Células T αβ duplo negativas para o diagnóstico de ALPS e ALPS-like - os valores do critério diagnóstico de ALPS de 2010 são adequados?
Double Negative (DN) αβ T Cells for the diagnosis of ALPS and ALPS-like - are the 2010 ALPS diagnostic criteria values adequate?
Fernanda Pinto-Mariz1; Elaine Sobral da Costa2; Ekaterini Simões Goudoris3
1. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pediatria (UFRJ). IPPMG-UFRJ, Serviço de Alergia e Imunologia - Rio de Janeiro, RJ, Brasil
2. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pediatria (UFRJ). IPPMG-UFRJ, Hematologia - Laboratório Multiprofissional - Rio de Janeiro, RJ, Brasil
3. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pediatria (UFRJ). IPPMG-UFRJ, Serviço de Alergia e Imunologia - Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação desta carta.
Prezado Editor,
A Síndrome linfoproliferativa autoimune, conhecida como ALPS (Autoimmune Lymphoproliferative Syndrome), faz parte do grupo de erros inatos da imunidade com desregulação imune, e é caracterizada por autoimunidade (especialmente citopenias), linfoproliferação crônica e risco aumentado para linfoma. Ocorre por mutações em genes (FAS, FASL e CASP10) que codificam moléculas da via de sinalização FAS-FAS-L, comprometendo a apoptose de linfócitos1,2.
Mutações em 24 outros genes não relacionados à via de apoptose FAS-FASL foram identificadas em pacientes com quadro clínico semelhante ao de ALPS (ALPS-like)2.
A haploinsuficiência de CTLA-4 (CHAI), a deficiência de LRBA (LATAIE), a doença linfoproliferativa autoimune associada ao RAS (RALD), as síndromes do p110 delta ativado 1 e 2 (APDS 1 e 2), a doença de BENTA (mutação de CARD11), defeitos com ganho de função de STAT1 e de STAT3, a deficiência de adenosina deaminase 2 (DADA2) e as síndromes linfoproliferativas ligadas ao X do tipo 1 e 2 são exemplos de doenças que fazem parte do grupo ALPS-like, sendo que mutações em CTLA4 e LRBA correspondem a aproximadamente 50% deste grupo1,2.
Em comum, linfoproliferação não maligna (esplenomegalia e adenomegalias) e citopenias autoimunes ocorrem nos pacientes com ALPS, assim como naqueles com ALPS-like3. No entanto, as manifestações clínicas observadas são heterogêneas, e outros dados clínicos e laboratoriais podem direcionar a suspeita. Por exemplo, ao contrário do que é descrito em ALPS, doenças autoimunes órgão-específicas, tais como diabetes mellitus tipo 1, tireoidite, enteropatia e hepatite, são descritas em pacientes com doenças do grupo ALPS-like. Infecções de repetição, hipogamaglobulinemia e infiltrado linfocítico em alguns órgãos ocorrem na maioria dos pacientes com doenças ALPS-like2,3. Dentre as infecções mais frequentes, destacam-se as do trato respiratório superior e inferior, tanto virais quanto bacterianas. Em algumas doenças do grupo ALPS-like, ocorrem outras infecções como candidíase mucocutânea, herpes zoster, micobacterioses ou doenças causadas por outros patógenos intracelulares2,3.
Os critérios em uso para o diagnóstico de ALPS são aqueles propostos por Oliveira em 20104. São considerados obrigatórios para o diagnóstico definitivo ou provável a presença de linfadenomegalia e/ou esplenomegalia com duração superior a 6 meses (excluídas causas infecciosas e malignidade), e níveis elevados de linfócitos T duplo negativos (TDN) (≥ 1,5% do total de linfócitos ou ≥ 2,5 % do total de linfócitos CD3+), sendo estas células definidas como CD3+ TCRab+ CD4- CD8-, em um cenário de linfócitos em valores normais ou aumentados. A associação destes dois critérios necessários com um critério acessório primário (identificação de mutação patogênica em FAS, FASL ou CASP-10 ou identificação de defeito de apoptose de linfócitos em, pelo menos, dois ensaios funcionais) possibilita o diagnóstico definitivo de ALPS, enquanto a associação com um critério acessório secundário torna o diagnóstico provável. São listados como critérios acessórios secundários: citopenias autoimunes e hipergamaglobulinemia policlonal; achados imunohistoquímicos típicos em material de biópsia; aumento de níveis plasmáticos de FAS-ligante, ou IL-10 ou IL-18 ou aumento de níveis séricos/plasmáticos de vitamina B124.
Critérios diagnósticos para as doenças ALPS-like, incluindo células TDN e outros biomarcadores, ainda não estão definidos.
