Reinfecções pelo SARS-CoV-2: fato ou fake ? Implicações para a resposta vacinal
Reinfection with SARS-CoV-2: fact or fake? Implications for vaccine response
Dewton de Moraes Vasconcelos1,2; Lorena de Castro Diniz1,3; Ekaterini Goudouris1,4; Ana Karolina Barreto Berselli Marinho1,5; Carolina Prando1; Norma de Paula Motta Rubini1,6; Emanuel Sávio Cavalcanti Sarinho7; Pedro Giavina-Bianchi1,5
1. Comissão COVID-19 ASBAI
2. Departamento de Dermatologia do HC-FMUSP - São Paulo, SP, Brasil
3. Centro de Referência de Imunobiológicos Especiais - Goiânia, GO, Brasil
4. Departamento de Pediatria, Faculdade de Medicina da UFRJ - Rio de Janeiro, RJ, Brasil
5. Disciplina de Imunologia Clínica e Alergia da FMUSP - São Paulo, SP, Brasil
6. Escola de Medicina e Cirurgia da UNIRIO - Rio de Janeiro, RJ, Brasil
7. Universidade Federal de Pernambuco - Recife, PE, Brasil. Presidente da ASBAI
Endereço para correspondência:
Dewton de Moraes Vasconcelos
E-mail: dewton.vasconcelos@hc.fm.usp.br
Submetido em: 19/02/2021
Aceito em: 26/02/2021
RESUMO
Há evidências atuais de que a reinfecção pelo SARS-CoV-2 é uma realidade, mas na grande maioria das situações não houve investigação que permitisse sua perfeita caracterização, sendo confirmados poucos casos. Em situações de real reinfecção, esta ocorreu, em sua grande maioria, por variantes do vírus, com diversas mutações, usualmente na proteína da espícula viral, em profissionais de saúde altamente expostos, ou em portadores de imunodeficiências, tanto primárias quanto secundárias. Ressaltamos que as vacinas podem ser modificadas com relativa facilidade, mas a capacidade de fabricação e de distribuição pelo mundo será capaz de acompanhar a demanda por vacinação em massa de forma eficiente? Neste manuscrito, a comissão de estudo da COVID-19 da ASBAI analisa criticamente o conhecimento atual sobre a reinfecção pelo SARS-CoV-2.
Descritores: SARS-CoV-2, reinfecção, COVID-19, vacina.
A DOENÇA E O VÍRUS
O ano de 2020 foi em grande parte dominado por notícias de uma nova doença respiratória descrita no final de 2019 em Wuhan, na China. Descobriu-se que a causa dessa infecção era um beta-coronavírus, relacionado aos causadores da SARS (do inglês Severe Acute Respiratory Syndrome) e da MERS (de Middle East Respiratory Syndrome) e denominado inicialmente 2019-nCoV (2019-Novel Coronavirus) e subsequentemente SARS-CoV-2 (de Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus-2). Essas três zoonoses apresentam muitas similaridades, tais como a elevada taxa de transmissão e a gravidade do quadro clínico em um número significativo de indivíduos infectados, decorrente do fato de que a proteína da espícula viral (spike em inglês) apresenta afinidade pelo receptor da enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2), expresso nos epitélios do trato respiratório e digestivo, além do endotélio vascular. Os coronavírus são RNA vírus causadores de doenças agudas, usualmente respiratórias e ocasionalmente digestivas em diversas espécies de mamíferos, não evoluindo para cronicidade. A expressão do receptor ACE2 em tecidos expostos ao ambiente externo permite a fácil entrada no hospedeiro, e a presença no endotélio vascular explica o caráter sistêmico da doença causada pelo SARS-CoV-2, denominada de COVID-19 (de Corona Virus Disease 2019).
A COVID-19 adquiriu caráter pandêmico, provocando um enorme impacto na economia mundial e nos sistemas de saúde tanto de países desenvolvidos quanto emergentes. A elevada taxa de transmissão do vírus levou à necessidade da mudança de comportamentos, tais como o distanciamento social, o uso disseminado de máscaras, a restrição da mobilidade e cuidados sanitários intensivos, como a higienização das mãos. Apesar da eficácia desses métodos de contenção das infecções, a presença de grupos "negacionistas" contribui para a disseminação da doença, causado um número expressivo de óbitos e de sequelas significativas nos indivíduos infectados. Esses grupos desqualificam os ensinamentos básicos que mudaram a perspectiva de vida no mundo a partir do final do século XIX, com a descoberta dos agentes infecciosos e implementação das regras de saneamento básico e das vacinas.
