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Revista oficial da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia ASBAI
Revista oficial da Sociedad Latinoamericana de Alergia, Asma e Inmunología SLaai

Número Atual:  Outubro-Dezembro 2022 - Volume 6  - Número 4


Artigo de Revisão

Nosso sistema imune de cada dia e os agrotóxicos de hoje

Our everyday immune system and today's pesticides

Celso Taques Saldanha1; Laís Gomes Ferreira Rosa2; Semiramis Vitória da Silva Uchôa2; Arthur Hikaru Nunes Motizuki2; Talita de Sousa Brito2; Ana Paula Alves Lima2; Isis Franco Martin2; Ana Maria Sversut Briante2; Carla Louise Silva Leão e Guedes2; Natália Gabrielli Silva Alves2


DOI: 10.5935/2526-5393.20220056

1. Universidade de Brasília/UnB, Centro Universitário de Brasília/Uniceub, Centro Universitário Euro-Americano/Unieuro -Brasília, DF, Brasil. ASBAI - Departamento de Biodiversidade, Poluição e Alergias - São Paulo, SP, Brasil
2. Centro Universitário de Várzea Grande - UNIVAG - Várzea Grande, MT, Brasil


Endereço para correspondência:

Celso Taques Saldanha
E-mail: celsotaquessaldanha@gmail.com


Submetido em: 17/07/2022
Aceito em: 28/10/2022

RESUMO

O uso massivo dos agrotóxicos nas lavouras deu-se a partir de 1950 com a "Revolução Verde", como resultado da busca por aumento da produtividade e modernização dos campos agrícolas. Diante disso, na década de 1960, foi criado o Programa Nacional de Defensivos Agrícolas (PNDA), que veio para facilitar a introdução dos agroquímicos, colaborando para que, a partir de 2008, o Brasil passasse a ser o país com maiores percentuais de uso destes produtos. Essas substâncias geram efeitos deletérios sobre a resposta imune dos indivíduos expostos, principalmente relacionada aos macrófagos, células B, T e NK. Isso afeta a capacidade de fagocitose, apresentação de antígenos e produção de anticorpos, além de induzir a geração de radicais livres de oxigênio e disfunção mitocondrial, resultando em estresse oxidativo e danos ao DNA celular, apoptose em excesso, mutação no ciclo celular, desordem de regulação e, consequentemente, imunodeficiência. Dessa forma, o desenvolvimento de doenças imunomediadas, como asma e doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), está estreitamente ligado aos agrotóxicos, uma vez que esses variados mecanismos de toxicidade ao sistema imune induzem, dentre outras, manifestações respiratórias, tais como tosse, sibilo, irritação e inflamação. Além disso, estes pesticidas estão relacionados com doenças não imunomediadas ao alterar a função normal dos hormônios da tireoide, andrógenos e estrógenos. A fim de avaliar estes impactos, o presente estudo consiste em uma revisão integrativa da literatura e, diante da crescente utilização descontrolada dos agrotóxicos, assume grande relevância, refletindo a necessidade de maior atuação da vigilância epidemiológica, ambiental e da saúde do trabalhador.

Descritores: Agroquímicos, exposição a praguicidas, doenças do sistema imunitário, doenças respiratórias.




INTRODUÇÃO

O uso de produtos químicos nas lavouras agrícolas teve seu início após o fim das grandes guerras mundiais, sendo que em 1950, com a chamada "Revolução verde", a sua aplicação de forma massiva entrou em vigência. A busca por um aumento na produtividade e pela modernização dos campos agrícolas resultou na criação do Programa Nacional de Defensivos Agrícolas (PNDA) na década de 60 no Brasil. Esse programa facilitou, ao longo dos anos, a introdução dos agroquímicos, o que colaborou para que, em 2008, o país passasse a ocupar o primeiro lugar dentre os países que mais consomem agrotóxicos no mundo1-3.

