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Revista oficial da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia ASBAI
Revista oficial da Sociedad Latinoamericana de Alergia, Asma e Inmunología SLaai

Número Atual:  Janeiro-Março 2022 - Volume 6  - Número 1


Comunicações Clínicas e Experimentais

Urticária aquagênica: relato de caso e revisão de literatura

Aquagenic urticaria: a case report and literature review

Bruna Gehlen1; Isadora França de Almeida Oliveira Guimarães1; Giovanna Cobas Pedreira2; Jorge Kalil1; Antônio Abilio Motta1; Rosana Câmara Agondi1


DOI: 10.5935/2526-5393.20220012

1. Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, FMUSP, Serviço de Imunologia Clínica e Alergia - São Paulo, SP, Brasil
2. Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, FMUSP - São Paulo, SP, Brasil


Endereço para correspondência:

Bruna Gehlen
E-mail: brugehlen@gmail.com


Submetido em: 10/01/2022
Aceito em: 17/01/2022

Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste artigo.

RESUMO

A urticária aquagênica é uma forma rara de urticária crônica induzida (UCInd) desencadeada por um estímulo específico. A patogênese não é totalmente compreendida, mas os sintomas se iniciam minutos após a exposição cutânea à água, independentemente de sua temperatura, e as urticas têm o padrão foliculocêntricas. O diagnóstico é confirmado através do teste de provocação, e o tratamento de primeira linha são os anti-histamínicos de segunda geração. Neste artigo, relatamos um caso de urticária aquagênica e fazemos uma breve revisão da literatura sobre o tema.

Descritores: Urticária crônica; prurido; antagonistas dos receptores histamínicos H1.




INTRODUÇÃO

Shelley e Rawnsley1 descreveram pela primeira vez a urticaria aquagênica em 1964, com a hipótese de liberação focal de histamina por mastócitos perifoliculares. É uma doença rara, caracterizada pela formação de urticas perifoliculares com 1 a 3 mm de tamanho surgindo após o contato com água, independente da temperatura. As lesões tendem a localizar-se preferencialmente no tronco e parte superior dos membros, e podem durar de 10 a 60 minutos2-4.

A urticária aquagênica é considerada uma forma de urticária crônica induzida, e é desencadeada por estímulo específico. As urticárias induzidas (UCInd) afetam cerca de 0,5% da população e frequentemente podem ter coexistência com urticária crônica espontânea (UCE)5.

O diagnóstico é baseado na história clínica e confirmado por testes de provocação, e o tratamento compreende o manejo da ocorrência de sintomas e controle da doença, de forma completa, pelo tempo que for necessário para a remissão espontânea ocorrer5.

 

RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, 24 anos de idade, estudante de Medicina, apresenta urticas principalmente em região de tronco e dorso após exposição à água desde os 8 anos de idade. Os sintomas se iniciam cerca de 20-30 minutos após exposição ao banho ou ao entrar em contato com a água do mar ou piscina, com regressão total das urticas em até 30 minutos ao final da exposição (Figura 1). Refere piora das crises mais próximas ao período menstrual, quando apresenta maior intensidade e distribuição das urticas e do prurido.

 


Figura 1
Urticas após exposição ao banho

 

O diagnóstico foi confirmado pelo teste de provocação, com exposição direta à gaze umedecida com água em temperatura ambiente no dorso por 20 minutos, tempo máximo para surgimento dos sintomas referidos pela própria paciente. Alguns minutos após o início do teste, ela apresentou urtica e prurido na área da pele exposta (Figura 2), com remissão total dos sintomas em 30 minutos após a exposição.

 


Figura 2
Teste de provocação com exposição direta à gaze umedecida com água em temperatura ambiente no dorso da paciente

 

Os exames laboratoriais revelaram anticorpos antitireoglobulina e antitireoperoxidase elevados, no entanto TSH e T4 livre dentro da normalidade. Ainda, apresentou positividade no fator antinuclear, sendo esse, padrão nuclear homogêneo com títulos de 1/160. Realizada investigação adicional com o teste do soro autólogo (Figura 3) e frick test (teste de fricção), e ambos se mostraram negativos.

 


Figura 3
Teste do soro autólogo negativo

 

A paciente mesmo após confirmação diagnóstica optou por não aderir ao tratamento com anti-histamínico de segunda geração. Com isso, teve progressão das urticas em locais não antes acometidos, piora do prurido e da qualidade de vida, logo, foi novamente proposto o tratamento com anti-histamínico de segunda geração na dose habitual. Desde então, a paciente mantém o uso intermitente do anti-histamínico de segunda geração.

 

DISCUSSÃO

A urticária é uma condição na qual ocorre o aparecimento de urticas, angioedema ou ambos. Sua classificação é baseada no tempo de sintomas, sendo considerada crônica quando ocorre por mais de seis semanas consecutivas. As urticárias crônicas podem ser subdivididas em urticária crônica espontânea (UCE) ou urticária crônica induzida (UCInd). As UCInd são aquelas nas quais as urticas e/ou angioedema surgem após um estímulo específico, que pode ser físico (dermografismo sintomático, urticária de pressão tardia, urticária ao calor ou ao frio, urticária vibratória e urticária solar) ou não físico (urticária aquagênica, urticária de contato e colinérgica)6,7.