RESPOSTA IMUNOLÓGICA AOS VÍRUS
Temos um sistema de defesa complexo desenvolvido no decorrer da filogenia que é extremamente eficiente na proteção contra os mais diversos tipos de agentes patogênicos. Os mecanismos de defesa apresentam compartimentalização em mecanismos físico-químicos de barreira, como o epitélio ciliado e o muco no trato respiratório, o ácido clorídrico no estômago, proteínas de choque térmico, proteínas antimicrobianas, etc. Quando essa barreira é rompida, há a ativação da imunidade inata, que compreende mecanismos celulares como as células fagocíticas mono e polimorfonucleares, e as células linfoides da imunidade inata; compreende ainda mecanismos dependentes de fatores solúveis, como o sistema de coagulação e fibrinólise, vias de cininas e cascata de complemento, entre diversos outros fatores. A imunidade inata promove, além da eficiente eliminação de patógenos, uma ligação com a imunidade adaptativa, que é ativada quando a resposta inata é mais lenta ou incapaz de eliminar todo o processo de agressão ao hospedeiro. De uma forma geral, podemos dizer que as barreiras e a imunidade inata conseguem resolver por volta de 95% das infecções, e 5% dependem da imunidade adaptativa, tanto celular, mediada por linfócitos T, quando humoral, mediada por linfócitos B e as imunoglobulinas secretadas por eles.
A maioria dos indivíduos afetados por uma infecção aguda por um agente infeccioso que não apresenta latência ou outra forma de cronificação de grau leve, não expressará marcadores de ativação da imunidade adaptativa com a presença de linfócitos T ativados e anticorpos. Indivíduos com infecção moderada, que não eliminaram o agente infeccioso apenas com a imunidade inata, terão células T, B e anticorpos específicos que podem ser evidenciados depois da infecção. Quanto mais grave for o processo infeccioso, maiores as evidências de ativação da imunidade adaptativa e, consequentemente, maior persistência desses marcadores específicos da resposta imunológica. Esse é o caso da infecção pelo SARS-CoV-2.
RECAÍDA OU REINFECÇÃO PELO SARS-CoV-2
A retestagem positiva de pacientes recuperados de COVID-19 levanta diversas questões, tais como:
Como poderiam indivíduos infectados retestarem positivos depois de um período?
- Em primeiro lugar, os critérios de alta dos pacientes que apresentaram a infecção são muito variáveis, nem sempre incluindo negativação do RT-PCR.
- Diversos fatores podem levar a resultados falso-negativos na RT-PCR coletada de orofaringe, tais como problemas de coleta, problemas na estocagem, transporte e conservação da amostra antes do processamento, qualidade dos sistemas de detecção, etc. Os pacientes poderiam se mostrar novamente positivos em outro momento.
- Por outro lado, resultados positivos não necessariamente significam vírus íntegros com capacidade replicativa, visto que nos testes de RT-PCR utilizam-se sondas que capturam segmentos do RNA viral, independentemente dos vírus estarem "vivos ou mortos".
Os indivíduos com novos testes positivos são infectantes?
- Grande parte dos indivíduos que apresentaram positividade depois de um período significativo de carga viral negativa foram cuidadosamente acompanhados, avaliando os contactantes (domiciliares e profissionais), praticamente não sendo encontrados casos de transmissão da doença para os contactantes.
- Amostras coletadas para cultivo viral de vários desses indivíduos retestados positivos não tiveram resultados positivos de isolamento viral, sugerindo que a carga viral era negativa ou muito reduzida nessas amostras.
O SARS-CoV-2 pode causar reinfecções? Em caso positivo, haveria resposta imunológica protetora contra o SARS-CoV-2? Seria possível produzir vacinas eficazes para a infecção?
- Como os coronavírus são vírus de RNA, apresentam elevada taxa de mutações que podem modificar diversas estruturas do vírus, principalmente nas regiões que sofrem pressão evolutiva seletiva pela resposta imune do hospedeiro, como os receptores de entrada do vírus, a proteína da espícula viral S (do inglês spike). Dessa forma, depois de algum tempo, dependendo do número e relevância das variantes do vírus e da resposta prévia do hospedeiro (se teve ou não ativação da imunidade inata e adaptativa), a reinfecção pelo SARS-CoV-2 seria possível.
- A observação dos fenômenos descritos acima, amplamente estudados em outras infecções, tanto em humanos quanto em modelos animais, nos permite afirmar que sim, existiria resposta imune efetiva e as vacinas seriam potencialmente eficazes para bloquear a infecção e proteger da doença.
Apesar de inúmeros relatos na imprensa leiga de casos de reinfecção, na grande maioria não houve investigação que permitisse sua perfeita caracterização, sendo confirmados, na realidade, poucos casos. Em situações de real reinfecção, esta ocorreu, em sua grande maioria, por variantes do vírus, com diversas mutações, usualmente na proteína da espícula viral, em profissionais de saúde altamente expostos ou em portadores de imunodeficiências, tanto primárias quanto secundárias.