São inúmeros os tipos de produtos utilizados nos dias de hoje no Brasil, sendo importante ressaltar que boa parte destes tem seu uso vedado em países da Europa e dos Estados Unidos. Dentre os mais usados temos os herbicidas, os inseticidas, os fungicidas e os bactericidas e, apesar de seu alto impacto sobre as pragas agrícolas, nos últimos anos o desenvolvimento de resistência aos venenos aplicados tem levado ao aumento das dosagens e da busca por produtos novos com ação mais potente, resultando em impactos severos sobre a saúde humana1,4.

Diversos são os efeitos da exposição aos agrotóxicos, dentre eles está o comprometimento da resposta imune dos indivíduos expostos, gerando alertas para os profissionais de saúde3. Pesquisas nos últimos anos demonstraram que tais agroquímicos exercem ação principalmente sobre os macrófagos, células B, células T e células natural killer (NK), tendo como consequência alterações no ciclo celular, diminuição da capacidade de apresentação de antígenos, diminuição da capacidade fagocítica e também indução à apoptose3.

Nesse contexto, observa-se que em alguns indivíduos expostos irá se instalar um estado de imunodeficiência, uma vez que as respostas celulares e a produção de anticorpos estarão falhas, assim, estes indivíduos se tornarão menos resistentes a processos infecciosos. Além disso, teremos falhas na vigilância imunológica a tumores e distúrbios na imunorregulação, facilitando o desenvolvimento de processos neoplásicos e de doenças autoimunes3.

O comprometimento das vias aéreas causado por tais substâncias químicas também vem sendo muito observado, pois estas substâncias propiciam irritações na mucosa respiratória e inflamação do epitélio local, favorecendo o surgimento de doenças como a asma, a bronquite crônica e a doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC)4. Outrossim, alterações cardiovasculares, alterações hematológicas, alterações neurológicas, alterações na pele e nos olhos também têm sido correlacionadas ao uso de agrotóxicos4-6.

Assim, diante dos diversos impactos e danos à saúde tanto dos trabalhadores expostos aos produtos químicos nas lavouras agrícolas como do restante da população por meio da poluição das águas, do solo e do ar, o presente artigo busca descrever as principais influências provocadas no sistema imune mediante a exposição a agrotóxicos.

 

MÉTODOS

Trata-se de um estudo tipo revisão integrativa da literatura, realizada nas bases de dados National Library of Medicine (PubMed), Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) e na biblioteca virtual Scientific Eletronic Library Online (SciELO). No processo de seleção dos artigos foram utilizados os Descritores em Ciência da Saúde (DeCS) e o Medical Subject Heading (MeSH), sendo tais descritores: "agrotóxicos", "doenças do sistema imunológico", "doenças respiratórias", "exposição a produtos químicos", "agrochemicals", "immune system diseases", "respiratory tract diseases" e "chemical compound exposure". Os critérios de inclusão foram artigos completos na língua portuguesa e inglesa, no período de janeiro de 2000 a abril de 2021. Os critérios de exclusão estabelecidos foram relatos de experiência, artigos de opinião e editoriais.

 

DISCUSSÃO

A visão geral dos agrotóxicos no Brasil

Agrotóxicos, defensivos agrícolas, pesticidas, praguicidas, remédios de planta, veneno são algumas das inúmeras denominações relacionadas ao grupo de substâncias químicas utilizadas no setor de produção, armazenamento e beneficiamento de produtos agrícolas, nas pastagens, na proteção de florestas e em ambientes urbanos, hídricos e industriais. Sua finalidade principal é alterar a composição da flora e da fauna, a fim de preservá-la da ação danosa de seres vivos e substâncias consideradas nocivas7.

Segundo prevê a Lei nº 7.802, de 11 de julho de 1989, no art. 3º, os agrotóxicos, seus componentes e afins, só poderão ser produzidos, exportados, importados, comercializados e utilizados, se previamente registrados em órgão federal, de acordo com as diretrizes e exigências dos órgãos federais responsáveis pelos setores da saúde8.