A prevalência estimada das UCInd é de 0,5% na população geral7. A urticária aquagênica é um tipo raro de UCInd, afeta predominantemente o sexo feminino e tem seu início frequentemente durante a puberdade ou pós puberdade8-10. No entanto, já foram descritos relatos de início na infância e outros casos de doença familiar9,11. Também existe uma associação de urticária aquagênica com outros tipos de urticária física, como a urticária colinérgica, a causada por frio ou o dermografismo sintomático1,2. Até o momento, somente cerca de 100 casos foram relatados na literatura8,9.

Para a maioria dos indivíduos, a urticária aquagênica ocorre sem repercussões sistêmicas associadas, no entanto alguns pacientes relataram sintomas como dor de cabeça, tontura, dificuldade respiratória e palpitações, mas esses sintomas são raros12-14.

A patologia exata da UCInd ainda não foi totalmente elucidada, mas a ativação dos mastócitos residentes no tecido e a liberação subsequente de mediadores inflamatórios, como a histamina, desempenham papéis importantes15. Shelley e Rawnsley1, em 1964, sugeriram que a interação da água com o sebo ou com as glândulas sebáceas poderia originar uma substância tóxica que causava desgranulação dos mastócitos e, consequentemente, liberação de histamina e formação de urticas1,8. Já em 1981, Tkach16 formulou a hipótese de que o mecanismo da urticária aquagênica (UA) estaria associado a mudanças repentinas na pressão osmótica ao redor dos folículos capilares, levando ao aumento da difusão passiva de água. Por fim, em 1998 Luong e Nguyen17 sugeriram um mecanismo que pode ser completamente independente da liberação de histamina; isso porque os pacientes com UA tiveram os níveis séricos de histamina inalterados após exposição à água3,8,9,13,17.

Mais recentemente, Maurer e cols.15 propuseram que a autoimunidade do tipo I ou autoalergia seria um potencial mecanismo fisiopatológico, e, nesta situação, a produção de neoautoantígenos ativaria os mastócitos da pele através do reconhecimento pelas moléculas de IgE acopladas aos seus receptores de alta afinidade. Estes neoautoantígenos seriam produzidos através de um estímulo físico (induzido) específico, como fricção, frio e outros. Entretanto, a patogênese exata não é totalmente compreendida e parece ser mediada tanto de maneira dependente quanto independente da histamina9.

O diagnóstico de UA é baseado na anamnese e confirmado por teste de provocação com água14. O teste pode ser administrado de várias maneiras; todavia, o método padrão é uma compressa ou uma toalha embebida em água em temperatura ambiente (35-37 °C) ou soro fisiológico, e esta deve ser colocada na pele do paciente por 20 a 30 minutos, escolhendo de preferência a parte superior do corpo, principalmente o dorso, pois as extremidades inferiores são menos comumente envolvidas nesse tipo de urticária3,9,18. Outra possibilidade, caso esse teste seja negativo, é solicitar que o paciente tome banho ou ducha ou mergulhe as partes afetadas do corpo em água8.

Existem também algumas apresentações clínicas incomuns de UA relacionadas com reações dependendo da salinidade da água, como exemplo, pacientes que referem sintomas somente após exposição à água do mar (SDAU), e para esses pacientes, o teste de provocação deve ser realizado com uma solução de cloreto de sódio a 3,5%13,19.

Por último, devemos sempre avaliar os diagnósticos diferenciais, visto que é difícil diferenciar a UA de outros tipos de urticária induzida (por exemplo, urticária colinérgica, urticária por calor, urticária ao frio, urticária por pressão e urticária induzida por exercício)9,13,20. Em nossa paciente, a história clínica sugeria claramente o subtipo de urticária física, aquagênica, e o aparecimento das urticas após o teste de provocação com água em temperatura ambiente e a paciente em repouso, juntamente com o aparecimento de urticas puntiformes e halo eritematoso afastou a possibilidade de outras formas de UCInd.

O tratamento da urticária aquagênica continua sendo um desafio, no entanto, utiliza-se como primeira linha os anti-histamínicos de segunda geração em doses padronizadas ou até quadruplicadas7,8. Em alguns casos, entretanto, há falha no controle dos sintomas com o uso dos anti-histamínicos11.

Há alguns relatos de que esses casos refratários foram tratados com radiação ultravioleta (UV) (ambos psoralenos mais terapia UVA e UVB), isoladamente ou em combinação com anti-histamínicos, e que o efeito dessa terapia seria o espessamento da epiderme, o que pode impedir a penetração de água e a interação com células dendríticas ou uma diminuição da resposta dos mastócitos11.

Outra possibilidade de tratamento foi descrita por Chicharro e cols. 21, no qual foi prescrito omalizumabe na dose de 300 mg a cada 4 semanas, e o paciente apresentou resolução completa dos sintomas após 2 meses de tratamento, sem nenhum efeito adverso ao uso dessa medicação.

Lembrando que essa medicação é um anticorpo monoclonal anti-IgE, amplamente utilizado para tratamento da UCE, e que, até o momento, este medicamento não está licenciado para o tratamento das UCInds15. Logo, mais estudos se fazem necessários para podermos avaliar de fato os resultados desse tratamento nos pacientes com urticária aquagênica.

 

REFERÊNCIAS

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