IMPLICAÇÕES PARA A RESPOSTA VACINAL
A pandemia de COVID-19 levou a esforço sem precedentes para o desenvolvimento de vacinas, visto que as medidas de contenção do contágio não foram suficientes para conter a pandemia. Em decorrência desse esforço no desenvolvimento de vacinas, diversos enfoques "novos" foram utilizados pela primeira vez em humanos ou em esquemas rotineiros de imunização em nível mundial.
Precisamos considerar em relação à resposta às vacinas contra o SARS-CoV-2, as questões relacionadas a seguir.
Qual é o repertório de antígenos expresso pelo produto vacinal e sua relevância na proteção vacinal?
- No caso de vacinas de vírus inativados, como a Coronavac, existe expressão de todos os antígenos do vírus, tanto do envelope quanto do nucleocapsídeo e do núcleo viral (core). Como tanto os antígenos do core quanto os do nucleocapsídeo são bem mais estáveis que os antígenos mais expostos como os da espícula viral, é possível prever que essas vacinas sofrerão menos com as mutações do vírus, por apresentarem um repertório de antígenos significativamente maior.
- No caso das vacinas construídas a partir de vetores virais, como as de Oxford/AstraZeneca, a da Janssen e a Sputnik V, que se utilizam de adenovírus com genoma modificado para produzir a proteína da espícula viral do SARS-CoV-2, ou ainda das vacinas de RNA mensageiro (RNAm) como as da Pfizer/BioNTech e a da Moderna (não disponíveis no Brasil), que levam a síntese apenas da proteína da espícula viral, existe o risco de ser necessário construir novas vacinas após um período de evolução do vírus com mutações.
É possível desenvolver novas vacinas no caso de variantes virais que escapem dos mecanismos de defesa humoral elicitados por imunização prévia?
- Sim, é possível. Nas vacinas de vírus inativados é necessário o cultivo de isolados com as novas variantes em grandes quantidades, posterior inativação e envasamento do novo produto. Esse processo é demorado, mas é há muito tempo realizado com grande eficiência para diversos produtos vacinais rotineiramente utilizados em todo o mundo.
- Nas vacinas recombinantes, é possível trocar a região genômica da proteína da espícula viral do SARS-CoV-2 inserida no genoma do vetor adenovírus (seja ele de chimpanzé, como na vacina da Astra-Zeneca, ou humano, como nas vacinas da Janssen e Sputnik-V), seguida de cultivo desse novo vírus em grandes quantidades, inativação e envasamento.
- As vacinas de RNAm também podem ser modificadas. Nesse caso, basta alterar a sequência da construção do RNAm e sintetizar. Essa é uma grande vantagem desse tipo de vacina, pois como não há necessidade de cultivo viral, não são necessários laboratórios de biossegurança de nível 3 para manipular os vírus, e a síntese do material genético viral é mais rápida, permitindo a liberação do novo produto em poucas semanas.
O QUE SERÁ DOS HUMANOS APÓS A PANDEMIA DA COVID-19?
Durante todo o desenvolvimento da vida na Terra sempre houve uma grande competição por espaço, nutrientes e nichos ecológicos. A sobrevivência ou extinção de uma espécie depende de sua capacidade de adaptação às modificações do ambiente, como evidenciado por Charles Darwin. Os humanos já passaram por diversas pandemias, e a capacidade de adaptação evidenciada mostrou que nem sempre uma vantagem seletiva para uma determinada doença é vantajosa em outras situações. Temos como exemplos as mutações do gene codificador da pirina que levam à febre familiar do Mediterrâneo. Na época da peste negra, provocada pela Pasteurella pestis, essas mutações foram vantajosas, pois esses indivíduos eram mais resistentes às infecções. Existem outros exemplos, como as anemias hemolíticas provocadas pela hemoglobinopatia S e a deficiência de glicose 6-fosfato desidrogenase. As mutações homozigóticas do gene da HbS (traço falciforme) ou as mutações hipomórficas (com perda parcial de função) do gene da G6PD são vantajosas para as infecções pela malária causada pelos Plasmodium falciparum e P. vivax. Na época da gripe espanhola, a última grande pandemia ocorrida há um século, houve uma seleção de indivíduos que expressam um haplótipo do sistema HLA relacionado a diversas manifestações autoimunes.
A grande vantagem do momento atual da humanidade é que temos a capacidade de elaborar vacinas eficientes contra muitas infecções ou de desenvolver ou reutilizar medicamentos para seu tratamento. Esses conhecimentos adquiridos nas últimas décadas poderão reduzir a vigência da pandemia. No entanto, precisamos imaginar que a velocidade de vacinação lenta ao redor do mundo permite que a pressão seletiva da nossa imunidade sobre o vírus ocorra e, na realidade é uma incógnita se será possível sermos tão ágeis quanto o vírus, diante de questões como capacidade de fabricar e distribuir as vacinas. Ressaltamos que as vacinas podem ser modificadas com relativa facilidade, mas a capacidade de fabricação e de distribuição pelo mundo será capaz de acompanhar a demanda por vacinação em massa de forma eficiente?
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