As informações na rotulagem dos agrotóxicos devem ser claras para que possam ser expostos à venda em todo o território nacional, assim, é obrigatório exibir rótulos próprios e bulas, redigidos na língua portuguesa. Para o caso de acidentes, devem estar explícitas instruções incluindo sintomas de alarme, primeiros socorros, antídotos e recomendações para os médicos8. Dessa forma, para fins de classificação, os agrotóxicos são divididos de acordo com as nor-mas da Anvisa. Houve modificações no ano de 2017, sendo reclassificado segundo o grau de toxidade, como mostra a Tabela 19.

 

 

Além da classificação quanto à gravidade preconizada pela Anvisa, pode-se classificar os pesticidas de acordo com suas propriedades químicas. Dentre eles, os herbicidas são representados pelos clorofenoxil (2,4-D, 2,3,5-T e MCPA), derivados de ureia, triazinas, amida, bipiridils e glifosato4. Representando os inseticidas tem-se os organoclorados, ciclohexanos e benzenos clorados, ciclodienos e chlordecone, organofosforados carbamatos, piretroides rotenona, Bacillus thuringiensis (produto proteico)4.

Já dentre os fungicidas estão os ditiocarbamato, captano, captofol, pentaclorofenol, iprodiona e enxofre, e, relacionados aos bactericidas, destacam-se a triazina-S-trionas, agentes liberadores de cloro, cloro e dicloronitrobenzeno. Os rodenticidas estão representados pelos coumadin e derivados, anticoagulantes, estricnina, fluoroacetato de sódio; e por fim, o brometo de metila, fosforeto de alumínio/zinco e o enxofre são exemplos de fumigantes4.

Também é reconhecida a classificação quanto ao mecanismo de ação, podendo apresentar propriedades neurotóxicas, tais como os organoclorados e organofosforados, ou propriedades análogas aos de hormônios vegetais, como os herbicidas fenoxila. Outras substâncias podem agir como desreguladores do metabolismo endócrino, como os herbicidas atrazina e ureia, ou interferir em processos fisiológicos como modificação da cascata de coagulação por diminuir a síntese de vitamina K, como a coumadina, dentre diversos outros tipos de mecanismos de ação4.

Todas essas formas de classificar tais substâncias demonstram o perigo do seu uso em demasia. Entretanto, a realidade de consumo se mostra contraditória visto que, apesar dos riscos conhecidos da exposição excessiva, o mercado brasileiro tem posição de destaque no ranking mundial, sendo o maior consumidor de agrotóxicos desde 2008, segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)1,10. O consumo de herbicida é o mais acentuado, sendo responsável por aproximadamente 45% do volume total utilizado, seguido por fungicidas (14%) e inseticidas (12%).

Além do uso intenso de agrotóxicos registrados, outra preocupação diz respeito ao contrabando dessas substâncias. Em resultado de análises de amostras coletadas em 2011 pelo Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos da Anvisa, 78% estavam contaminadas, inclusive com duas substâncias ainda não registradas no Brasil, azaconazol e tebufempirade, sugerindo o descontrole das políticas públicas sobre uso de agrotóxicos no país10.

Nesse contexto de intensa produção e consumo, vale ressaltar que o uso de agrotóxicos é um importante problema de saúde pública devido à vasta população exposta tanto nas próprias fábricas quanto em seu entorno, na agricultura, no combate às endemias, nas proximidades de áreas agrícolas e no consumo de alimentos contaminados10, necessitando de atenção especializada para o seu controle.