Em pacientes com doenças ALPS-like com mutações nos genes PRKCD, MAGT1, RASGRP1 e TPP2 não foram observados níveis elevados de linfócitos TDN. No entanto, recentemente, vem sendo descrito que pacientes com doenças ALPS-like relacionadas a mutações nos genes PIK3CD, ITK, STK4, STAT3 GOF, CTLA4, LRBA, IL2RA, TET2, IL12RB1, ADA2, TNFAIP3, NRAS/KRAS e CARD11 GOF também apresentam níveis de linfócitos TDN maiores do que 2,5% em relação ao valor total de células CD3+. Este estudo demonstrou que dentre pacientes com doenças ALPS-like, 14 também preenchiam critérios em relação à vitamina B12, FASL solúvel e IL-10, o que os teria diagnosticado como ALPS2. Por outro lado, níveis normais de TDN, especialmente diante de uma suspeita clínica importante, não descartam o diagnóstico de doenças do grupo ALPS-like.
Nem sempre temos disponibilidade imediata de exame genético, e muitos dos critérios acessórios secundários não se encontram disponíveis em nossa prática cotidiana. Deste modo, considerando que níveis de células TDN ≥ 6% (em relação aos linfócitos CD3+) raramente são observados em pacientes com defeitos incluídos no grupo ALPS-like, este ponto de corte foi proposto pela European Society for Immunodeficiencies (ESID) em 2019 como critério a ser usado no registro de pacientes com ALPS sem diagnóstico genético5,6.
Relevante salientar que é fundamental dosar as células TDN pela citometria de fluxo adequadamente, marcando receptores de células T (TCR) com cadeias alfa e beta. A população de células CD3+ inclui células com TCR compostos por cadeias alfa-beta e por cadeias gama-delta. As células com cadeias gama-delta são constitutivamente CD4-CD8- (duplo negativas). Há variadas condições clínicas de natureza infecciosa, inflamatória ou maligna que promovem aumento de células CD3+TCRld 7. Portanto, a estratégia de inferir o valor de células TDNab por meio de subtração entre total de células CD3+ e células CD4+ e CD8+ é inadequada, pois pode, em muitos casos, superestimar o valor de TDN, orientando erradamente para um diagnóstico de ALPS ou ALPS-like.
Diante de quadro clínico sugestivo (linfoproliferação e citopenias, particularmente) com exame genético inconclusivo ou indisponível e/ou indisponibilidade de ensaios de citometria de fluxo e/ou funcionais que possibilitem o diagnóstico preciso, sugerimos que o diagnóstico de ALPS deve ser considerado diante dos critérios de Bosco de 2010, no entanto, utilizando-se valores ≥ 6% de células TDN com TCRab dentre linfócitos CD3+. Pacientes com células TDN TCRab entre 2,5 e 6% dos linfócitos CD3+ podem apresentar um dos defeitos relacionados à ALPS-like, que podem requerer medidas terapêuticas específicas e diferentes dos pacientes com ALPS.
REFERÊNCIAS
1. Oliveira JB. Autoimmune Lymphoproliferative Syndrome. In: Sullivan K, Stiehm ER, eds. Stiehm's Immune deficiencies: inborn errors of immunity. 2ª ed. Elsevier Inc.; 2020.
2. Lopez-Nevado M, Gonzalez-Granado LI, Ruiz-Garcia R, Pleguezuelo D, Cabrera-Marante O, Salmon N, et al. Primary Immune Regulatory Disorders With an Autoimmune Lymphoproliferative Syndrome-Like Phenotype: Immunologic Evaluation, Early Diagnosis and Management. Front Immunol. 2021;12:671755.
3. Hafezi N, Zaki-Dizaji M, Nirouei M, Asadi G, Sharifinejad N, Jamee M, et al. Clinical, immunological, and genetic features in 780 patients with autoimmune lymphoproliferative syndrome (ALPS) and ALPS-like diseases: A systematic review. Pediatr Allergy Immunol. 2021;32(7):1519-32.
4. Oliveira JB, Bleesing JJ, Dianzani U, Fleisher TA, Jaffe ES, Lenardo MJ, et al. Revised diagnostic criteria and classification for the autoimmune lymphoproliferative syndrome (ALPS): report from the 2009 NIH International Workshop. Blood. 2010;116(14):e35-40.
5. European Society for Immunodeficiencies - ESID [site na Internet]. ESID Registry - Working Definitions for Clinical Diagnosis of PID2019. Disponível em: https://www.esid.org/Working-Parties/Registry-Working-Party/Diagnosis-criteria. Accessado em: 01/12/2021.
6. Seidel MG, Kindle G, Gathmann B, Quinti I, Buckland M, van Montfrans J, et al.; ESID Registry Working Party and collaborators. The European Society for Immunodeficiencies (ESID) Registry Working Definitions for the Clinical Diagnosis of Inborn Errors of Immunity. J Allergy Clin Immunol Pract. 2019;7(6):1763-70.
7. Liapis K, Tsagarakis NJ, Panitsas F, Taparkou A, Liapis I, Roubakis C, et al. Causes of double-negative T-cell lymphocytosis in children and adults. J Clin Pathol. 2020;73(7):431-8.