4.

Em pacientes cuja sintomatologia seja refratária à monoterapia quadruplicada com sgAH, a associação do omalizumabe está indicada4.

O omalizumabe é um anticorpo monoclonal humanizado anti-IgE, inicialmente utilizado no tratamento da asma alérgica grave, que se liga seletivamente à IgE circulante, bloqueando sua ligação com os receptores de mastócitos e basófilos. É um imunobiológico de alta eficácia, comprovada por estudos duplos-cegos para o tratamento da UCE e seu uso é comprovadamente seguro para crianças acima de 12 anos, gestantes e pacientes com outras doenças, como o câncer5.

É indicado como terapia adicional para a UCE (associado aos sgAH) utilizando-se a dose de 300 mg via subcutânea a cada 4 semanas, que pode ser elevada para 450 mg e 600 mg respectivamente, bem como o intervalo de tempo pode ser reduzido para até duas semanas, visando o controle total dos sintomas.

O etanercepte é um bloqueador do fator de necrose tumoral (TNF), que encontra-se elevado em doenças inflamatórias, e sua utilização pode ser indicada na AR, artrite idiopática juvenil poliarticular, espondilite anquilosante, artrite psoriásica e psoríases. Tem eficácia comprovada na redução dos sintomas, e de uso seguro em longo prazo observado, por exemplo, em tratamentos de crianças acima de dois anos com artrite idiopática juvenil6.

A UCE tem sido descrita e correlacionada com a presença de outras doenças, autoimunes, atópicas e psiquiátricas. Em uma metanálise de 60 estudos, a prevalência de doenças autoimunes órgão-específicas em pacientes com UCE foi de 27,5%. Dentre elas, as doenças autoimunes da tireoide se destacam2; no entanto, não há estudos disponíveis na literatura para correlacionar com clareza a associação dessas doenças à UCE.

Essas frequentes associações evidenciam a necessidade do estudo do omalizumabe combinado com outros imunobiológicos; há poucos relatos na literatura sobre o omalizumabe e o uso concomitante de outros biológicos. Foi relatado um caso de um paciente do sexo masculino que recebeu guselkumab para psoríase e omalizumabe para UCE por um período de 21 meses, sem nenhum efeito adverso clinicamente relevante, ou interações medicamentosas7. Em outro relato de caso descreve-se paciente que desenvolveu UCE durante o uso de adalimumabe para artrite psoriática e utilizou omalizumabe concomitantemente com adalimumabe por 24 semanas. Neste paciente, o omalizumabe foi interrompido devido ao controle completo da urticária após 24 semanas8. Um estudo recente avaliou o uso combinado de omalizumabe com outros três diferentes biológicos com indicação para tratamento para psoríase ou hidroadenite supurativa em 31 pacientes, são esses adalimumabe, usteoquinumabe, secuinumabe e ixequizumabe. Não foram observados eventos adversos em relação à associação de omalizumabe com outros agentes biológicos, semelhante aos demais estudos da literatura. Apenas um paciente apresentou diarreia após 9 meses da adição de omalizumabe ao secuquinumabe. Este evento adverso foi resolvido após a interrupção do secuquinumabe3.

Talvez a maior dificuldade no uso da combinação de imunobiológicos ainda seja o alto custo envolvido no tratamento. No entanto, deve-se analisar que esses custos não superam em longo prazo a evolução natural de algumas doenças autoimunes.

O caso relatado evidencia isto de forma clara, uma paciente com comorbidades e uma história patológica pregressa extensa e complexa, que após análise criteriosa utiliza um tratamento seguro que mudou o curso de suas doenças, sem efeitos colaterais, mantendo análise laboratorial durante o curso do tratamento sem alterações (Tabela 2), demonstrando claramente a segurança da combinação.

Os avanços terapêuticos nas doenças crônicas autoimunológicas prolongam a vida dos pacientes; nos portadores de múltiplas doenças o uso da combinação de mais de um imunobiológico deve se tornar uma necessidade cada vez mais comum. A segurança do uso concomitante de mais de um imunobiológico em um mesmo paciente como no caso relatado é de extrema importância. O estudo destas combinações, assim como o estabelecimento de consensos e normativas para o seu uso, é fundamental, visto que pode mudar radicalmente o curso das doenças e melhorar a qualidade de vida destes pacientes. Destaca-se, assim, este relato de caso por evidenciar a segurança da associação de imunobiológicos que atuam em diferentes vias da resposta inflamatória em um mesmo paciente para o controle de enfermidades crônicas debilitantes de difícil controle.

 

Referências

1. Gehlen B, Mousinho-Fernandes M, Argolo PN, Pereira GF, Kalil J, Motta AA, et al. Tratamento da UCE refratária aos anti-histamínicos e na impossibilidade do omalizumabe, nos adultos. Arq Asma Alerg Imunol. 2021;5(3):223-31.

2. Murdaca G, Paladin F, Borro M, Ricciardi L, Gangemi S. Prevalence of autoimmune and autoinflammatory diseases in chronic urticaria: pathogenetic, diagnostic and therapeutic implications. MDPI Biomedicines. 2023;11(2):410.

3. Koç Yıldırım S, Erbagcı E, Hapa A. Omalizumab treatment in combination with any other biologics: Is it really a safe duo? Australas J Dermatol. 2023;64(2):229-33.

4. Zuberbier T, Abdul Latiff AH, Abuzakouk M, Aquilina S, Asero R, Baker D, et al. The international EAACI/GA2LEN/EuroGuiDerm/APAAACI guideline for the definition, classification, diagnosis, and management of urticaria. Allergy. 2022;77(3):734-66.

5. Türk M, Carneiro-Leão L, Kolkhir P, Bonnekoh H, Buttgereit T, Maurer M. How to Treat Patients with Chronic Spontaneous Urticaria with Omalizumab: Questions and Answers. J Allergy Clin Immunol Pract. 2020;8(1):113-24. 6. Pfizer. Bula Enbrel® etanercepte (Internet). Disponível em: https://www.pfizer.com.br/bulas/enbrel.

7. Karstarli Bakay OS, Kacar N. Combined treatment with omalizumab and secukinumab in a patient with chronic spontaneous urticaria and psoriasis. Dermatol Ther. 2022;35(9):e15638.

8. Diluvio L, Vollono L, Zangrilli A, Manfreda V, Prete MD, Massaro A, et al. Omalizumab and adalimumab: a winning couple. Immunotherapy. 2020;12(18):1287-92.

 

Abreviaturas: AR = artrite reumatoide, anti-TPO = antitireoperoxidase, HCV = vírus da hepatite C, PCR = proteína C-reativa, UAS7 = escore de atividade da urticária, UCE = urticária crônica espontânea, UCT = teste de controle da urticária, VHS = velocidade de hemosedimentação.

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