Agrotóxicos e doenças não imunomediadas

Estudos associam a exposição aos agrotóxicos à desregulações hormonais e doenças nos seres humanos11. Esses impactos são estudados desde o começo de seu uso, nos anos de 1960. Hoje, sabe-se que os agroquímicos possuem compostos capazes de desregular o sistema endócrino, inibir colinesterases, como a AchE (acetilcolinesterase) e ChP (butirilcolinesterase), e servir como substância com potencial carcinógeno11,12.

A desregulação do sistema endócrino acontece ao alterar a função fisiológica dos hormônios da tireoide, andrógenos e estrógenos. Alguns compostos dos agroquímicos são capazes de interromper as vias de sinalização, mimetizando a interação dos hormônios endógenos e dos receptores nucleares. Consequentemente, há interferência na síntese, resposta e degradação de hormônios peptídicos e esteroides2,11,13,14. Ademais, dados epidemiológicos têm associado a exposição dos agrotóxicos ao aumento da incidência de tumores hormônio-dependentes, intimamente relacionados à desregulação endócrina11.

Além disso, o fato de a interrupção da síntese hormonal poder ser um fator precursor para alterações das funções cerebrais do ser humano, também é motivo de estudo11,14. A morte neuronal causada pelos compostos dos agrotóxicos no ser humano é desencadeada por estresse oxidativo, disfunção mitocondrial, falha no funcionamento do retículo endoplasmático, danos em moléculas sinalizadoras, degradação de proteínas e outros mecanismos14.

A exposição a pesticidas, como os organofosforados, pode levar a quadros clínicos agudos e até crônicos dependendo do tempo e quantidade de exposição. Assim, quando realizado o exame para medir indicadores biológicos de exposição, a quantidade de colinesterases, AchE e ChP, estão reduzidas. Por consequência, em uma intoxicação, as pessoas podem apresentar efeitos muscarínicos, nicotínicos, distúrbios cognitivos, efeitos motores e neurossensoriais12. Outrossim, estudos estabelecem por meio de dados epidemiológicos e análises em modelos celulares, a relação entre a exposição aos agroquímicos e a neurodegeneração cerebral, tendo como a Doença de Parkinson, a principal doença neurodegenerativa14.

Sob essa perspectiva, o contato com os agentes tóxicos é, praticamente, inevitável, uma vez que o con-sumo de produtos industrializados e o convívio com a natureza caminham paralelamente ao contato com diversas entidades químicas. Dessa forma, destacase também o potencial carcinógeno dos agrotóxicos, visto sua heterogeneidade de compostos e a exposição crônica a essas substâncias vivenciadas por grande parcela dos trabalhadores rurais. Entretanto, o efeito crônico está relacionado às variadas vias de absorção, tais como a dérmica, digestiva e respiratória, e, quando associadas a toxinas lipossolúveis, aumentam ainda mais os riscos de mutação celular, haja vista a bioacumulação gerada no organismo. Dessa maneira, neoplasias no cérebro, linfomas não Hodgkin, melanomas cutâneos, cânceres no sistema digestivo e urinário passam a ser uma realidade da população em contato com tais químicos2.

Agrotóxicos, sistema imune e doenças imunomediadas

A resposta imune aos patógenos e às doenças se dá a partir da ação conjunta de diversos componentes celulares e hormonais. Ela pode se dividir em resposta imune inata ou adaptativa, sendo a primeira representada principalmente por neutrófilos, macrófagos e células NK, e a segunda por linfócitos T e B e anticorpos3. Os efeitos dos agrotóxicos nesse sistema são decorrentes do seu potencial de imunotoxicidade, termo utilizado pela primeira vez em 1970 e que engloba qualquer efeito deletério na função imune, tanto inata quanto adaptativa15. Esses efeitos causam desregulação do sistema de proteção do organismo, comprometendo a resposta de defesa.

Os defensivos agrícolas estão presentes nos alimentos, nas águas dos rios, no ar e no solo, assim, existem diversas formas de contaminação. Além disso, como vários agrotóxicos são utilizados concomitantemente e como cada mecanismo tem ações específicas, diferentes grupos celulares são atingidos, resultando em múltiplas falhas na imunidade3. Dentre essas, se destacam a deficiente capacidade de fagocitose, de apresentação de antígenos e de produção de anticorpos, a indução da apoptose em demasia, a mutação no ciclo celular, a desordem de regulação e consequente imunodeficiência3,15. Esses efeitos deletérios se tornam ainda mais intensos nos períodos de pulverização, visto que a inalação dessas substâncias se mostra uma importante via de contaminação3.

Os grupos químicos dos organofosforados, organoclorados, carbamatos, triazinas e clorofenóis estão entre os mais utilizados no Brasil e, como citado anteriormente, cada grupo apresenta mecanismos de imunotoxicidade diferentes, com ação direta nas células e consequências no desenvolvimento de doenças imunomediadas. Juntamente a esses mecanismos de ação direta às células, está a geração de radicais livres de oxigênio (ROS), que resulta em estresse oxidativo e danos ao DNA celular, induzindo alteração da sinalização e estado pró-apoptótico3. Nesse contexto, foi observado o efeito do glifosfato (GLY) em testes de linhagens celulares específicas, comprovando a mortalidade celular significativa por danos às mitocôndrias devido ao aumento da quantidade de ROS16.

Além disso, nos EUA foi realizado um estudo em que se observou um efeito genotóxico significativo, em linfócitos B e T, nos fazendeiros por conta de pesticidas em época de pulverização17. Os trabalhadores foram expostos cronicamente a vários pesticidas, tornando difícil a atribuição do efeito genotóxico a uma classe ou composto químico específico. Mas, foi demonstrado que essa forma de exposição pode induzir danos ao DNA, como quebras de fita simples e de fita dupla, resultando em um reparo deficiente de células B e T. Fungicidas como clorotalonil, carbendazim e tiofanato metílico podem ter desempenhado um papel maior na indução desses danos ao DNA em linfócitos T17. O clorotalonil apresentou forte citotoxicidade contra as linhagens específicas, resultando em alta mortalidade celular após 24 e 48 horas de contato18, e efeitos citogenéticos em linfócitos, resultando no aumento de alterações cromossômicas19.

A disfunção mitocondrial, outro mecanismo, se caracteriza por efeitos danosos no retículo endoplasmático, causando deficiência na produção de proteínas e, também, em apoptose celular3. Tem-se como exemplo o efeito negativo em proteínas anticancerígenas, em específico nas células NK-92CI, que são altamente citotóxicas para células tumorais. Tal efeito é característico da classe dos carbamatos, como o carbaril (inseticida), maneb (fungicida), thiram (fungicida) e ziram (fungicida). Assim, os achados do estudo sugerem que essa classe reduz significativamente os níveis intracelulares das proteínas dessa linhagem, de maneira dose-dependente ao seu efeito imunotóxico, predispondo o indivíduo ao desenvolvimento de câncer20.

A desregulação dos mecanismos de sinalização também é comum, a exemplo tem-se a atrazina, um dos herbicidas mais utilizados no Brasil, mas banido na União Europeia pelo seu mecanismo de modulação positiva sobre as células T-regulatórias, impedindo a produção de citocinas, como o interferongama e enfraquecendo a resposta imunológica21. Como resultado, causa efeitos tóxicos na fertilidade, sistema nervoso e desenvolvimento fetal3. De forma semelhante, tem-se o bendiocarb, um inseticida carbamato que causa alterações dose-dependentes na homeostase e função das células imunes, incluindo alterações em células TCD4 reguladoras e no ajuste de citocinas e quimiocinas22.

O problema mais grave, entretanto, é que essa substância pode ser absorvida em mulheres grávidas e transferida para o feto. Assim, sua exposição no útero tem efeitos inequívocos no sistema imunológico fetal, decorrente de uma resposta inflamatória exacerbada, que pode ser crítica para a manutenção da tolerância materno-fetal e levar a efeitos adversos na gravidez. Além disso, causa consequências biológicas importantes para o desenvolvimento e a saúde infantil, visto que essas alterações permanecem detectáveis na infância22.

Todos esses mecanismos podem influenciar negativamente o potencial de defesa do organismo contra patógenos externos, inclusive contra vírus. Os danos às células podem agravar o quadro clínico, fato particularmente importante em um cenário de pandemia, tal qual a COVID-19. Nesse contexto, foram considerados grupos de risco indivíduos com comorbidades como diabetes mellitus, hipertensão, obesidade e imunossupressão3,23. Logo, pode-se inferir que a importância do impacto dessas substâncias no sistema imune se estende para a capacidade de resposta a infecções virais, incluindo a infecção pelo SARS-CoV-2, de forma direta ou não3.

O desenvolvimento de doenças imunomediadas também está estreitamente ligada aos agrotóxicos. Esses variados mecanismos de toxicidade ao sistema imune induzem, dentre outras, manifestações respiratórias, tais como tosse, sibilo, irritação e inflamação de vias aéreas. Essa clínica é derivada de doenças pulmonares imunomediadas, sendo assim, podem ser divididas em reações tipo 1, predominantemente IgE mediadas, como a asma ocupacional, reações tipo 3 e 4, por hipersensibilidade, como a pneumonite e, também, as mediadas pela imunidade inata, como as doenças inflamatórias crônicas (DPOC)15.

Os organofosforados compõem um grupo químico extensamente utilizado no mundo inteiro e com importância particular, visto que, além dos efeitos no SNC citados anteriormente nas reações não imunomediadas, eles também possuem efeitos periféricos, com destaque para as vias aéreas. Seu mecanismo de ação se baseia na inibição da acetilcolinesterase, cuja função é degradar a acetilcolina, causando um acúmulo desse neurotransmissor no sistema respiratório. Como consequência de uma exposição crônica, acontece uma resposta muscarínica em demasia caracterizada pela indução de hiper-responsividade e broncoconstrição, justificando sua relação com a asma3-5,24.

Considerando que o uso dessa substância não se restringe somente às áreas de agricultura, como também às áreas periurbanas e urbanas, sua capacidade em agravar a asma e outras doenças imunomediadas se estende aos trabalhadores e moradores tanto rurais quanto urbanos5,24. Ademais, os organofosforados possuem outro mecanismo de ação direta sobre o sistema imunológico: eles inibem as serinas hidrolases, enzimas capazes de hidrolisar substâncias de sinalização imune. Assim, ocorre uma imunomodulação negativa sobre diversas células de defesa citadas anteriormente, tais como neutrófilos, macrófagos, NK, anticorpos e linfócitos, gerando, novamente, um estado de imunodeficiência25.

A asma é definida como uma doença pulmonar inflamatória caracterizada por broncoconstrição intermitente e reversível, hipersecreção e hiper-reatividade das vias aéreas, com reflexo na apresentação de sintomas respiratórios e diminuição da qualidade de vida5,15,24. Foi demonstrado que um quinto da asma de início adulto é resultado de fatores ocupacionais, e que em aproximadamente 90% destes casos os fatores imunológicos estão envolvidos26. Essa fisiopatologia é justificada pela ação de mastócitos, eosinófilos, linfócitos, IgE e mediadores como a histamina, que atuam causando edema e inflamação após a exposição a alérgenos. Entretanto, devido à baixa antigenicidade dos pesticidas, a asma induzida ou agravada por essas substâncias se deve, possivelmente, a um efeito imunológico de desequilíbrio Th1/ Th2, de forma a induzir a liberação de ROS e causar dano celular a partir disso27. Assim, a exposição a vapores de substâncias químicas pode resultar em tosse e expectoração crônica com exacerbação da doença preexistente4, além da asma de início adulto4,28.

A rinite, por definição, é uma inflamação da mucosa nasal, podendo ser por ação direta, também chamada de irritativa, ou imunomediada, conhecida como rinite alérgica, muito mais comum no contexto de trabalhadores rurais27. A clínica desta doença se apresenta como rinorreia, espirros, prurido e obstrução nasal27,29. O uso do pesticida 2,4-D foi associado ao desenvolvimento de rinite e sibilos alérgicos em longo prazo quando comparado aos trabalhadores não expostos a essa substância. Resultados semelhantes foram obtidos pelo uso das classes de carbamatos e piretroides29.

A pneumonite de hipersensibilidade (PH) é uma doença pulmonar intersticial que tem como característica inflamação concomitante à fibrose ocasionada pela inalação constante de antígenos e consequente sensibilização27,30. No Brasil, é a segunda doença pulmonar intersticial mais comum, e a inalação de produtos químicos de baixo peso molecular, como organoclorados, carbamatos e piretroides estão entre as diversas causas para o desenvolvimento de PH24. Incluindo as formas da doença, tem destaque o "pulmão de fazendeiro", uma pneumonite alérgica por reação de hipersensibilidade tipo 3 e 4 ocasionada pela inalação de poeira e produtos agrícolas, assim, o aumento de interleucinas inflamatórias como IL-1, IL-6 e TNF-alfa potencializam a resposta de defesa e causam granulomas não caseosos, destruição de alvéolos e fibrose15. Por essas alterações, a doença se manifesta com febre, calafrios, tosse, dispneia e dor torácica, na forma aguda, e tosse e expectoração crônica nos casos em que as sequelas permanecem30.

Por fim, a doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) é caracterizada pela limitação crônica das pequenas vias aéreas em associação a inflamação e perda de elasticidade pulmonar. A exposição ocupacional a pesticidas pode estar relacionada ao desenvolvimento de DPOC, sendo as classes dos organofosforados, organoclorados, carbamato e herbicidas os mais relacionados à bronquite crônica4. Dessa forma, é possível observar a extensão e gravidade da influência de agrotóxicos no sistema imune e no desenvolvimento de imunodeficiência.

 

CONCLUSÃO

Diante da crescente utilização descontrolada dos agrotóxicos, este estudo abrangeu informações sobre as relações existentes entre o elevado consumo de pesticidas no Brasil e as patologias causadas por eles em todo o organismo, sejam elas imunomediadas ou não. Desse modo, entende-se a relevância que o sistema imune possui frente aos demais sistemas do organismo, pois em casos de imunodepressão ou intoxicações pelos agrotóxicos, os outros sistemas também serão afetados e, assim, toda a fisiologia estará comprometida, com destaque, nesse estudo, para consequências nos sistemas nervoso, endócrino e respiratório.

O presente estudo assume, portanto, sua importância, pois procura subsidiar medidas para proteger aqueles indivíduos mais vulneráveis frente ao contexto dos agravos à fisiologia humana, notadamente do sistema imune. Nesse sentido, torna-se notória a importância da elaboração de trabalhos e projetos de pesquisas que envolvam tais assuntos, a fim de que se entenda mais as relações existentes entre os agrotóxicos com todos os seus efeitos de imunotoxicidade e o sistema imune, bem como os demais sistemas do organismo e, a partir dis-so, traçar medidas de controle quanto ao uso dos agrotóxicos no Brasil.

Sob essa perspectiva, compreende-se, de antemão, que o impacto causado pelos agrotóxicos ao organismo e ao meio ambiente reflete na necessidade de uma melhor promoção e prevenção da saúde, havendo, concomitantemente, um maior monitoramento e mapeamento dessas intoxicações, sejam elas agudas ou crônicas, permitindo, dessa maneira, uma maior atuação das vigilâncias em saúde, especialmente a epidemiológica, a ambiental e notadamente a da saúde do trabalhador.

 

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